Distorção
China promove o mito da coesão social através da história
Todas as dinastias chinesas tentaram moldar a história
por John Branch
04/09/2014 | 03h08
China promove o mito da coesão social através da história Gilles Sabrie/NYTNS
Turista posa com mulher fantasiada em museu na China Foto: Gilles Sabrie / NYTNS
Eles vêm para passear de camelo, em busca de uma chance de se vestirem como um soldado conquistador da dinastia Qing, ou para tirar selfies em um dos templos Islâmicos mais importantes de Xinjiang, uma região extensa no extremo noroeste da China.
Porém, centenas de turistas chineses que vão todos os dias ao Mausoléu Afaq Khoja quase sempre estão interessados em apenas uma das criptas em meio a dezenas de outras sob o enorme domo do santuário construído no século XVII. Esse é o túmulo que teria pertencido a Iparhan, uma consorte imperial uigur, que, de acordo com a lenda, possuía um odor tão doce e suave que atraiu o imperador chinês a 4,3 mil quilômetros, em Pequim – e que teria sido convidada a viver com ele, ou foi trazida ao palácio como um troféu de guerra.
— O amor entre ela e o imperador Qianlong era tão grande que, depois que ela morreu, ele enviou 120 homens para transportarem seu corpo de volta para ser enterrado em sua terra natal. Essa jornada durou três anos — contou um guia, atraindo sorrisos e a aprovação do público.
Porém, quando os turistas se afastaram, um morador da cidade ofereceu uma versão completamente diferente: Iparhan era pouco mais que uma escrava sexual, assassinada pela mãe do imperador Qianlong, depois de se negar diversas vezes a aceitá-lo.
— A história conhecida pela maioria dos chineses é completamente inventada. A verdade é que ela nem está enterrada aqui — afirmou o homem, da etnia uigur, que não quis revelar seu nome por medo das autoridades.
Nas seis décadas desde que assumiu o poder, o Partido Comunista da China devotou enormes recursos para criar narrativas históricas que visam legitimar seu governo e ofuscar suas falhas. A fome desastrosa que ceifou milhões de vidas no século passado teria sido causada pelo clima ruim, não pelas políticas erradas de Mao. Os livros de história da China frequentemente culpam os EUA pelo início da Guerra da Coreia, não as tropas comunistas da Coreia do Norte que invadiram a Coreia do Sul, conforme creem quase todos os historiadores.
Quando se trata das minorias étnicas da China, a máquina histórica do Partido Comunista faz tudo o que está a seu alcance para mostrar uigures, mongóis, tibetanos e outros grupos como membros de uma grande família estendida, cujas pátrias tradicionais sempre fizeram parte da nação chinesa.
As narrativas alternativas são muito menos alegres. Elas incluem histórias de sujeição e repressão em meio a iniciativas do governo para diluir a identidade étnica por meio da introdução de membros do grupo dominante da China, o Han.
Historiadores chineses raramente fogem dos roteiros oficiais; especialistas uigures e tibetanos que insistem em escrever a respeito de aspectos polêmicos do governo comunista tiveram seus livros banidos e suas carreiras destruídas.
James A. Millward, professor da Universidade Georgetown que estuda as fronteiras etnicamente diversificadas da China, afirmou que o desejo de moldar a história, embora não seja uma exclusividade da China, era praticado por todas as dinastias em uma iniciativa de vilipendiar os predecessores do imperador e glorificar seu governo.
Porém, os comunistas também buscaram utilizar a história contra as aspirações separatistas, legitimando as tentativas do governo de controlar populações possivelmente rebeldes.
— A capacidade de controlar as narrativas históricas e retocar realidades problemáticas é uma ferramenta poderosa, que também revela as inseguranças do partido em relação a determinados aspectos do passado de que ele preferia que o mundo se esquecesse — afirmou Millward.
À medida que o descontentamento dos uigures em relação ao governo chinês torna-se cada vez mais violento em Xinjiang, essa abordagem propagandista da história local se torna ainda mais importante.
Ao longo do último ano, ao menos 200 pessoas foram mortas na região, inclusive muitos hans, assassinados pelo que o governo chama de "terroristas", embora a maioria dos mortos sejam uigures, assassinados em circunstâncias obscuras.
Em momentos como esses, parece que Iparhan é tudo o que a China precisa. Embora a história de Iparhan, conhecida pelos chineses como Xiangfei, ou Concubina Cheirosa, tenha se popularizado na primeira metade do século XX, sofreu modificações significativas por parte dos historiadores do partido. A maioria tenta transformá-la em um símbolo da longa amizade entre hans e uigures, cuja cultura centro-asiática, a fé muçulmana e a língua de origem turca os tornam tão diferentes dos hans.
Versões mais antigas mostram Xiangfei como uma bela desafiadora, capturada por Qing durante uma batalha, que mantinha adagas escondidas em suas mangas e que se manteve casta até o fim, quando foi morta pelos eunucos do palácio, ou foi forçada a cometer suicídio.
Porém, essa história foi substituído por um conto romântico com final feliz que celebra a tentativa do imperador de ganhar seu amor por meio da construção de um pequeno vilarejo kashgar em frente à sua janela em Pequim, além de presentear sua amada com melões doces e azeitonas de sua terra natal.
Atualmente, Xiangfei é tema de poemas, peças e programas de TV, além de ser o nome de uma cadeia de restaurantes de frango assado, de uma marca de uvas passas e, obviamente, de uma linha de perfumes .
Rian Thum, professor de história uigur da Universidade Loyola de Nova Orleans, afirmou que além de sugerir um antigo relacionamento entre hans e uigures, a Xiangfei mítica servia para reforçar a imagem das mulheres uigures como seres exóticos, voluntariosos e um pouco perigosos.
— O fato de os uigures serem vistos como figuras sexualizadas e exóticas por tantos chineses hans torna a história de Xiangfei especialmente atraente — afirmou.
Os propagandistas do partido são especialmente atraídos por personagens femininas que participaram de grandes lutas de poder envolvendo regiões conflituosas nas margens do antigo império chinês.
Na Mongólia Interior, as vastas planícies gramadas que formam o espaço entre a China e a Mongólia, a personagem é Wang Zhaojun, uma consorte apaixonada da dinastia Han que se entregou para um príncipe mongol "bárbaro" com o objetivo de firmar a aliança entre os dois povos. No Tibet, a personagem é Wencheng, uma princesa chinesa do século VII que, de acordo com o folclore, foi um presente que selou a paz com um violento rei tibetano.
Para a consternação de muitos tibetanos, a princesa Wencheng costuma ser exibida como a responsável por pacificar o Tibet e introduzir na região avançadas práticas chinesas na agricultura e na tecelagem, o budismo e até mesmo o alfabeto tibetano. Entretanto, alguns historiadores questionam a própria existência de Wencheng.
A história da Princesa Wencheng é bem conhecida pelos jovens chineses, e sua personagem dominou Lhasa, a capital tibetana, na forma de um espetáculo de ópera que, de acordo com os materiais de divulgação, "celebra a antiga amizade entre os dois povos".
A escritora tibetana Tsering Woeser, que assistiu ao espetáculo logo depois da estreia no ano passado, afirmou que ficou assustada com as mensagens que exibiam o povo tibetano como selvagens que precisavam de civilização.
— Costumávamos ver a história da Princesa Wencheng com simpatia, mas ela se tornou uma ferramenta de propaganda tão horrível, que só posso ficar ofendida — afirmou Woeser.
Muitos uigures acham a versão popularizada da história de Xiangfei assustadora, embora sua ira geralmente seja direcionada à apropriação do Mausoléu de Afaq Khoja – um santuário sagrado para os sufis, onde um clã que dominou a região de Kashgar está sepultado – e sua transformação em uma espécie de cidade cenográfica para a fábula chinesa. Segundo eles, os arqueólogos identificaram há muito tempo o túmulo de uma concubina chamada Xiangfei nos arredores de Pequim.
Parte do ressentimento também vem da decisão do governo de transformar um lugar que atraía peregrinos em uma atração religiosa sem significa religioso. Atualmente, os monumentos históricos são gerenciados por uma empresa chinesa que cobra entrada dos turistas.
Rian Thum, professor de história uigur na Universidade Loyola de Nova Orleans, afirmou que o governo chinês foi bem sucedido em sua tentativa de moldar a forma como hans e uigures veem o templo, especialmente no que diz respeito à sua associação com os khojas, que combateram os ocupantes qing e estabeleceram um Estado independente por um curto período em meados do século XIX.
— Em seu favor, o governo tomou um símbolo da resistência uigur ao domínio chinês e o transformou no veículo para a mensagem que eles desejam transmitir — afirmou.