A crise interna do México e a Gripe Suína, por Pedro dos Santos de Borba
22/05/2009 por Equipe de Colaboradores Deixe um comentário
Recentemente, o México tem ganhado as manchetes da mídia internacional com a epidemia de gripe suína que assola o país, já ultrapassando os dois mil casos de infecção e algumas dezenas de mortos. A crise de saúde pública mexicana já chega à beira do ridículo à medida que hotéis e empresas aéreas oferecem descontos fabulosos para tentar compensar os corajosos turistas que se arriscarem a contrair a doença. No entanto, esse problema sanitário, por mais propagandeado que possa ser, vem somente aprofundar os problemas estruturais da sociedade mexicana, que é palco de uma guerra civil relacionada ao narcotráfico e está sofrendo radicalmente os efeitos da crise econômica e da liberalização comercial desenfreada da década de 1990.
O grau e a natureza da violência desencadeada atualmente no México precisam ser compreendidos por sua construção histórica, que remete-nos ao fortalecimento dos cartéis mexicanos (principalmente a partir da década de 80) e à ascensão de um regime de segurança nacional, baseado na militarização do combate a esse cartéis (com a vitória de Felipe Calderón nas eleições de 2006). A consolidação de organizações criminosas de grande porte no México se deu pela combinação de três tendências associadas: primeiro, o aumento considerável no consumo norte-americano de cocaína, dos anos 70 diante; segundo, a relativa perda de importância do narco-corredor caribenho (controlado por organizações colombianas), graças a operações anti-narcóticos orquestradas pelos Estados Unidos; terceiro, o fortalecimento das narco-rotas do Pacífico foi acompanhado por um fortalecimento dos grupos mexicanos e de uma alteração na relação com seus homólogos colombianos: ao invés de serem remunerados, os mexicanos passaram a reter uma parcela em espécie da droga transacionada. A partir disso, recrudesceram no México as linhas de transporte e distribuição através da fronteira, envolvendo um maior contingente de pessoal e ampliando o escopo geográfico e social de penetração dos cartéis.
No entanto, é somente a partir de 2006 que o combate frontal aos cartéis mexicanos passou a ser uma prioridade para a presidência do país. Com a eleição de Felipe Calderón, do Partido de Ação Nacional (PAN), o México lançou-se em uma cruzada nacional de inspiração uribista pela erradicação do narcotráfico, o que conseqüentemente pôs em evidência o conflito latente dos cartéis com a polícia e dos cartéis entre si. A proposta de militarização da segurança pública (recentemente institucionalizada em uma reforma da Lei de Segurança Nacional) obteve imediato respaldo dos Estados Unidos, que, já aliados ao anterior governo panista, propuseram a “Iniciativa Mérida” em 2007 para formalizar essa cooperação.
A investida contra os cartéis desestabilizou os delicados arranjos – geográficos e políticos – construídos pelos narcotraficantes para assegurar a estabilidade de seus negócios. Em termos geográficos, forçou-se um traumático redesenho das zonas de dominação, que desde a década de 90 configuravam-se, grosso modo, com o Cartel do Golfo controlando o leste do país e o corredor caribenho, enquanto a Confederação de Sinaloa dominava o oeste do país e o corredor pacífico, via Baixa Califórnia. A prioridade estratégica de Calderón na guerra às drogas foi o desmantelamento do Cartel do Golfo, cuja base de operações é o estado de Tamaulipas e cujo chefe era Osiel Cárdenas Guillen, preso em 2003. Essa ofensiva está proporcionando mais força e mais autonomia para um grupo conhecido como Los Zetas, até então um braço armado do Cartel do Golfo. Esse fortalecimento, aliado às práticas naturalmente mais violentas desse grupo, foi uma das razões para a escalada de insegurança na cidade de Juárez, na província de Chihuahua, que estamos assistindo desde o ano passado. Ciudad Juárez articula entre 40% e 60% do tráfico de cocaína para os Estados Unidos, dando acesso a três rodovias interestaduais norte-americanas. A cidade foi palco de um confronto entre Los Zetas, a Organização Carrillo Fuentes (“Cartel Juárez”) e o Cartel de Sinaloa, o que exorbitou os índices de criminalidade no ano de 2008 e nos primeiros meses de 2009. No início de Março, Felipe Calderón empreendeu a primeira grande ação militar de seu governo, com 8.000 homens, para pacificar a cidade, sendo que as funções administrativas municipais passaram a ser executadas em larga medida também por militares.
Em termos políticos, a desestabilização veio com a fragilização dos arranjos “plata o plomo”, através dos quais os narcotraficantes mantinham laços de clientelismo e suborno com a burocracia local que asseguravam a regularidade das operações dos cartéis. A tentativa de sanear a narco-corrupção da polícia federal e da política distrital tem intensificado o conflito e a truculência dos narcotraficantes, proporcionando-lhes também uma maior visibilidade na vida civil cotidiana.
O outro elemento do cenário interno mexicano que inspira preocupação é situação econômica do país, que será um dos mais afetados pela crise. As principais fontes de receita externa do México estão em recuo: (1) a remessa de dólares dos imigrantes está em declínio com a crise norte-americana, e há boa possibilidade que ocorra um fluxo migratório de retorno; (2) o complexo das maquilladoras está em retração, reduzindo as exportações e o emprego no México; (3) as exportações de petróleo estão se depreciando sensivelmente com a queda do preço do barril, tendo reduzido as receitas da PEMEX para o primeiro trimestre de 2009 em 60% em comparação a 2008. Isso gerou uma forte pressão nas contas externas do país, que, mesmo gastando US$21bi em 8 meses para proteger o peso, não pôde evitar a depreciação da moeda em 45%. A gravidade da condição econômica do México impulsionou o governo Calderón a abrir, em abril desse ano, uma linha de crédito de US$36bi no FMI, sendo o primeiro grande latino-americano a recorrer ao Fundo para fazer frente à crise mundial. Segundo o FMI, a expectativa para 2009 é de que o PIB mexicano contraia entre 0,5 e 1%.
Uma variável fundamental para pensar a situação econômica do México é o NAFTA, que foi objeto de controvérsias com o agravamento da crise atual. No plano interno, a oposição acusa a liberalização comercial de comprometer a economia do país, atrelando-a à dos EUA e deteriorando as condições laborais no México. A soberania alimentar mexicana sofre com o desmantelamento do setor agrícola nacional, graças à concorrência do agro-negócio estadunidense que passou a exportar milho, arroz, feijão e sorgo para o vizinho. A indústria tornou-se fortemente dependente dos capitais e do mercado norte-americanos, sendo o complexo das maquiladoras o mais suscetível às vicissitudes da economia dos EUA. No plano externo, o NAFTA tem mais dificultado do que ajudado a relação bilateral. Em março, assistimos a uma espécie de “guerra econômica” entre os dois países, quando os EUA impuseram restrições à entrada de caminhões vindos do México, e esse, em represália, sobretaxou certos produtos norte-americanos, principalmente agrícolas.
A verdade é que o México enfrenta problemas muito mais desafiadores que a gripe suína, ainda que ela seja mais midiática. O país padece de um sério problema securitário e está sendo castigado pela crise econômica, com altos níveis de desemprego e inflação. Além disso, apresenta um problema de legitimidade política, como é evidenciado pela preocupação com a “blindagem” eleitoral dos candidatos contra o dinheiro ilícito e a corrupção. As eleições parlamentares de 5 de Julho, no entanto, não necessariamente irão escancarar essa crise interna em uma derrota radical do governo. O PAN ganha força com a guerra civil que promove, e, ao propagandear, com espalhafato e regularidade, prisões de “capos” do narcotráfico, o governo de Felipe Calderón atingiu 66,4% de aprovação de fevereiro. Além disso, resta a possibilidade de que o debate acerca da Gripe Suína monopolize a eleição, como vem fazendo nas últimas semanas com a comunicação de massa. A dúvida central é para onde estarão voltados os olhos dos eleitores mexicanos que vão às urnas em Julho: para uma economia flagrantemente débil e mal-direcionada? Para um governo em guerra civil contra o narcotráfico? Ou para os 2 mil infectados com Gripe Suína? A complexa crise interna do México está aguardando essas respostas.