David Cameron culpa a Europa pela derrota no referendo britânico
UE pressiona Londres para que esclareça as condições do Brexit

David Cameron, na terça-feira, em Bruxelas. O. HOSLET (EFE) | REUTERS-QUALITY
Bruxelas 29 JUN 2016 - 17:34 CEST
Dezessete milhões de bofetadas depois, o demissionário David Cameron encerrou nesta terça-feira a sua última cúpula europeia, em Bruxelas, dizendo ser “uma noite triste”. Londres espera um divórcio amistoso e gostaria de manter laços estreitos com a União Europeia “em assuntos comerciais, de cooperação e segurança”.
Mas o primeiro-ministro britânico se deparou com a reunião de cúpula mais tensa dos últimos tempos, num momento em que Berlim, Paris e Bruxelas endurecem seu discurso.
A UE quer que Londres esclareça as condições para a sua saída, para que o novo status do Reino Unido comece a ser negociado.
Mas Cameron deixará essa tarefa ao seu sucessor, e culpa a Europa e sua gestão da crise migratória pela derrota no referendo do Brexit.
Todas as famílias felizes se parecem, mas a Europa está se transformando numa daquelas famílias infelizes de Tolstói, onde cada um é um pouco do seu jeito, e os divórcios já não são mais impensáveis.
Os 27 países remanescentes ofereceram uma fria acolhida a Cameron nesta terça-feira, na sua última noite europeia, deixando entrever inclusive alguns gestos de hostilidade.
Os mercados ensaiaram sua primeira recuperação desde que 17 milhões de britânicos voltaram por deixar a UE. A pressão política, por outro lado, é crescente: o Parlamento Europeu manifestou enorme irritação com o Brexit, e os dirigentes continentais expuseram uma cenografia marcada pela tensão desta cúpula.
Ficou claro que os 27 desejam clareza, um calendário e menos ambiguidades para tentar minimizar as incertezas que afetam o Reino Unido, a UE e os mercados globais. Ficou claro, também, que Londres se negará a oferecer isso enquanto Cameron não tiver um sucessor definido.
E ficou claro, finalmente, que nem sequer os aliados mais tradicionais de Londres estão dispostos a facilitar as coisas. A chanceler (primeira-ministra) alemã, Angela Merkel, que antes defendia dar tempo ao Reino Unido para lidar com a crise autoinfligida, agora endureceu o discurso: “Quem quiser sair desta família não pode esperar se livrar de todas as obrigações e manter todos os privilégios”, disse ela no Parlamento do seu país.
Cameron devolveu o golpe ao final da jornada, quando declarou solenemente que sua última cúpula europeia foi basicamente “uma noite triste”. Se por acaso havia alguma dúvida, anunciou que a sorte está lançada. “Sou um democrata, o resultado do referendo não é o que queríamos, mas é preciso respeitar a democracia.” Em outras palavras: não haverá recuo.
O que ele pediu foi um divórcio amistoso. Disse que a UE e o Reino Unido “são vizinhos, amigos, aliados” e precisam estreitar seus futuros laços em assuntos “comerciais, de cooperação e de segurança”.
Tanto o premiê britânico como os demais líderes europeus destacaram “o ambiente positivo” da reunião. Mas as diferenças existem, e não são simples matizes: Cameron culpou a Europa por não ter respondido adequadamente à ameaça da imigração e argumentou que esse foi o fator decisivo para o Brexit.
Em suma, culpou a Europa pelo divórcio, pois Londres se queixa de que a UE impediu a criação de um freio de emergência que interrompesse os fluxos migratórios. Mas isso é falso. Os 28 países da UE chegaram em fevereiro a um acordo sobre esse freio de emergência, mas com uma condição: o Reino Unido não poderia ativá-lo unilateralmente.
A relação entre Londres e Bruxelas está infestada de equívocos desse tipo, que se cristalizaram numa campanha suja, cheia de mentiras pelo lado do Brexit e de ameaças de apocalipse pelo flanco europeísta. Isso, porém, já é história.
Cameron pediu um acordo ambicioso para as futuras relações Reino Unido-UE, mas ao mesmo tempo não cedeu às pressões dos 27 e não ativará imediatamente a solicitação de saída. “Essa é uma tarefa que fica para o próximo primeiro-ministro”, disse ele, desafiador, quando já era quase meia-noite em Bruxelas.
A UE já é história para Downing Street. Mas tanto os britânicos como os demais europeus estão conscientes de que o divórcio será longo. Londres começa a perseguir um acordo similar ao da Noruega, com acesso ao mercado único e livre circulação de pessoas, mas com alguma limitação em matéria migratória.
Aí tropeçará nos limites impostos por Paris, Bruxelas e aparentemente também Berlim: “Só obtém acesso ao mercado comum quem aceita as quatro liberdades europeias fundamentais: de pessoas, bens, serviços e capital”, cutucou Merkel, cujas palavras costumam acabar inscritas em bronze nos destinos da Europa.
François Hollande, presidente da França, foi além: “Por não querer a livre circulação de pessoas, os britânicos perderão seu acesso ao mercado interno”, arriscou. “A partir de agora, os populistas saberão a que se expõem quando propuserem sair da UE.” Menos afiado, o presidente do Governo (primeiro-ministro) espanhol, Mariano Rajoy, pediu que o novo status de Londres seja definido “sem vinganças nem prêmios”.
Dureza em Bruxelas
O mais duro da noite foi Jean-Claude Juncker, chefe da Comissão Europeia (Poder Executivo da UE), que atribuiu a derrota no referendo às várias décadas de euroceticismo no outro lado do canal da Mancha. “Se alguém passa anos dizendo aos seus cidadãos como a UE é má, não deveria ser uma surpresa que as pessoas acabem acreditando.”
Bruxelas há dias tenta emplacar a ideia de que haja alguma punição ao Reino Unido, para evitar outros referendos em países onde o populismo antieuropeu se espalha.
A Alemanha parece imbuída dessa tarefa, e Merkel, a mulher mais poderosa da Europa, elevou o tom para mostrar algumas fronteiras que ela não quer que sejam ultrapassadas.
Nada de “retalhar” o bolo europeu para que cada um escolha os pedaços que considera mais apetitosos, avisou.
Em meio à mais profunda convulsão desde o início do projeto europeu, por volta de 1958, as feridas estão abertas. “Talvez seja algo muito pessoal, mas no dia seguinte ao Brexit senti como se alguém próximo a mim tivesse ido embora de casa, e nesse mesmo momento senti como essa casa era querida e apreciada por mim.”
Parece ser outra frase de Anna Kariênina, mas se trata de uma declaração do presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk. “Com Londres ficará a amizade, mas só isso”, afirmou Juncker, com aspereza.
Tusk anunciou que o formato de reunião informal entre os 27 – a Europa dos 28 já é passado – terá continuidade em setembro. Uma cúpula sem Londres, uma reunião para pactuar o primeiro divórcio da desventurada família europeia em seis décadas.
BCE ALERTA PARA O IMPACTO ECONÔMICO
O Banco Central Europeu (BCE) começa a usar a calculadora para avaliar as consequências econômicas do Brexit.
O presidente do BCE, Mario Draghi, alertou na noite da terça-feira aos chefes de Estado e de Governo sobre um “longo período de volatilidade”. Mesmo assim, os números que ele citou soam moderados, com uma estimativa de impacto econômico na zona euro de 0,3% a 0,5% do PIB acumulado nos três próximos anos.
Outros participantes na cúpula apontaram riscos maiores. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, avisou que o medo da incerteza pode causar retiradas maciças dos bancos.
Cifras à parte, já há em Bruxelas movimentos para levar a Autoridade Bancária Europeia (EBA, na sigla em inglês), hoje com sede em Londres, para outra cidade da UE, como Paris ou Frankfurt.
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06 ... 94578.html