Artigo publicado na edição de 10 de Setembro de 2009
© Nuno Brites
«O problema fundamental da economia portuguesa é não ter oferta. Não se produz aqui o número e volume suficiente de bens e serviços que possa ser vendido, que dê para criar rendimento e sustentar o nível de vida que temos hoje»
"O problema fundamental da economia portuguesa é não ter oferta"
Economista e director-geral da COTEC: crise e recuperação, o imperativo de exportar e o que de pior e de melhor o Governo tem feito em matéria de política económica, são alguns dos temas que mereceram o comentário de Daniel Bessa. Com longa experiência no ensino, o economista falou ainda do que tem mudado nas salas de aula nas últimas décadas e dos objectivos que tem para a COTEC.
O que mais o tem surpreendido na economia mundial nos últimos tempos?
Se quiser lançar sobre isso uma luz positiva, talvez a capacidade de regeneração. Há nove meses pensávamos estar perto da catástrofe e hoje imagina-se que pelo menos a economia dos Estados Unidos começará a recuperar no final deste ano. Sabe-se que continuarão a existir problemas sérios, mas aquele espectro de uma falência total do sistema financeiro, em que se pensava no último trimestre do ano passado, parece recuperado.
Não teremos mais surpresas a esse nível?
Penso que a fase mais ameaçadora passou. Falta saber se todas as perdas estão assumidas e à mostra, mas julgo que nos Estados Unidos uma boa parte das perdas é conhecida. Não é muito claro a que velocidade a economia vai recuperar, mas parece que o pior passou, e que se tem uma noção dos estragos.
E na economia portuguesa, o que o tem surpreendido?
Com esta crise internacional estamos a misturar as coisas. A economia portuguesa tem a sua própria crise. Desde a recessão anterior, em 2001/2002, cresceu pouquíssimo, menos de 1% ao ano, em média, quando a economia mundial teve o crescimento mais rápido de sempre, acima dos 5% ao ano, entre 2003 a 2007. A partir de 2008, as coisas misturaram-se e, quando a crise passar, nós continuaremos com a nossa. É outra questão e obriga a outros remédios. É importante que a crise mundial passe, para que possamos olhar para nós e não confundir os nossos problemas com os da economia global.
Quais são os principais problemas estruturais que identifica?
O problema fundamental da economia portuguesa é não ter oferta. Não se produz aqui um número e volume suficiente de bens e serviços que possa ser vendido, que dê para criar rendimento e sustentar o nível de vida que temos hoje. À entrada da crise, a economia portuguesa absorvia 10% mais do que produzia. Para viabilizar este nível de vida era preciso produzir mais dois milhões de euros por hora, que alguém comprasse por esse mundo. A nossa economia tem de ganhar alguma competitividade, ser capaz de vender mais alguma coisa.
Está a falar da iniciativa privada. Mas existe um enquadramento. Tem sido bem gerido?
Não é o Estado que vai produzir ou vender, mas temos de ver o que pode fazer para ajudar. Entramos nas questões regulamentares e fiscais. O que tem sido menos bem gerido é a ideia de que o Estado pode ajudar gastando dinheiro e comprando coisas, o que tem empurrado o Estado para um nível de despesa elevadíssimo e para um défice muito elevado. Quando o Estado gasta, ajuda pouco, porque a maior parte das coisas é importada. É muito mais importante reduzir os impostos sobre as empresas para criar um ambiente favorável ao investimento. Há quem pense que quanto mais infra-estruturas criar melhor. Não estou nada convencido disso. Não é por aí que as coisas vão mudar em termos de produção e emprego. Deve é baixar a carga fiscal sobre as empresas e premiar fiscalmente as que invistam, criando crédito fiscal sobre o investimento, por exemplo. Lucro reinvestido não pagaria imposto. Seria um incentivo para reinvestirem na actividade.
Que aspectos positivos salientaria na política económica nacional?
O aspecto mais positivo é a capacidade que o Estado tem revelado de reduzir pensões, sem que as pessoas se queixem muito. Tem sido distinguido internacionalmente pelas medidas que tomou em matéria de sustentabilidade de segurança social. É fundamental, porque é uma das áreas de despesa mais pesadas, em que está a gastar mais dinheiro, e o Estado, de uma forma inteligente, está a conseguir reduzi-las. É um exercício violento, mas tem de ser feito. Temos é de ver como é distribuído e como se poupam os mais pobres disso. A sustentabilidade da segurança social é uma frase simpática, cujo significado é reduzir pensões. Mas tenho de reconhecer que era indispensável. Na área da saúde, reduziu a despesa, reduzindo o preço dos medicamentos. A seguir tem de ser por via da redução do consumo, porque não pode continuar a descer o preço dos medicamentos. As empresas que vendem medicamentos em Portugal perderam 25 a 30% da receita. O passo seguinte passa por comparticipar menos. Até agora o utente não foi penalizado, a partir de agora vai ser, como foi o pensionista. Mas tudo isto é inevitável, porque se a economia não crescer, não consegue sustentar o nível de despesa que estava anunciado, resultado do envelhecimento da população.
© Nuno Brites
Que características reúnem as PME que sobreviverem ao impacto e se mantiverem no mercado durante a próxima década?
O que há de novo, e talvez de mais positivo na economia portuguesa, tem a ver com as PME, que têm crescido, algumas com pendor tecnológico muito forte. Não é dos grandes porta-aviões que tem vindo o crescimento. Das grandes empresas não surgem notícias muito boas. Quem tem criado mais emprego e exportado mais, são as PME. A Critical Software é um exemplo. O problema é que temos poucas destas empresas e já não estamos a falar dos têxteis, da madeira ou do calçado, nem sequer de automóveis, mas de actividades novas, de serviços, empresas muito mais sofisticadas. É outro campeonato, onde a economia portuguesa tem de entrar, e está a entrar, mas lentamente. A balança tecnológica, onde se registam sobretudo importações e exportações de serviços mais tecnológicos, tornou-se positiva em Portugal nos últimos anos, o que normalmente não é valorizado. O caminho está bem, falta é escala.
Segundo um inquérito realizado pela escola de negócios AESE, o turismo e restauração é o sector apontado como tendo maior potencial de crescimento na economia portuguesa. Concorda?
Estou completamente de acordo. Mas há turismo novo. Portugal tem um potencial enorme na área do turismo de saúde. O turismo de saúde é, por exemplo, alguém que é operado ao coração nos Estados Unidos e 24 horas depois está no avião a caminho da Costa Rica para fazer o pós-operatório, que exige outros cuidados. Portugal pode acolher serviços desse tipo em larga escala. Até porque a definição de turista é quem vem do exterior e dorme aqui, independentemente do que vem fazer. Temos um clima ameno, um nível segurança razoável, uma população simpática, que recebe bem. Refiro-me ao pós-operatório, à componente hoteleira. Portugal também tem hipóteses na parte mais sofisticada, tem excelentes hospitais, só que não é isso que distingue o País, mas a capacidade de fazer bem e barato a componente hoteleira.
Depois das tecnologias de informação, e do impacto que tiveram na actividade económica, antevê uma nova revolução tecnológica, noutra área?
À volta do Porto, por exemplo, desenvolveu-se um pólo de saúde muito interessante, onde estão empresas que produzem dispositivos médicos, que envolvem a indústria têxtil, do plástico e dos equipamentos metálicos. Camas articuladas, pequenos instrumentos para os hospitais. Há um cluster de empresas com bastante dimensão, em que Portugal tem condições excelentes de competitividade. Seria uma espécie de migração das Tecnologias de Informação para a componente mais Bio. Ainda dentro da componente Bio, existem indústrias alimentares que podem fazer um bom trabalho em Portugal. Áreas como o vinho, os cereais, o azeite, onde hoje a investigação e o desenvolvimento têm um peso importante e em que Portugal pode ter uma palavra a dizer. Hoje discutíamos aqui na COTEC, numa reunião, que com uma investigação mais aprofundada das castas de uvas se podia perceber quais resistem melhor no tempo. Numa área tradicional como o vinho, podemos caminhar para áreas de sofisticação. Estamos a falar de investigação ao nível do laboratório e de aliar a componente tecnológica aos sectores tradicionais.
Voltando um pouco atrás. Geralmente os economistas vêem na recuperação do consumo sinais de retoma económica. Não é um contra-senso, atendendo ao nível de endividamento que temos?
Do ponto de vista do curto prazo ter um pouco mais de despesa é bom para as empresas. Mas no longo prazo não é o consumo que nos vai salvar, mas as exportações. E o consumo vai crescer muito pouco em Portugal, porque as famílias estão muito endividadas. Não me admiraria que estagnasse nos próximos dez anos. Irá começar a crescer, mas quando tivermos mais exportações e mais pessoas com emprego nessa área. Com os recentes acontecimentos no mundo financeiro, começou a falar-se mais ainda em temas como ética, sustentabilidade e responsabilidade social, como sendo essenciais a um progresso económico que não comprometa as gerações futuras.
Faz sentido continuar a ter como objectivo principal o crescimento do PIB?
O crescimento do PIB provavelmente será sempre o grande objectivo, mas tem de ser acompanhado de outros. Hoje as empresas olham muito para a sustentabilidade do negócio e ambiental, e esses aspectos terão cada vez mais importância. Vamos trocar os automóveis a gasolina por carros eléctricos. Penso que vão surgir soluções que compatibilizem melhor esses objectivos.
É uma mudança do topo para as bases ou das bases para o topo?
Quem vai ganhar a economia do futuro é quem resolver melhor esses problemas. Temos um ambiente deteriorado, comemos coisas que nos fazem mal, estamos envolvidos em processos que nos destroem a saúde e muitas dessas questões vão ser esclarecidas. Vão ser esclarecidas. Quem mais depressa as esclarecer e resolver terá uma vantagem competitiva enorme e mercado garantido. Essas são as grandes batalhas do futuro. Desse ponto de vista, em nome do futuro, a opção pelas renováveis e a aposta nos carros eléctricos, parecem-me bem, mesmo custando muito dinheiro. Os carrinhos que vão ser vendidos vão ficar-nos muito caros, porque tanto a produção como o consumo vão ser subsidiados. Mas se nos colocarem na linha da frente para, no futuro, produzirmos às centenas de milhares ou aos milhões, é dinheiro bem gasto. A Autoeuropa também custou muito dinheiro.
© Nuno Brites
O preço do petróleo vai voltar a ser um problema a curto prazo?
O petróleo, os hidrocarbonetos têm o fim anunciado. Podem ser 20 ou 50 anos. Acabam no dia em que extrair uma tonelada de petróleo custar mais que o que ele rende. Um dos motivos de subida do preço, deriva de estar a ser extraído cada vez mais fundo, com custos mais elevados. É difícil fugir a essa tendência Se a procura diminuir, também não há preço que justifique a extracção. A solução mais simpática era a procura desviar-se o suficiente para o petróleo morrer sem chegar a ser muito caro. Se a procura não se desvia, vamos ter níveis de preços altíssimos. A construção de outras fontes está em curso, lentamente. Por exemplo, a Administração Obama tem um plano muito agressivo nesse sentido.
Quais são as suas expectativas relativamente à política económica do Obama?
Nunca percebi muito bem a proposta. Uma vaga ideia de cuidar melhor dos pobres, regressar a alguns serviços públicos na saúde e educação. Continuam metidos num problema muito sério, de endividamento, e espera-se que o défice do Estado se mantenha muito elevado nos próximos anos. É uma questão de ordem global, que tem de ter uma solução, e não é só nos Estados Unidos. A questão central é também saber o que vai fazer a China. Bastará que deixe crescer os níveis de consumo e passe a importar mais, para resolver parte dos problemas. Uma coisa é certa, os Estados Unidos, ou consomem menos, ou exportam mais. A solução mais simpática passa por exportar mais, o que obriga a China a ter uma política de maior consumo e de alargamento dos beneficiários do desenvolvimento.
Prevê alterações em termos geopolíticos?
Há quem diga que a solução é uma guerra, e essa é a única que gostaria que não acontecesse. Eu confio que um dia destes a China aumentará o consumo. A China hoje vende e não compra, criou o défice nos Estados Unidos, mas não é por acaso que existem encontros mundiais para onde chamam a China e os Estados Unidos. A China não está interessada em que os Estados Unidos afundem, porque tem dívida pública americana que nunca mais acaba.
A internacionalização das empresas está na ordem do dia. O que falta ainda dizer sobre a matéria, nomeadamente às PME?
Que não há alternativa. As empresas portuguesas que estão a fazer melhor estão viradas para fora. Todas. Não existem casos de sucesso virados para dentro. A nossa prioridade na COTEC são empresas que possam crescer e isso só é possível exportando. A Salsa, por exemplo, tem um crescimento assente nas exportações. É das poucas empresas têxteis que tem uma história de sucesso. Não há uma única empresa que não saiba que tem de exportar.
Aponte duas medidas que tomaria no sentido de estimular a internacionalização das empresas?
Maior disponibilização de capital de risco público para projectos empresariais de internacionalização; isenção de IRC sobre lucros reinvestidos em projectos de internacionalização. No que se refere a esta, não tenho a certeza de que a discriminação subjacente seja aceitável pelas regras da União Europeia.
Qual a sua opinião em relação ao pagamento especial por conta? Devia ser abolido?
Vejo no pagamento especial por conta uma medida de carácter predominantemente financeiro, permitindo ao Estado antecipar a cobrança de alguns impostos. Numa situação de sufoco financeiro, como a que ainda vivemos, poderíamos equacionar a sua suspensão temporária, com o que, naturalmente, agravaríamos a situação financeira do Tesouro.
Em 2008, o Pinhal Litoral registou um excedente comercial, o que não acontecia desde 1995. Como comenta?
O Pinhal Litoral é uma das regiões mais industrializadas e mais exportadoras do País. É um resultado que não me surpreende e que não deixará de ser potenciado pela sofisticação tecnológica e pela intensificação da vocação exportadora das empresas da região.
© Nuno Brites
Tem uma longa carreira académica. O que tem mudado nos alunos com quem se vai cruzando?
O acesso à informação é muito superior. São culturalmente mais abertos porque viajam mais. Os melhores são muito melhores do que nós éramos. O problema é que o sistema massificou-se e perdeu capacidade de controlo nos segmentos mais frágeis, e portanto, também há alunos que noutros tempos não estariam ali. O grau de exigência desceu muito. O sistema perdeu qualidade nas franjas e não se consegue impor um grau de exigência aceitável. É também por isso que há muitos que não encontram emprego. Não têm uma preparação adequada.
Teve uma rápida passagem pelo governo. É uma experiência que repetiria?
Há coisas que só se fazem uma vez na vida. Nunca aprendi tanto em tão pouco tempo, nos três anos que estive na política. Continuar tinha um preço que não paguei e na hora própria vim embora. Seria incapaz de pagar o preço que o Mário Lino paga. Há o mínimo de respeito por nós próprios e de credibilidade.
Qual foi a maior aprendizagem?
A política é uma arte, no sentido de fazer convergir pessoas em soluções em que não se entendiam. Resolver o problema da Palestina exige do Obama uma competência e capacidade enormes. Também nos ensina sobre as pessoas. É no poder que revelam o pior e o melhor.
O que significaria sair da COTEC com o sentimento de dever cumprido?
Vim da Escola de Negócios, onde existiam objectivos definidos e sabíamos o que era fazer bem e mal. Aqui o difícil é estabelecer uma métrica do que é o sucesso. Seria, por exemplo, o número de empresas criadas no COHiTEC, o investimento associado, o emprego gerado, o volume de exportações que fizerem. Temos a rede das PME Inovadoras e aqui importa saber qual o crescimento dessas empresas e comparar com o das que não pertencem à rede. A COTEC trouxe a inovação para a ordem do dia. No primeiro semestre deste ano, saíram 700 notícias da COTEC em que forçosamente se falou de inovação. Em Espanha, este tipo de redes pede alterações legislativas, mas nós temos uma visão mais obreira. Trabalhamos muito com as empresas, investigadores, fundos de capital de risco. Quando alguém numa universidade tem uma ideia, vem ter à COTEC, porque sabe que fazemos a mediação entre a inovação e o mercado. Temos investidores que colocam dinheiro nesses projectos e fundos de capital de risco a intervir em fases sucessivas. Temos 14 milhões de euros investidos no COHiTEC. Entre 60 projectos, foram criadas duas empresas, estão outras duas em vias de entrar no mercado. Só trabalhamos com empresas de grande potencial de crescimento.
E enquanto ser humano, o que significa para si passar pela vida com o sentimento de dever cumprido?
Não sei se sou um exemplo a seguir… Sou muito independente. Não defini um caminho à partida. Nunca pedi emprego a ninguém, e não sei se isso é uma grande coisa. Fui respondendo a oportunidades e não me dou por descontente. Não gostava de perder a credibilidade pessoal, que valorizo muito, e o respeito dos muitos alunos que passaram por mim, que também prezo muito. Não tenho como objectivo chegar a algum sítio, mas manter uma imagem que me trouxe até aqui. Não tenho objectivos de posto ou remuneração. Apenas manter as razões que levaram as pessoas a acreditar em mim.
Artigo originalmente publicado no Jornal de Leiria. Reproduzido com a devida autorização. Todos os direitos reservados.
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A entrevista é de Setembro de 2009,mas como achei interessante a posto aqui.Além do mais gosto das colocações do Economista Daniel Bessa.