Marinha Forever
Enviado: Qui Abr 26, 2007 2:37 pm
Ascensão e queda das Marinhas
Paul Kennedy *
Para os historiadores, nada é mais fascinante do que observar uma coincidência ou um descompasso em locais afastados, mas que ocorrem quase ao mesmo tempo. Por exemplo, foi apenas uma coincidência que, depois de 1870, nações novas em rápido desenvolvimento, como Alemanha, Japão, Itália e EUA, tenham “atingido sua maioridade” ao mesmo tempo? E não foi um curioso descompasso o fato de, no período entre as duas guerras mundiais, a cultura política na Inglaterra, França e EUA ser tão pacifista, ao mesmo tempo que um sentimento agressivo e militarista reinava na Alemanha, Itália e Japão, tornando inevitável a eclosão da 2ª Guerra?
Nas primeiras décadas do século 15, o almirante chinês Cheng Lo liderou uma série de espantosas expedições marítimas ao mundo exterior para chegar à costa leste da África. Nessa época, nada se comparava à Marinha da China. Mas, nas décadas seguintes, essas aventuras em terras estrangeiras foram abandonadas pela cúpula de Pequim, preocupada em não desviar os recursos necessários para fazer frente à ameaça de invasão dos mandchus (habitantes da região da Mandchúria).
Enquanto os chineses desmantelavam sua frota naval, do outro lado do globo exploradores de Portugal, Galícia, Bretanha e sudoeste da Inglaterra se deslocavam para a costa oeste da África. A Europa Ocidental chegava a “novos mundos”, habitados por povos e culturas antigas, nas Américas, África, Ásia e Pacífico. Qualquer lugar vulnerável ao poder militar e naval do Ocidente corria perigo.Para o Ocidente, a sua Marinha era a chave para a influência global.
Retornemos agora ao mundo atual, um mundo complexo, fragmentado e de difícil compreensão. Neste caso também está acontecendo, de um modo muito interessante, um novo e extraordinário descompasso global, que os principais órgãos e mídia do mundo não estão cobrindo. E envolve, como ocorreu seis séculos atrás, enormes diferenças no tocante à importância que os países europeus e os asiáticos estão dando a sua força naval, hoje e no futuro.
Quero deixar claro que, nesse aspecto, não estou falando da atitude americana com relação a seu poderio naval. Os Estados Unidos, que possuem uma relativa capacidade marítima, provavelmente maior do que a da Marinha Real britânica em 1815, não têm planos para consolidar sua força naval.
E também não estou tratando da Rússia de Vladimir Putin. A Marinha russa foi golpeada duramente com os drásticos cortes com gastos e pessoal e seus navios de guerra enferrujados ficaram obsoletos nos últimos 25 anos. Mas não há dúvida de que ela se está recompondo. Pode não conseguir atingir a mesma força da Marinha soviética durante seu apogeu, nas décadas de 70 e 80. Mas a Rússia acredita verdadeiramente que precisa ser forte no mar.
É o que pensam também os governos das economias de crescimento rápido do Leste e Sul da Ásia. Em duas visitas recentes à Coréia do Sul, onde realizei conferências sobre assuntos estratégicos, fiquei perplexo ao verificar que Seul tinha planos para, em 15 anos, expandir seu poder marítimo em todas as dimensões, incluindo a capacidade militar.
Por exemplo, neste momento a Coréia do Sul está construindo três enormes destróieres que deslocam mais de 7 mil toneladas e possuem armamentos extremamente poderosos. Claramente, não foram projetados somente para impedir que os pequenos submarinos norte-coreanos se introduzam sorrateiramente em sua costa.
Mas, como sublinham os sul-coreanos, o Japão está em meio a uma estruturação ainda maior da sua Marinha.
De acordo com publicação do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, The Military Balance (O Equilíbrio Militar), a Marinha japonesa possui 54 “navios de combate principais”, ou seja, destróieres e fragatas, navios de guerra que possuem canhões, mísseis, torpedos e cargas de profundidade.
Os japoneses, no entanto, apontarão para o desenvolvimento extremamente rápido da Marinha chinesa, que já mobiliza 71 destróieres e fragatas e 58 submarinos (em comparação com os 18 do Japão). O desenvolvimento da força naval chinesa está na fase inicial, como foi o caso, por exemplo, da Marinha dos Estados Unidos por volta de 1890.
No mês passado, o Serviço de Pesquisa do Congresso, órgão avesso a declarações dramáticas ou hiperbólicas, divulgou um surpreendente relatório de 95 páginas intitulado China Naval Modernization: Implications for U.S. Navy Capabilities (Modernização naval da China: as implicações para a Marinha dos Estados Unidos). Os detalhes são muitos e impressionam. Talvez os fatos mais importantes estejam inseridos na primeira nota de rodapé: “Em 2010, a força submarina da China será quase o dobro da dos Estados Unidos. Em 2015, a frota chinesa total deve ultrapassar em tamanho a frota americana.”
Devemos observar que esta informação foi fornecida pela Associação dos Construtores Navais Americanos, que tem interesses muitos específicos nesse campo.
É difícil acreditar que o governo dos EUA vá permitir uma mudança tão dramática no equilíbrio naval. Mas não se pode negar o fato importante de que a Ásia inteira parece estar acreditando que é vital consolidar seu poder marítimo. De acordo com The Military Balance, até mesmo uma pequena nação como o Vietnã aumentou “significativamente seus gastos com a defesa, nesta década, e sua Marinha recebeu uma grande quantidade de novos equipamentos”.
Em todo caso, voltemos ao cenário europeu. Aí a tendência parece ser na direção oposta, com os orçamentos navais reduzidos (diante do aumento inexorável nos custos com sistemas de armamentos e com pessoal) e diminuição das atuais frotas. Chama atenção a notícia de que a Marinha Real britânica pode estar planejando “aposentar” muitos dos destróieres e fragatas (que, sendo apenas 25, formam hoje uma frota menor do que a do Japão).
Furiosos, membros conservadores do Parlamento estão exigindo que se discuta por que os gastos com a defesa representam hoje apenas uma pequena porcentagem do PIB, a menor desde a década de 30 - e todos sabemos o que isso implica. Eles estão ainda mais indignados com o fato de que, hoje, a Marinha francesa possui mais navios de combate do que a Grã-Bretanha, e isso pela primeira vez em 250 anos.
No entanto, o orçamento naval da França não tem aumentado muito e as Marinhas da Alemanha, Itália, Espanha e Holanda também estão sofrendo restrições. Mas, que eu saiba, ninguém na Europa está prestando atenção à corrida armamentista naval na Ásia. E ninguém na Ásia está atento às severas limitações ao poder marítimo em curso na Europa.
Isso leva a uma pergunta final, óbvia: o que os planejadores estratégicos navais de um continente estão pensando sobre o futuro do mundo que os planejadores de outro continente não estão? Por que a televisão pública chinesa vem apresentando programas sobre a ascensão da Marinha na época de Elizabeth I, e ao mesmo tempo o Ministério da Defesa britânico diz que pretende aposentar ou abandonar navios de guerra com nomes que datam de mais de 400 anos?
Os estrategistas de gabinete se apressarão a dar muitas respostas a essa pergunta: por exemplo, que conflitos entre Estados são mais prováveis de acontecer na Ásia do que na Europa Ocidental, que a China está determinada a pôr um freio na hegemonia dos Estados Unidos no Pacífico, que todos os demais países estão aterrorizados com o crescimento militar chinês e, seja como for, essas economias que prosperam rapidamente podem se permitir aplicar os recursos nas áreas civis e de defesa.
Tudo isso pode ser verdade, mas o que fica evidente é que, numa era de grandes incertezas geopolíticas, as importantes nações européias estão esquecendo a clássica advertência elisabetana: “Olhe para o seu fosso.” Será que ignorar isso é sensato?
*Paul Kennedy é diretor do Departamento de Estudos de Segurança Internacional na Universidade de Yale. Seu livro mais recente é ‘The Parliament of Man’, sobre as Nações Unidas. Escreveu este artigo para o ‘International Herald Tribune’
Tradução de Terezinha Martino
Publicado no "Estado de São Paulo".
Paul Kennedy *
Para os historiadores, nada é mais fascinante do que observar uma coincidência ou um descompasso em locais afastados, mas que ocorrem quase ao mesmo tempo. Por exemplo, foi apenas uma coincidência que, depois de 1870, nações novas em rápido desenvolvimento, como Alemanha, Japão, Itália e EUA, tenham “atingido sua maioridade” ao mesmo tempo? E não foi um curioso descompasso o fato de, no período entre as duas guerras mundiais, a cultura política na Inglaterra, França e EUA ser tão pacifista, ao mesmo tempo que um sentimento agressivo e militarista reinava na Alemanha, Itália e Japão, tornando inevitável a eclosão da 2ª Guerra?
Nas primeiras décadas do século 15, o almirante chinês Cheng Lo liderou uma série de espantosas expedições marítimas ao mundo exterior para chegar à costa leste da África. Nessa época, nada se comparava à Marinha da China. Mas, nas décadas seguintes, essas aventuras em terras estrangeiras foram abandonadas pela cúpula de Pequim, preocupada em não desviar os recursos necessários para fazer frente à ameaça de invasão dos mandchus (habitantes da região da Mandchúria).
Enquanto os chineses desmantelavam sua frota naval, do outro lado do globo exploradores de Portugal, Galícia, Bretanha e sudoeste da Inglaterra se deslocavam para a costa oeste da África. A Europa Ocidental chegava a “novos mundos”, habitados por povos e culturas antigas, nas Américas, África, Ásia e Pacífico. Qualquer lugar vulnerável ao poder militar e naval do Ocidente corria perigo.Para o Ocidente, a sua Marinha era a chave para a influência global.
Retornemos agora ao mundo atual, um mundo complexo, fragmentado e de difícil compreensão. Neste caso também está acontecendo, de um modo muito interessante, um novo e extraordinário descompasso global, que os principais órgãos e mídia do mundo não estão cobrindo. E envolve, como ocorreu seis séculos atrás, enormes diferenças no tocante à importância que os países europeus e os asiáticos estão dando a sua força naval, hoje e no futuro.
Quero deixar claro que, nesse aspecto, não estou falando da atitude americana com relação a seu poderio naval. Os Estados Unidos, que possuem uma relativa capacidade marítima, provavelmente maior do que a da Marinha Real britânica em 1815, não têm planos para consolidar sua força naval.
E também não estou tratando da Rússia de Vladimir Putin. A Marinha russa foi golpeada duramente com os drásticos cortes com gastos e pessoal e seus navios de guerra enferrujados ficaram obsoletos nos últimos 25 anos. Mas não há dúvida de que ela se está recompondo. Pode não conseguir atingir a mesma força da Marinha soviética durante seu apogeu, nas décadas de 70 e 80. Mas a Rússia acredita verdadeiramente que precisa ser forte no mar.
É o que pensam também os governos das economias de crescimento rápido do Leste e Sul da Ásia. Em duas visitas recentes à Coréia do Sul, onde realizei conferências sobre assuntos estratégicos, fiquei perplexo ao verificar que Seul tinha planos para, em 15 anos, expandir seu poder marítimo em todas as dimensões, incluindo a capacidade militar.
Por exemplo, neste momento a Coréia do Sul está construindo três enormes destróieres que deslocam mais de 7 mil toneladas e possuem armamentos extremamente poderosos. Claramente, não foram projetados somente para impedir que os pequenos submarinos norte-coreanos se introduzam sorrateiramente em sua costa.
Mas, como sublinham os sul-coreanos, o Japão está em meio a uma estruturação ainda maior da sua Marinha.
De acordo com publicação do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, The Military Balance (O Equilíbrio Militar), a Marinha japonesa possui 54 “navios de combate principais”, ou seja, destróieres e fragatas, navios de guerra que possuem canhões, mísseis, torpedos e cargas de profundidade.
Os japoneses, no entanto, apontarão para o desenvolvimento extremamente rápido da Marinha chinesa, que já mobiliza 71 destróieres e fragatas e 58 submarinos (em comparação com os 18 do Japão). O desenvolvimento da força naval chinesa está na fase inicial, como foi o caso, por exemplo, da Marinha dos Estados Unidos por volta de 1890.
No mês passado, o Serviço de Pesquisa do Congresso, órgão avesso a declarações dramáticas ou hiperbólicas, divulgou um surpreendente relatório de 95 páginas intitulado China Naval Modernization: Implications for U.S. Navy Capabilities (Modernização naval da China: as implicações para a Marinha dos Estados Unidos). Os detalhes são muitos e impressionam. Talvez os fatos mais importantes estejam inseridos na primeira nota de rodapé: “Em 2010, a força submarina da China será quase o dobro da dos Estados Unidos. Em 2015, a frota chinesa total deve ultrapassar em tamanho a frota americana.”
Devemos observar que esta informação foi fornecida pela Associação dos Construtores Navais Americanos, que tem interesses muitos específicos nesse campo.
É difícil acreditar que o governo dos EUA vá permitir uma mudança tão dramática no equilíbrio naval. Mas não se pode negar o fato importante de que a Ásia inteira parece estar acreditando que é vital consolidar seu poder marítimo. De acordo com The Military Balance, até mesmo uma pequena nação como o Vietnã aumentou “significativamente seus gastos com a defesa, nesta década, e sua Marinha recebeu uma grande quantidade de novos equipamentos”.
Em todo caso, voltemos ao cenário europeu. Aí a tendência parece ser na direção oposta, com os orçamentos navais reduzidos (diante do aumento inexorável nos custos com sistemas de armamentos e com pessoal) e diminuição das atuais frotas. Chama atenção a notícia de que a Marinha Real britânica pode estar planejando “aposentar” muitos dos destróieres e fragatas (que, sendo apenas 25, formam hoje uma frota menor do que a do Japão).
Furiosos, membros conservadores do Parlamento estão exigindo que se discuta por que os gastos com a defesa representam hoje apenas uma pequena porcentagem do PIB, a menor desde a década de 30 - e todos sabemos o que isso implica. Eles estão ainda mais indignados com o fato de que, hoje, a Marinha francesa possui mais navios de combate do que a Grã-Bretanha, e isso pela primeira vez em 250 anos.
No entanto, o orçamento naval da França não tem aumentado muito e as Marinhas da Alemanha, Itália, Espanha e Holanda também estão sofrendo restrições. Mas, que eu saiba, ninguém na Europa está prestando atenção à corrida armamentista naval na Ásia. E ninguém na Ásia está atento às severas limitações ao poder marítimo em curso na Europa.
Isso leva a uma pergunta final, óbvia: o que os planejadores estratégicos navais de um continente estão pensando sobre o futuro do mundo que os planejadores de outro continente não estão? Por que a televisão pública chinesa vem apresentando programas sobre a ascensão da Marinha na época de Elizabeth I, e ao mesmo tempo o Ministério da Defesa britânico diz que pretende aposentar ou abandonar navios de guerra com nomes que datam de mais de 400 anos?
Os estrategistas de gabinete se apressarão a dar muitas respostas a essa pergunta: por exemplo, que conflitos entre Estados são mais prováveis de acontecer na Ásia do que na Europa Ocidental, que a China está determinada a pôr um freio na hegemonia dos Estados Unidos no Pacífico, que todos os demais países estão aterrorizados com o crescimento militar chinês e, seja como for, essas economias que prosperam rapidamente podem se permitir aplicar os recursos nas áreas civis e de defesa.
Tudo isso pode ser verdade, mas o que fica evidente é que, numa era de grandes incertezas geopolíticas, as importantes nações européias estão esquecendo a clássica advertência elisabetana: “Olhe para o seu fosso.” Será que ignorar isso é sensato?
*Paul Kennedy é diretor do Departamento de Estudos de Segurança Internacional na Universidade de Yale. Seu livro mais recente é ‘The Parliament of Man’, sobre as Nações Unidas. Escreveu este artigo para o ‘International Herald Tribune’
Tradução de Terezinha Martino
Publicado no "Estado de São Paulo".