Desarmamento: a farsa do referendo
por Peter Hof em 18 de agosto de 2005
Resumo: Como a verdadeira raiz do problema não está sendo atacada, a criminalidade vai continuar aumentando, proíba-se ou não a venda de armas de fogo no Brasil. E isto os anti-armas sabem muito bem.
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Uma coisa precisa ficar bem clara para o leitor: o referendo popular sobre a proibição, ou não, da venda de armas e munição no Brasil é uma grande farsa. Do ponto de vista prático e face à Lei No 10.826, de 22/12/2003, também conhecida como Estatuto do Desarmamento, o referendo só vai acrescentar uma coisa a tudo o que foi feito no assunto: uma despesa de 500 milhões de Reais. A imprensa noticia sempre que o custo é de ‘apenas’ 200 milhões de Reais. No entanto (já notaram que tem sempre um chato colecionando matérias de jornal?), em matéria intitulada Ministério da Justiça vai reforçar campanha do desarmamento, publicada no Globo de 27/2/05, pág. 16, lê-se: “O governo reservou R$ 200 milhões para a consulta popular (referendo). Mas, com base em eleições anteriores, o TSE calcula que a disputa não custará menos de R$ 500 milhões.” Note o atento leitor que embora exista a ‘pequena’ divergência de 300 milhões de Reais, ninguém se deu ao trabalho de vir a público dar uma explicação sobre tão discrepantes estimativas. Quanto a mim, entre acreditar em um governo desmoralizado, incapaz de perceber a imundície em que está metido, e a Justiça Eleitoral que organiza eleições há décadas e hoje tem um sistema eleitoral que é modelo em todo o mundo, fico com a segunda opção.
O jornal Folha de São Paulo do dia 13/7/05 parece confirmar minha previsão quando noticia (pág. C3) que a Associação dos Delegados do Brasil (ADEPOL) entrou no STF com uma ação direta de inconstitucionalidade contra o referendo. A razão, segundo o presidente da ADEPOL, delegado Wladimir Reale: os delegados consideram que a proibição da venda de armas e munições acarretará aumento do contrabando e a violência não vai cair. Vindo de onde vem este é um argumento de respeito e que precisa ser ouvido com a maior atenção. Além do mais, acrescenta o doutor Reale, o referendo vai custar cerca de 700 milhões de Reais! (grifo meu).
O final da história, nós que pagamos a conta, sabemos: se for apurado com o devido rigor, o custo certamente ultrapassará em muito os 200 milhões de Reais calculados pelo Governo.
Creio que bem poucas pessoas leram a Lei No 10.826 e entenderam o porquê do referendo. E só aí se começa a entender toda a enganação que envolve o assunto. Vamos dar uma rápida olhada no Estatuto. Ele compreende seis Capítulos e 37 Artigos, além de um anexo (Tabela de Taxas). Cada capítulo trata de um assunto referente à posse, uso e penas referentes a armas de fogo.
Capítulo I – Do Sistema Nacional de Armas. Aqui foram definidos todos os aspectos relativos ao SINARM – Sistema Nacional de Armas. O órgão do Ministério da Justiça encarregado do controle das armas de fogo no país (compra venda, transferência, porte, etc.). Em suma, é uma definição da competência de quem vai controlar a posse e porte de armas e munição no país.
Capítulo II – Do Registro. Nos seus dois artigos (III e IV) define procedimentos para o registro de armas de fogo, acessórios e munição. O torniquete começa a apertar no caput do artigo IV quando estabelece: “Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender os seguintes requisitos...” A seguir lista uma relação de documentos e provas que o interessado precisa fazer e que tem um custo total de R$ 1.100,00 (R$300 para o governo, R$250 de honorários do despachante, R$250 de certidões negativas, R$200 do psicotécnico, R$100 para aluguel do stand para prova prática em um clube de tiro). Como disse, nesse artigo está o primeiro obstáculo (armadilha, melhor dizendo): quem garante que a autoridade do lugar onde você mora vai aceitar sua alegação de efetiva necessidade? Você pode alegar que mora a quinze minutos de carro da delegacia e ele dizer que a área é ‘bem patrulhada’ e a polícia garante sua segurança. Até um ladrão invadir sua casa, roubar tudo além de possivelmente matar você e sua família, é a sua palavra contra a dele e naturalmente vale a dele.
Capítulo III – Do Porte. Define quem e porque deve ter porte de armas. Desnecessário dizer que se criaram todos os tipos de barreiras para que um cidadão comum, que paga religiosamente seus impostos, consiga ter um porte. Este capítulo tornou o porte virtualmente impossível. Hoje existem no Brasil 23 pessoas com porte de arma. Conhecendo-se como são as coisas ao sul do Equador seria interessante saber qual o critério e a razão para ter sido concedido o porte para estes 23 felizardos.
Capítulo IV – Dos crimes e das penas. Este, com seus nove artigos, é possivelmente o mais importante de todo o Estatuto. Aqui estão cominadas todas as penas para quem tem uma arma de fogo, mesmo que dentro de sua própria casa. Em outras palavras, se estiverem invadindo sua casa não faça nada! Submeta-se a sanha dos invasores! Se você tentar defender seu lar e sua família usando uma arma de fogo e ferir o invasor com uma arma sem registro você vai para a cadeia por dois a quatro anos, sendo isto classificado como crime inafiançável. (Artigo 15, Parágrafo Único). Já o invasor, se for primário e estiver portando arma branca, estará solto ao sair do hospital.
Resolvi então consultar a Constituição Brasileira. Para minha surpresa encontrei o seguinte no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Artigo 5º :
Inciso XLII: A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
Inciso XLIII: A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito (sic) de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
Inciso XLIV: Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Eu não sou advogado e pouco sei sobre Direito. Assim peço a um advogado que faça a gentileza de me explicar o seguinte: Como uma lei pode classificar um crime como inafiançável se a Constituição, que supostamente é a Lei Magna do país, lista especificamente os crimes inafiançáveis e “ posse de armas” não está entre eles?
Capítulo V – Disposições gerais. Aqui mais restrições são impostas e o Artigo 28 apresenta mais uma aberração: veda a menores de 25 anos adquirir armas de fogo. Pessoas com menos de 25 anos podem casar, dirigir carros, barcos e aviões, servir às Forças Armadas, ir à guerra, comprar bebidas alcoólicas. Armas de fogo, não. Interessante que o jornal O Globo, em sua edição de 7/7/05 publicou matéria de página inteira intitulada A guerra do trânsito carioca, onde mostra o que acontece nas ruas do Rio de Janeiro. Entre outras coisas o artigo, baseado em uma pesquisa de dois meses nas instituições responsáveis por atender acidentes de trânsito, mostra que 40% dos envolvidos apresentavam hálito etílico e que 45% dos acidentados tinham entre 18 e 30anos. Por que então as ONGs e as Organizações Globo não iniciam uma campanha para que menores de 25 anos sejam proibidos de dirigir? (leia meu artigo DESARMAMENTO: EVITANDO UMA CARNIFICINA E UM GENOCÍDIO). Por que não se pune severamente o motorista alcoolizado? Por que alguém que atira para o alto para evitar uma tragédia é preso inafiançável quando o motorista de 23 anos, que na manhã de domingo, 26/6/05, alcoolizado e dirigindo a 100 quilômetros por hora na Avenida Vieira Souto, no Rio, matou um cidadão e estava solto por ordem da Justiça no fim da tarde do mesmo dia?
Capítulo VI – Disposições finais. Aqui esta armada a arapuca que transforma uma lei idiota, inconstitucional, em uma farsa. O Artigo 35 especifica: É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no artigo 6º desta lei. E o parágrafo 1º define: Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.
O leitor mais cético poderá pensar que estou exagerando. Muito bem, vamos ver o que acontecerá com o cidadão obediente à lei que, em respeito ao Capítulo Dois do Estatuto do Desarmamento (Do Registro), registrou sua arma e gastou para tanto 1.100 Reais e o Sim do referendo for o vencedor. Se tal ocorrer, a comercialização de armas e munição no país será proibida. E como farão aqueles que possuem uma arma legal para comprar munição? Não é preciso ser um gênio para saber que restarão ao cidadão decente as seguintes opções: a) Ir até a Pedro Juan Cabalero, Paraguai, e comprar munição à vontade, já que no país vizinho não existe nenhuma restrição à compra de armas e munições, nem se pede nenhum documento para tal. b) Aproveitar uma viagem a Buenos Aires e fazer o mesmo. Na Argentina o comércio de armas e munição é livre. c) Procurar qualquer vendedor clandestino de munição - este é um “negócio” que com toda certeza vai prosperar - e comprar munição à vontade.
Após ler o Estatuto do Desarmamento qualquer pessoa de bom senso percebe que este referendo é: a) Uma peça de fancaria, b) Uma besteira e c) Um desperdício de dinheiro.
Nos 37 artigos distribuídos por seus seis capítulos a Lei 10.826 define tudo sobre a posse, o porte de armas de fogo no Brasil. Desce a detalhes desde a idade mínima para um cidadão comprar uma arma, passando pela marcação dos cartuchos, até a proibição da fabricação ou importação de réplicas de armas de fogo (Artigo 26, Cap. V). Está tudo ali, tudo o que é essencial, menos a comercialização, que deve ser aprovada pela população. E aí está a farsa: qual a importância da comercialização de armas de fogo se foram criados todos os tipos de obstáculo a sua posse? Quem vai querer, a cada três anos, como determina a lei, passar por um aborrecido, caro e longo processo de re-registrar sua arma? Imaginem um cidadão que mora em uma pequena cidade tendo de viajar, no mínimo duas vezes a um grande centro, para obter a re-certificação do registro de sua arma e este ritual se repetirá a cada três anos. Quem vai querer ter o direito de comprar 50 (cinqüenta cartuchos por ano) a um preço absurdo para, ao fim de 365 dias, se não os usou, ter de entregá-los à Polícia sem receber o ressarcimento pelo que pagou pela munição? Quem vai querer correr o risco de, ao fim de três anos, quando for renovar sua licença, por uma razão qualquer a autoridade negar-lhe o direito de renovação e o cidadão ter sua arma confiscada? Quem vai querer correr o risco de registrar uma arma e amanhã os anti-armas, apoiados por um Congresso desmoralizado, conseguirem passar uma lei determinando que todas as armas registradas deverão ser entregues à polícia sob pena de 15 anos de prisão sem direito à fiança? Quem garante que não é este o plano dos anti-armas?
O Estatuto criou tantas barreiras à posse de armas que a questão de comercializar ou não armas de fogo, não tem o menor significado prático. A Taurus, segundo o jornal O Dia de 28/06/05 vendeu, em 2005, no mercado interno, apenas 360 armas. Isso equivale a ter vendido um (1) arma por dia em todo o Brasil! E a criminalidade diminuiu? Segundo relatório da Secretaria de Segurança Pública, no mesmo período, no Rio de Janeiro, os homicídios bateram o recorde histórico de 1995... E não foram resultado de brigas entre cidadãos sem passado criminal. Estes representam apenas 3,7% do total de casos registrados na pesquisa que estou realizando. Os 96,3% restantes foram todos resultantes de ações criminosas que o estapafúrdio Estatuto do Desarmamento não tem condições de evitar.
Então, o leitor deve se perguntar: qual o propósito do referendo? Em minha opinião existem duas razões, ambas ridículas e descabidas:
Primeira: O que se pretende com o referendo é a aplicação da maneira cínica e nojenta de se fazer as coisas no Brasil: Deputados e Senadores, apoiados por ONGs como o Viva Rio e Sou da Paz e governos estrangeiros, como o da Inglaterra, decidiram, através da lei no 10.826, noventa e nove por cento (99%) dos fatos relevantes relativos a posse de armas de fogo. Agora querem a chancela popular para o monstrengo que engendraram entregando a migalha de 1% da lei para a população decidir. E “por acaso” é aquele 1% que não tem o menor impacto no âmbito maior da lei em questão. Se houvesse boa-fé e real vontade de se ouvir a população por que não fazer da maneira como os países integrantes da União Européia face à questão da sua Constituição? Se quisessem fazer a coisa de forma democrática deveriam ter promovido um amplo debate popular sobre todos os artigos de uma proposta de Lei do Desarmamento e só então se faria um referendo. Esta seria a forma honesta de tratar a questão. Da maneira como está sendo feita é um engodo, uma farsa, um simulacro.
Segunda: Como a verdadeira raiz do problema não está sendo atacada, a criminalidade vai continuar aumentando, proíba-se ou não a venda de armas de fogo no Brasil. E isto os anti-armas sabem muito bem. Quando o clamor da população crescer, Suas Excelências vão poder cinicamente dizer: “Mas o povo chancelou. Vejam o resultado do referendo!”. Em outras palavras, como sempre, joga-se nas costas da população a culpa por algum problema que as “autoridades”, regiamente pagas pela população, são incapazes de resolver. Estou exagerando? Está o estimado leitor lembrando a quem foi imputada a culpa pelos altos juros? Uma história sobre traseiros e cadeiras? E para homologar esta farsa vão ser desperdiçados mais de quinhentos milhões de Reais.
Duas coisas são importantes neste referendo: saber o percentual de abstinência que irá ocorrer, o que demonstraria cabalmente o interesse da população sobre o assunto e, se o ‘Não’ vencer com que cara ficarão os Deputados e Senadores que votaram esta lei idiota? Será que eles vão gostar de saber que votaram contra o desejo da maioria de seus eleitores? E isso é de fato importante? Para aqueles que enxergam no eleitor apenas a gazua para acessar o grande balcão de negócios em que o Congresso se transformou, pouco lhes importa.
Não pense o leitor que estou recomendando que se abstenha de votar no referendo, simplesmente por ele ser uma farsa. Não faça isso! É importante que todos os que não concordam com esse estado de coisas compareçam em massa e votem “NÃO”. Esta é uma situação que, independentemente do resultado do referendo, quem votar NÃO será sempre vencedor.
Se o resultado for NÃO (o que esperamos), o eleitor estará mostrando ao Congresso, ao Ministério da Justiça, e às ONGs Viva Rio, Sou da Paz e ao governo inglês, que não concordou nem com o Estatuto do Desarmamento nem com a farsa do referendo.
No pior cenário, se o SIM vencer e amanhã a sociedade se levantar contra a violência que, sem sombra de dúvida, continuará campeando desenfreada, todos os que forem a favor do SIM começarão a engendrar desculpas esfarrapadas para explicar porque nada mudou após tudo o que maquinaram e a montanha de dinheiro que foi jogada no ralo. E você, amigo leitor, poderá rir na cara deles, pois terá a consciência tranqüila de alguém que NÃO pactuou com uma farsa.
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Gostei muito deste artigo. É uma ótima análise sobre a Lei 10826/2003, o referendo e suas conseqüências.