Pesquisadores usam até “Mein Kampf feminista” para denunciar viés progressista na academia
Por
Maria Clara Vieira
28/01/2021 14:48
Entre 2017 e 2018, um trio de pesquisadores progressistas, defensores do feminismo, das pautas LGBT e da luta contra o racismo, todos autodeclarados ateus e secularistas, decidiram pôr à prova uma percepção recorrente que, até então, carecia de evidências empíricas: há algo de muito errado com a academia, sobretudo nas áreas de humanas.
Sob tutela do filósofo Peter Boghossian, o matemático James Lindsay, doutor pela Universidade do Tennessee, e a escritora Helen Pluckrose, mestre em literatura pela Queen Mary University of London, passaram um ano disfarçados, submetendo artigos falsos sob o nome fictício de Helen Wilson, uma acadêmica ligada a um centro de pesquisas também inexistente, o Portland Ungendering Research Initiative (PURI), a vários periódicos renomados focados em estudos de raça, gênero, obesidade e sexualidade.
Como resultado, trechos de Mein Kampf, de Adolf Hitler, foram aceitos no periódico feminista Affilia, sob o título de “Nossa Luta é Minha Luta: Feminismo Solidário como uma Reação Interseccional ao Feminismo Neoliberal”. Também foram aceitos por outras revistas artigos que defendiam que homens fossem treinados como cães, como medida regular contra o assédio sexual, e que estudantes brancos pagassem sua dívida histórica sendo obrigados a se sentar em silêncio no chão, acorrentados, durante as aulas, aprendendo com esse sofrimento. Outro estudo celebrava a obesidade mórbida como uma escolha de vida saudável
O experimento durou até 2019, quando uma das falsas pesquisas chamou a atenção de um repórter do Wall Street Journal e levou o trio a se revelar antes da hora. Até então, sete artigos haviam sido aprovados e publicados, seis receberam convites para revisão por pares - devido à “pesquisa exemplar” - e, antes de revelar o grupo, o artigo sobre a cultura do estupro entre cães tinha ganhado um reconhecimento especial na revista Gender, Place and Culture.
Munidos de evidência empírica da ausência de rigor científico recorrente nas humanidades, Lindsay e Pluckrose se debruçaram sobre o arcabouço teórico que levou a academia a este estado. A pesquisa resultou no livro “Cynical Theories: How Activist Scholarship Made Everything about Race, Gender and Identity - and Why This Harms Everybody” [Teorias cínicas: como pesquisas ativistas transformaram tudo em raça, gênero e identidade - e por que isso prejudica a todos].
Lançado em maio do ano passado, o livro chegou ao topo da lista de mais vendidos dos portais Wall Street Journal, USA Today e Publishers Weekly. Em julho, foi o mais vendido na Amazon do gênero “filosofia e educação”, além de receber os títulos de “melhor livro de 2020” e “melhor livro de política e atualidades” pelo Financial Times e pelo Times. A obra foi efusivamente elogiada pelo psicólogo e pesquisador da Universidade de Harvard Steven Pinker e pelo editor da revista The Spectator, Douglas Murray, que afirmou raramente ter lido um “resumo tão bom de como o pós-modernismo se desenvolveu”.
Os primórdios
De largada, Lindsay e Pluckrose esclarecem - e reiteram repetidas vezes ao longo do livro - que seu objetivo não é minar o feminismo liberal, a luta contra o racismo ou campanhas pela igualdade LGBT, e sim alertar para o fato de como as novas teorias que investigam estes temas, na prática, causam retrocesso. A dupla também deixa claro que não pretende atacar a academia ou a ciência, mas “defender estudos rigorosos baseados em evidências e a função essencial da universidade como um centro de produção de conhecimento”.
Em seguida, o leitor é conduzido pela história das filosofias vigentes no final do século XX, após a derrocada das teorias materialistas que levaram à ascensão e queda do fascismo e do comunismo. Esse cenário fomentou o surgimento de um novo tipo de ceticismo radical não apenas em relação às tradições religiosas e instituições como a família e as igrejas, mas à própria ciência e à possibilidade de se obter conhecimento objetivo. Entre seus expoentes estão os filósofos franceses Michel Foucault, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard.
“Foucault estava especialmente interessado na relação entre a linguagem, ou, mais especificamente, discurso (modos de falar das coisas), produção de conhecimento e poder. Foucault não negou que existe uma realidade, mas duvidou da capacidade dos humanos de transcender nossos preconceitos culturais o suficiente para chegar a ela”, explicam os autores. Seguindo esse raciocínio - como o fazem os novos teóricos da justiça social - “conhecimento, verdade, significado e moralidade são, portanto, produtos culturalmente construídos e relativos de culturas individuais”.
Está escancarada a porta para o relativismo absoluto que norteia as teorias cínicas, bem como para a obsessão com a linguagem.
Teorias cínicas na prática
A popularização destas teorias, esclarecem Lindsay e Pluckrose, conduz à situação atual da academia e da cultura, tomadas por cancelamentos e discursos únicos. Com fartas referências, os autores traçam os caminhos que conduziram o pós-modernismo aos estudos de sexualidade, raça e identidade.
Disto resulta, por exemplo, a obsessão pela descolonização sistemática, a luta contra “tudo o que representa a colonização dos brancos, cristãos e europeus” - desde a própria razão, a ciência e a medicina, vistas como instrumentos de dominação do Ocidente, até figuras históricas que se encaixam nestas categorias (de Platão a Winston Churchill). Os autores reforçam que nada disso impede que se fale sobre os efeitos nocivos do colonialismo, mas ressaltam que entender suas reais consequências requer rigor.
Teorias de raça e gênero também são esmiuçadas, das origens do conceito de interseccionalidade, proposto pela ativista Kimberlé Crenshaw, até as precursoras da teoria queer (figuras como Judith Butler, a primeira a propor o espectro de gêneros) , incluindo a migração das pautas antirracistas para a concentração em microagressões, discursos de ódio e apropriação cultural. “Essa mudança implicou novos compromissos. Foi-se o foco central nas realidades materiais relevantes para a compreensão do racismo, especialmente a pobreza. Isso foi substituído pela análise do discurso e do poder”, avaliam os autores.
O mesmo se aplica aos estudos da sexualidade, não mais calcados na biologia e em necessidades materiais mensuráveis, mas na autoidentificação e na caça às bruxas promovida contra a masculinidade tóxica.
Há, por fim, a análise dos estudos de identidade com base em habilidades e características físicas - militância que começou com a demanda por uma sociedade capaz de aceitar, valorizar e acomodar pessoas com deficiências e descambou no discurso de que deficiências físicas devem ser celebradas não apenas ao ponto da aceitação, mas também da rejeição ao tratamento. A lógica se repete com a obsessão com a gordofobia, que transformou em exaltação à obesidade (cientificamente comprovada como fonte de riscos severos à saúde) o questionamento legítimo de padrões inalcançáveis e também doentios de beleza.
Por que é tão relevante
O sucesso de Cynical Theories decorre não apenas do didatismo e precisão com os quais James Lindsay e Helen Pluckrose descrevem a história e a aplicação das teorias descritas, mas também da demonstração dos efeitos práticos destes pensamentos - conclusões que tangenciam preocupações de liberais, conservadores e, inclusive, de pensadores alinhados à esquerda que estão de fato preocupados com a justiça.
Os autores lembram, por exemplo, que os novos treinamentos de diversidade tornaram ambientes de estudo e trabalho mais hostis ao ensinar para alunos e funcionários brancos que eles são responsáveis pelo racismo estrutural e que não há nada que eles possam fazer a respeito, exceto pedir desculpas o tempo todo. Eles recordam também como as lentes da interseccionalidade identitária deixam escapar a pobreza, de modo que os membros da classe trabalhadora e pobre, hoje, se sintam profundamente alienados da esquerda.
Como argumento último aos pensadores que se recusam a reconhecer nessas teorias uma nova fonte de totalitarismo, Lindsay e Pluckrose analisam como a perseguição de vozes dissidentes dentro dos que falam sobre justiça sem se valer dos recortes pós-modernos acaba por dar força às vozes mais extremistas, na medida em que essas vozes passam a ser percebidas pela população como as únicas capazes de dizer verdades óbvias que ninguém mais tem a coragem de dizer.
Mais do que oferecer um resumo robusto da onda pós-moderna, Cynical Theories aponta para a saída da crise: a reincorporação de valores liberais - que, em mais uma mea culpa didática, são considerados imperfeitos pelos autores. “Por estar sempre focada no progresso, uma sociedade liberal destaca suas próprias imperfeições, na esperança de que elas possam ser corrigidas ou pelo menos mitigadas. Isso ocorre porque o liberalismo é um sistema de resolução de conflitos, não uma solução para conflitos humanos.”, afirmam.
A certo ponto, a dupla, ainda que ferrenha defensora do secularismo, reconhece no filósofo cristão René Descartes a autoria de uma das primeiras respostas ao ceticismo cínico que hoje norteia a academia: "penso, logo existo". Se a habilidade de pensar implica existência, algo deve ser real.
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