cabeça de martelo escreveu:
Eu pensava que os Russos usassem os mesmos lançadores à décadas.
Podes dar-me mais informações em relação a este assunto?
Na verdade esta história é uma verdadeira novela, com diversos lances relacionados tanto à evolução da tecnologia em si quanto aos desdobramentos políticos durante e após o colapso da União Soviética. Não dá para explicar tudo em detalhes em um post, poderia ser escrito um livro a respeito do assunto, mas vou tentar resumir da melhor forma possível.
Como já é conhecido, o programa espacial soviético deslanchou logo após a segunda guerra mundial, época em que na verdade era um esforço para desenvolver mísseis que pudessem transportar suas bombas nucleares (que já estavam sendo desenvolvidas), e assim contrabalançar a superioridade americana em bombardeiros estratégicos.
De início o trabalho baseou-se na tecnologia da V-2, capturada na Alemanha, mas muito cedo foram adotados desenvolvimentos próprios como a mudança do combustível de álcool para querosene, bem mais energético, mantendo-se o oxigênio líquido como oxidante. Foram sendo construídos foguetes cada vez maiores com esta tecnologia (já que as bombas atômicas da época eram enormes), e em um desenvolvimento inteligente os engenheiros adotaram o uso de múltiplas câmaras de combustão, o que permitiu desenvolver motores com empuxo muito elevado sem aumentar demais as dificuldades de projeto e contrução. Um exemplo típico destes motores foi o RD-107/108, que impulsionou o grande míssil R-7, o primeiro intercontinental a entrar em operação. Este míssil, com pequenas modificações, foi a base do foguete que lançou o Sputnik em 1957, e combinações de diferentes estágios superiores deram origem a uma família de foguetes espaciais que é a de maior sucesso na história. Eu pessoalmente costumo designar todos os foguetes da família com um único nome, “Lançador A”.
Embora o Lançador A fosse um sucesso como foguete espacial, o fato de utilizar uma enorme quantidade de oxigênio líquido extremamente volátil o faziam uma arma muito pobre, e logo foram desenvolvidos novos motores utilizando combustíveis estocáveis, baseados em compostos de hidrazina e ácido nítrico (ou tetróxido de nitrogênio). Com esta tecnologia foram desenvolvidos por exemplo o RD-218 de duas câmaras do míssil R-16, e o grande RD-253 que foi usado no primeiro estágio do míssil UR-500 (SS-18 no ocidente), um super-ICBM lançado primeiramente em 1965 e que até hoje é utilizado para o lançamento de cargas espaciais com mais de 20 Ton. Outros mísseis menores também foram desenvolvidos com esta tecnologia de combustíveis estocáveis, como o R-36, que entrou em operação em 1967 e deu origem ao lançador Cyclone, cuja versão mais recente a Ucrânia planeja lançar do Brasil.
Nesta época começaram a aparecer os mísseis IRBM e ICBM de combustível sólido, como o Minuteman americano de 1962, mas a dificuldade de construção de motores de combustível sólido realmente grandes manteve os motores-foguetes que utilizavam combustíveis líquidos estocáveis como sendo o estado-da-arte em matéria de sistema de propulsão para mísseis e foguetes espaciais. Na antiga URSS, o Lançador A foi mantido em operação e constantemente aperfeiçoado, mas outros lançadores baseados em combustíveis estocáveis além do Próton também foram desenvolvidos (Dnepr, Cosmos). Apenas para os estágios superiores foram desenvolvidos motores com combustíveis totalmente criogênicos (oxigênio e hidrogênio líquidos), pois eles são mais vantajosos para uso no vácuo.
Já na década de 80 começaram a aparecer motores de combustível sólido realmente de grande porte, e os mísseis de combustível líquido passaram a ser considerados ultrapassados ou mesmo obsoletos. Na Rússia começou o desenvolvimento de mísseis como o Topol e o Scalpel, e ficou claro que estes novos mísseis eventualmente substituiriam os de combustível estocável (como estes haviam substituído os de oxigênio líquido), e portanto não só não haveria mais a necessidade de manter a infra-estrutura para construção destes como a própria tecnologia deste tipo de combustível não seria mais desenvolvida. No campo específico dos lançamentos espaciais a grande vantagem do uso de motores queimando combustíveis estocáveis, que era sua pronta disponibilidade (justamente por causa dos mísseis), deixou de existir. Assim, os engenheiros voltaram-se novamente para o uso do oxigênio líquido como oxidante com um hidrocarboneto como combustível (querosene), já que esta combinação é mais energética, barata, segura e menos poluente que as misturas estocáveis. O venerando e eficiente Lançador A continuaria em uso, e para complementá-lo foi desenvolvido o Zenit (com o motor RD-171 que é um derivado do RD-107), com a interessante proposta de servir ao mesmo tempo como booster lateral do gigantesco Energia e como um foguete independente. Os desenvolvimentos mais recentes de motores na Rússia foram todos focando o oxigênio líquido como oxidante.
Mas aí veio o fim da URSS e seu desmembramento. O Zenit ainda é construído na Ucrânia (com muitas peças vindas da Rússia), e com a desistência de missões mais audaciosas por parte dos responsáveis pelo programa espacial russo, que eliminou a necessidade do Energia, parece que ficou complicado mantê-lo em operação, embora ele ainda seja lançado. A Ucrânia decidiu manter também o Cyclone em produção com apoio americano (utilizando uma base de lançamento flutuante para efetuar lançamentos de satélites civis vendidos por empresas americanas, o que também é feito com uma versão do Zenit que utiliza um terceiro estágio russo), e agora pretende lançá-lo também do Brasil. Mas a mistura oxigênio líquido + querosene (Lox+RP) ainda é a mais adequada para o lançamento de satélites (pelo menos no primeiro estágio), e assim a Rússia começou o desenvolvimento da família Angara, que seria um projeto modular como o proposto para o Brasil (no finado programa Cruzeiro do Sul), utilizando somente Lox+RP ou estágios superiores criogênicos, dependendo da missão. Ela poderia substituir tanto Lançador A quanto o Zenit e até mesmo o Próton, mas parece que por motivos financeiros teve seu desenvolvimento congelado.
Assim, hoje apenas projetos antigos ainda utilizam combustíveis estocáveis (que a Ucrânia usa no Cyclone), e todos os desenvolvimentos mais modernos na Rússia e nos países desenvolvidos focam no oxigênio líquido e no combustível sólido. Os russos dominam ambas as áreas e vendem seus motores até mesmo para os americanos, mas aparentemente a Ucrânia não tem capacidade de desenvolver sozinha motores como os RD-120/RD-8/RD-58 do Zenit, e é por isso que se diz que os russos estão muito à frente da Ucrânia nesta área. Mas devido às circunstâncias econômicas e históricas os principais foguetes utilizados pela Rússia ainda são o Lançador A (embora altamente modernizado) e o Próton, ambos desenvolvidos na década de 60, o que é mesmo meio paradoxal.
Um abraço,
Leandro G. Card