Autoridades querem afastar receio de escassez de produtos
Governo trava racionamento do arroz no Lidl e apela à calma
27.05.2008 - 09h10
Por Ana Fernandes, Natália Faria
Manuel Roberto/PÚBLICO
O supermercado inocava a lei para limitar a compra de arroz
A cadeia de lojas Lidl decidiu retirar as limitações à venda de arroz que vigoraram até ontem e que limitavam as vendas daquele cereal a 10 quilos por cliente. "Após conversações com o Governo, e visto não ser intenção do Lidl gerar quaisquer preocupações em relação ao abastecimento dos consumidores portugueses, decidimos retirar de imediato as referidas limitações", anunciou aquela cadeia.
Para este recuo contribuiu o secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor, Fernando Serrasqueiro, que, alertado pela notícia do PÚBLICO, sensibilizou os administradores daquela cadeia em Portugal, para os riscos de tal racionamento. "Felizmente, o administrador-delegado do Lidl em Portugal compreendeu que era uma situação alarmista que poderia levar ao açambarcamento e a uma subida especulativa dos preços", congratulou-se Serrasqueiro, numa posição que converge com a preocupação da comissária europeia da Agricultura, Mariann Fischer-Boel, que, no domingo, apelou aos consumidores para não comprarem mais comida do que a necessária.
No esclarecimento que enviou ao PÚBLICO, o Lidl aproveitou ainda para esclarecer que a limitação de 10 quilos era referente a cada acto de compra e que cada cliente podia comprar aquela quantidade de cada uma das oito marcas presentes nas lojas da empresa de origem alemã. O aviso que estava presente em várias lojas desta cadeia, porém, referia-se à escassez de matéria-prima como justificação para o racionamento, sem qualquer especificação quanto a marcas.
À margem disto, o Lidl recorre a estatísticas do INE para argumentar que o consumo "per capita" em Portugal não atinge os 16 quilos por pessoa por ano e concluir assim que a restrição que esteve em vigor até ontem "não implicou uma real limitação para o consumidor final". A medida visaria, conforme sublinhou Serrasqueiro, "os clientes profissionais que estariam a tentar fazer algum açambarcamento do arroz".
Sem eco noutras cadeias
As restrições do Lidl não encontraram qualquer eco nas restantes empresas de distribuição alimentar, onde a venda de arroz continua a ser feita sem qualquer limitação ao cliente. "Não estamos a fazer nenhum racionamento nem antecipamos qualquer necessidade nesse sentido", declarou uma fonte oficinal do Grupo Jerónimo Martins, proprietário das marcas Pingo Doce, Feira Nova e Recheio. Do mesmo modo, o El Corte Inglés garantiu que a cadeia de supermercados da marca não sentiu "qualquer dificuldade na manutenção dos stocks de arroz".
Durante o dia de ontem, Fernando Serrasqueiro diz ter contactado com vários responsáveis do sector que o deixaram descansado quanto às importações do arroz necessário para perfazer as cerca de 150 toneladas que os portugueses consomem por ano. "O fornecimento está garantido, havendo ainda a possibilidade de recorrermos ao Sri Lanka e à Tailândia", garantiu o governante.
Portugal importa todos os anos entre 50 e 60 mil toneladas de arroz agulha, proveniente da Guiana Francesa e do Suriname. "Excepcionalmente, este ano importámos algum arroz da Tailândia, mas apenas porque houve problemas climatéricos nos países fornecedores habituais", especificou o secretário-geral da Associação Nacional dos Industriais de Arroz, Pedro Monteiro, para garantir que "não há rupturas nas importações" e que "o sector está a trabalhar normalmente".
O país tem 12 fábricas de arroz, das quais seis de grande dimensão, e cerca de 1600 agricultores dedicados exclusivamente ao arroz. Ao todo, Portugal produz por ano cerca de 100 mil toneladas de arroz carolino. "É o bastante para suprir as necessidades do mercado interno e ainda para abastecer o chamado mercado da saudade, ou seja, as comunidades de emigrantes", afiança Pedro Monteiro, para reiterar que "não há razões para alarme, desde que os consumidores continuem a comportar-se normalmente".
Apelo de Marriann Fischer-Boel
A comissária da Agricultura da União Europeia, Mariann Fischer-Boel, pediu aos consumidores que não cedam à tentação de comprar mais géneros alimentares do que os necessários. "Não temos carências alimentares na Europa. Se os cidadãos comprarem apenas aquilo de que precisam, haverá comida suficiente para toda a gente", declarou, entre críticas às promoções do género "pague dois e leve três", que inflacionam o consumo, e aos retalhistas que estão a aproveitar a crise alimentícia mundial para aumentar o preço dos produtos alimentares básicos.
No mês passado, peritos da Comissão Europeia concluiram que o preço a retalho de um cabaz alimentar aumentou muito mais do que o devido, considerando o aumento verificado nas matérias-primas durante o mesmo período. Os preços do páo e dos cereais, por exemplo, aumentaram dez por cento, mais do triplo do aumento de três por cento que era aguardado pelos peritos.
Portugal não é auto-suficiente mas situação não justifica racionamentos
Portugal não é auto-suficiente em termos alimentares nem existem reservas estratégicas para eventuais crises. Mas, apesar disso, a decisão tomada pelo Lidl de racionar a venda de arroz foi recebido com estupefacção. Não há escassez que justifique esta medida, que está a ser vista como perniciosa dado o alarme social que pode gerar.
"Não faz sentido nenhum, a única coisa que disso pode resultar é levar as pessoas a açambarcarem ar-roz sem necessidade nenhuma", diz Luís Mira, da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP). "Não se justifica pois, entre os cereais, o arroz ainda é aquele onde temos taxas mais elevadas de auto-suficiência", diz, por seu lado, Maria Antónia Figueiredo, do Observatório dos Mercados Agrícolas. "Sobretudo quando se sabe que até se esperam aumentos desta cultura em Portugal neste ano", acrescentou Francisco Avillez, da consultora Agroges.
Os números de auto-suficiência da produção alimentar do país não são brilhantes, excepto no caso do leite e do vinho, em que a produção excede o consumo interno. Entre os cereais, o arroz ainda é aquele onde se atingem taxas mais elevadas, chegando aos 74 por cento. Nos restantes, o panorama é desolador: o trigo situa-se em cerca de dez por cento e o milho em menos de 33 por cento.
A situação também não é má no caso das galinhas e companhia, ultrapassando os 90 por cento. Nos suínos, a fasquia cai para os 70 por cento e nos bovinos só é produzido em solo nacional metade do que se consome. Nos produtos hortícolas há alguma independência e nas frutas pesam os apetites por produtos tropicais, de que muitos já não abdicam.
Há, porém, aqui uma "nuance": toda a produção animal intensiva depende de rações e, neste caso, o país importa 80 por cento de matéria-prima (cereais) utilizada nesta indústria, adiantou Jaime Piçarra, da Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais
Não havendo, assim, um problema de extrema dependência externa no caso do arroz, poderá de qualquer forma a medida do Lidl fazer algum sentido dada a turbulência nos mercados internacionais? "Nenhum", dizem os especialistas que o PÚBLICO contactou.
Os empresários deste sector também não percebem a razão desta atitude. Pedro Monteiro, da Associação Nacional dos Industriais de Arroz, refere que se têm sentido algumas dificuldades na importação por causa de alguns países terem fechado fronteiras, com excepção do maior exportador mundial - a Tailândia. As principais fontes de Portugal são a Guiana Francesa e o Suriname, que, apesar de terem tido problemas climatéricos, continuam a assegurar o escoamento. A contrapartida é cobrarem os preços mais altos.
Razões para que este responsável não considere a situação preocupante, tanto mais que mantendo a Tailândia as portas abertas - algo que acredita que vai acontecer -, "as coisas tendem a normalizar, até porque se prevê agora uma boa campanha de cereais, arroz incluído", acrescentou.
De facto, todas as perspectivas até à data são optimistas, tanto nacionais como internacionais. A nível mundial espera-se um aumento da produção de cereais e em Portugal houve também um crescimento da área plantada. Segundo o último boletim mensal da agricultura do Instituto Nacional de Estatística, "para o arroz prevê-se, como resposta à subida do preço, um aumento da superfície semeada na ordem dos cinco por cento, face ao ano transacto".
Quanto aos outros cereais, "as actuais previsões de produtividade apontam para acréscimos, comparativamente à campanha transacta, que variam entre os 25 por cento para o triticale, os 20 por cento para o trigo mole e aveia e os 15 por cento para o trigo duro e cevada; para o centeio não se prevêem aumentos de produtividade face a 2007", adianta ainda o INE.
Mas até ao lavar dos cestos é vindima: "Vamos ver como se comporta o tempo porque se chover nas colheitas, pode haver problemas", alerta Jaime Piçarra.