Acções especiais. A força de elite dos fuzileiros não é só músculo
Os militares do Destacamento de Acções Especiais (DAE) são chamados quando mais nenhuma força pode intervir
São a versão portuguesa dos Navy Seal, a força de elite que Barack Obama chamou para encerrar o capítulo “Bin Laden”. O treino a que assistimos, tal como todas as acções do Destacamento de Acções Especiais (DAE), está pensado ao pormenor e desenrola-se como se de uma missão real se tratasse. A noção de que se corre risco de vida é permanente, daí que os primeiros momentos da operação aconteçam em poucos segundos – o efeito de surpresa é vital. É uma pequena amostra daquilo que esta força especial é convocada para fazer. A identidade é secundária – são ossos do ofício.
A MISSÃO No “navio-alvo” viajam meia dúzia de piratas dos tempos modernos. Podíamos estar ao largo da Somália, noite cerrada – cenário em que decorreria uma abordagem real do DAE dos Fuzileiros –, mas a simulação faz-se com vista para Lisboa, no Tejo, em plena luz do dia. Numa operação real, a bordo do navio, para além do estrondo das ondas a rebentar contra o casco e o rugido contínuo dos motores, pouco se conseguiria ouvir.
E mesmo aqui, quase sem ondulação, só com um ouvido atento se torna perceptível o som de hélices de um helicóptero. À luz do dia, é visível a sua aproximação, mas de noite passaria completamente despercebido. Desde o momento em que é ouvido pela primeira vez, e até que o helicóptero esteja a sobrevoar o navio, não passam mais de 12 segundos. Depois da aproximação relâmpago, o piloto imita o balancear do navio para conseguir uma posição estável, a uns sete metros de altura. Cá em baixo, duas embarcações semi-rígidas com cinco militares cada, equipados com o fato escuro das operações de abordagem, já se posicionaram de um e do outro lado do alvo, armas apontadas ao interior da embarcação para garantir a protecção de quem se aproxima pelo ar.
Passaram pouco mais de 30 segundos e a aeronave ganhou posição. Do helicóptero é lançada uma corda negra, por onde descem cinco homens para o convés do navio. Logo a seguir sobem os que se aproximaram de lancha. “No momento em que estamos a abordar a embarcação é quando estamos mais vulneráveis. Para quem vem na lancha, o momento em que nos agarramos à embarcação para subir é aquele em que sentimos o pico máximo de tensão”, conta um dos elementos do DAE, com oito anos de experiência na unidade, 11 de operações especiais. “O tipo de missões que aqui se fazem tem uma natureza diferente. Acredito que qualquer militar queira chegar ao topo na carreira, e este, para mim, é o ponto mais alto”.
Com toda a equipa a bordo, a progressão no interior do navio é feita metro a metro, ao ritmo a que vão sendo “anulados” os “objectivos” que aqui se encontrem, e até que esteja garantida a segurança de cada recanto, uma tarefa que pode prolongar-se por horas. “Num navio de grandes dimensões, com três ou mais andares e a carregar todo o peso do equipamento, é uma acção que se torna desgastante”, admite um dos elementos de topo do DAE. Quinze militares a bordo, a concentração é total, a margem de tolerância para erros, mínima. 15 minutos e o navio está tomado. Seis piratas foram dominados e houve uma baixa militar registada, com um ferimento de bala na perna.
Esta abordagem é apenas um entre os múltiplos e sempre imprevisíveis cenários em que o grupo opera. Nas acções de combate ao narcotráfico, na costa portuguesa, são uma presença frequente, ainda que em missão paralela e de apoio a investigações da Polícia Judiciária. A inactivação de explosivos, o resgate de altas individualidades ou de meros civis num país em plena convulsão social, ou as missões humanitárias – nestes e em muitos outros cenários, o DAE é chamado a intervir, porque faz o que nenhuma outra força do país consegue fazer.
A ENTRADA “Quem entra tem de treinar bastante para passar na selecção, e quem concorre já está acima da média. Mas quando chega cá dentro, quando encontra o nível de desempenho interno, é nesse momento que vê como é difícil chegar ao nível médio de performance da unidade. Só aí nos apercebemos do valor” do grupo, confessa o comandante da unidade, há alguns meses à frente do grupo.
A base de recrutamento de novos elementos é – regra de ouro – o grupo de homens que integram o corpo de fuzileiros, uma força só por si considerada a elite da Marinha. A abertura de concurso depende directamente da “gestão da carreira do número de efectivos da unidade”, explica o comandante. “Quando há necessidade de formar mais elementos para o DAE, abre-se o concurso para as operações especiais da Marinha e decorre depois um curso interno”.
Testes médicos, avaliações psicotécnicas e uma prova de aptidão – etapas com passagem obrigatória para os candidatos a integrar a força de elite. Seguem-se dois anos de formação intensiva, durante os quais os militares frequentam, entre outros, os cursos de mergulho de combate e o curso de pára-quedismo militar. Ao mesmo tempo, vão sendo integrados na unidade do DAE. Esta “formação de entrada no DAE”, o primeiro passo na carreira, permite interiorizar duas coisas: uma, a garantia de que um militar desta unidade não vai nunca poder fazer planos para amanhã; e outra, a consciência de que chegou onde muitos poucos conseguiram chegar.
“Para cada curso que abrimos tem havido uma média de 50 candidatos”, refere o comandante do DAE. Desses, apenas 20 - os melhores do grupo - vão ser seleccionados para frequentar o curso. “A taxa global de selecção, desde 1985, é de cerca de 10-15%”, e em cerca de 700 candidatos, menos de 100 alcançaram o objectivo final. O fim do serviço militar obrigatório não teve consequências no número de candidatos, nem levou a que o nível de exigência nos testes de admissão tivesse baixado: “As missões, lá fora, também não foram ficando mais fáceis”, resume o responsável.
Quem entra “tem de demonstrar um equilíbrio entre a capacidade intelectual, ou seja, o desempenho cognitivo, e a capacidade física, porque vai ter sempre um índice físico de base muito elevado”. A unir estes dois elementos surge a capacidade de resistir, a resiliência: “Como qualquer actividade profissional complexa, ela não vai correr sempre de feição. Surgem imprevistos, a incerteza é permanente e vai ser sempre preciso mostrar uma capacidade de adaptação sob stress e cansaço, resolver tarefas em simultâneo. O desempenho de muito elevado nível vai-lhes ser exigido em qualquer momento, e tem de continuar a ser apresentado, mesmo sob todos esses stressores”, explica o comandante do DAE.
O TREINO De duas pequenas colunas, colocadas provisoriamente a um canto e ligadas a um leitor MP3, saem acordes de guitarra eléctrica de um metal que preenche o ambiente e que dá ânimo para mais uma série de elevações de barra. Num espaço em cimento de cerca de 90 metros quadrados, na base dos Fuzileiros, que integra a base naval do Alfeite, em Almada, está montado um circuito de treino. Cinco pneus negros, de várias dimensões – os maiores, de tractor, a pesarem largas dezenas de quilos. A barra de elevações. Uma correia grossa de ferro entrançado com mais de dois metros de comprimento e uma corda para colocar à cintura, arrastada ao longo de uns 10 metros com algum esforço. E também uma barra de ferro com pesos montados.
Os exercícios são feitos individualmente, mas o treino é realizado em equipa. Hoje treinam juntos cinco colegas, com idades entre os 25 e os 35 anos. A passagem de testemunho dos militares mais experientes para os elementos que vão chegando à unidade é valorizada no grupo, tanto para minimizar erros como para reforçar o espírito de equipa. “Há alturas em que não consigo acompanhar os mais novos numa corrida, e nessa altura são eles que me agarram e puxam por mim”, diz um militar com quase duas décadas de DAE, que hoje se dedica à planificação de missões de treino. “Mas é importante quando intervenho e sinto que ouvem aquilo que digo, quando valorizam o que tenho para lhes transmitir”.
Finalizada a série num dos exercícios, passa-se ao ponto seguinte. A vertente de treino físico é complementada com a prática de desportos como o Jiu-Jitsu brasileiro, o boxe, a corrida ou natação. “Desenvolvemos sempre um treino funcional, para que cada exercício possa ter uma aplicação prática no âmbito de missões em que participamos”, explica o comandante. “Estão todos preparados para nadar pelo menos três milhas (quase cinco quilómetros)”. 50 metros de apneia fazem-se sem qualquer problema e não há operacional que faça menos de 20 elevações de braços (o recorde da unidade está nas 67 seguidas). São máquinas de performance físico exemplar e em constante aperfeiçoamento, que dispõem de força explosiva, resistência em velocidade (1000 metros em menos de três minutos) e “endurance” (natação ininterrupta durante quatro horas).
Noutro âmbito treina-se a teoria. Saber inactivar explosivos, planificar a abordagem de uma missão, usar tecnologia de comunicações ou calcular a influência do vento num tiro de longa distância. “De nada me serve um operacional que não saiba usar um computador e um telefone satélite”, diz o comandante. O atirador de longa distância (ou sniper) mais experiente trabalha com as mesmas armas há mais de oito anos. No capítulo de valências técnicas do currículo pessoal poderia constar a capacidade de destruir, por exemplo, o motor de uma embarcação a 1000 metros do objectivo. A 2 km, uma antena radar ou uma viatura são alvo fácil, e sobre um corpo humano, a precisão do disparo teria as mais elevadas probabilidades de sucesso a 600 metros do alvo.
“Não há exercício ou missão em que não sintamos que a nossa segurança física está nas mãos de algum colega de equipa”, refere o comandante. Para que se desenvolva essa confiança é preciso muito treino, com uma repetição exaustiva dos exercícios. E tempo. Os militares do DAE integram a unidade, por norma, depois dos 25 anos. A partir desse momento, a dedicação é absoluta, sem que haja grande margem para fazer planos a longo prazo, porque a incerteza sobre quando vai surgir uma missão é absoluta e permanente.
OS HOMENS “Há alguns anos, estive durante vários meses seguidos a saltar de missão em missão, com intervalos de poucas semanas para regressar ao país”, recorda um dos elementos mais experientes do unidade, actualmente encarregue de funções de planeamento. A isto, somam-se semanas e semanas a fio de treino para, por vezes durante largos meses, responder a uma única missão onde não há margem para erros. “Faz parte da rotina, passamos um ano inteiro a treinar e uma vez por ano talvez ponhamos em prática aquilo que estamos a treinar. Mas habituamo-nos a aceitar essa realidade. É óbvio que gostaríamos de poder fazer mais missões de âmbito internacional, mas é a realidade que temos”, diz um saltador operacional de grande altitude (um tipo de salto feito a partir de aviões acima dos 10 mil pés, a altitudes ditas não fisiológicas).
O modo como se deslocam na base é reflexo daquilo que transportam para a vida pessoal. Discrição, sem referências na farda que envergam que permita distingui-los dos restantes fuzileiros – mais que um traço de personalidade, é uma filosofia que aceitaram respeitar a partir do momento em que integraram o Destacamento de Acções Especiais. “A principal ideia é a de realização profissional. Tenho uma unidade só de líderes que é difícil de comandar, mas que oferece uma realização profissional difícil de encontrar noutro lugar”, assume o comandante.
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