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Massera, sorridente, ao lado da presidente Isabelita Perón. Era um dos militares preferidos da presidente. Mas, Massera, junto com o general Jorge Rafael Videla e o brigadeiro Orlando Ramón Agosti, derrubaram Isabelita com um golpe militar em março de 1976.
“Serial killer com sorriso de Gardel”. Desta forma o escritor e jornalista Miguel Bonasso definia uma das figuras mais sinistras da última ditadura militar argentina (1976-83), o ex-almirante Emílio Massera, famoso pela sua crueldade, maquiavelismo e personalidade esquizofrênica. Quando em 1985 sentou no banco dos réus, o sorridente – e sempre bronzeado – militar foi acusado de 83 homicídios, 632 sequestros, 267 torturas, 102 roubos, 201 falsificações de documentos, 23 casos de pessoas reduzidas à escravidão, além de 11 sequestros de bebês e uma extorsão. Dono desse peculiar curriculum vitae, Massera morreu nesta segunda-feira no final da tarde em Buenos Aires de um AVC.
Massera – constantemente preocupado em ostentar impecáveis uniformes – foi o responsável pela criação do centro clandestino de torturas da Escola de Mecânica da Armada (ESMA), onde foram torturados 4.500 civis. Destes, apenas 150 sobreviveram.
Casanova (assassinou os maridos de algumas amantes) e vaidoso, tentava desesperadamente dissimular o tom citrino de sua pele (mal-vista pela elistista e europeizada Marinha). Para isso, bronzeava-se constantemente. Desta forma, quem o visse, pensaria que era um homem branco intensamente bronzeado. Para destacar mais ainda que estava “bronzeado” – e que não era um “morocho” (palavra usada para “moreno”, ocasionalmente usada em tom despectivo), vestia uniformes brancos (mesmo no inverno).
AMBIÇÕES PRESIDENCIAIS - Logo após o golpe militar de 1976, Massera conseguiu que a presidente derrubada, Maria Estela “Isabelita” de Perón, ficasse prisioneira em instalações da Marinha. Ele esperava arrancar de Isabelita um respaldo político para suas ambições presidenciais.
O almirante nunca escondeu que queria ser presidente. Para isso, contava com o respaldo da loggia maçônica P2, comandada desde a Itália por Licio Gelli, envolvido também no escândalo do banco Ambrosiano, vinculado ao Vaticano.
Ambicioso de protagonismo internacional, Massera, apoiado pelos EUA, pressionou pela criação de uma “OTAN do Atlântico Sul”, que seria composta pela Argentina, Uruguai, Brasil e a África do Sul. O projeto só naufragou porque o governo brasileiro não apoiava o regime do apartheid sul-africano.
No fim da Ditadura, insistiu com seu sonho de ocupar o comando na Casa Rosada. De olho na transição democrática, tentou organizar-se politicamente com o Partido Democrata Social para lançar sua candidatura, e até publicou um jornal para respaldar suas ambições.
Os historiadores indicam que ele queria ser uma espécie de “sucessor de Perón” e mobilizar as massas, algo que nenhum almirante jamais havia conseguido na Argentina (a Marinha era considerada a arma aristocrática).
Massera considerava que seria possível armar um governo com eleições limitadas – eleição de prefeitos, senadores e deputados – tal como era o governo do presidente e general Ernesto Geisel e de seu sucessor João Batista Figueiredo no Brasil.
Para isso, tentou qualquer tipo de aliança, por mais bizarra que fosse: além de tentar convencer setores do partido Socialista a respaldar seu partido, também tentou seduzir os ex-integrantes da guerrilha Montoneros. No entanto, fracassou de forma retumbante.
Fora do poder, nunca perdeu a chance de mostrar sua capacidade de chocar: em uma ocasião, conversando com uma jornalista em sua casa, Massera mostrou-lhe a lista de desaparecidos políticos em seu computador. Semanas depois, quando a polícia vasculhou seu aparelho, nada foi encontrado.
TRIBUNAIS - Com a volta da democracia, em 1983, os líderes militares foram levados ao banco dos réus, uma medida inédita na América Latina sobre crimes cometidos durante uma ditadura.
Em 1985, durante o julgamento das juntas militares, foi condenado à prisão perpétua. Mas, em vez de passar o resto da vida na cadeia, o ex-almirante permaneceu apenas cinco anos preso. Ele obteve a liberdade ao ser anistiado pelo presidente Carlos Menem em 1990.
No entanto, foi detido novamente em 1998, quando as organizações de defesa dos Direitos Humanos driblaram o indulto presidencial com a abertura de processos pelo sequestro de crianças que haviam nascido no cativeiro das mães prisioneiras na ESMA. Massera, por seu lado, driblou os parentes das vítimas da ditadura ao conseguir o privilégio da prisão domiciliária graças à habilidade de seu advogado, Pedro Bianchi, que também foi advogado do criminoso de guerra nazista Erich Priebke.
Com frequencia ele esquivava o esquema de vigilância e passeava pelas ruas ou ia pegar um bronzeado.
Essa vida de passeios furtivos e muitos banhos de sol começou a acabar no no ano 2000, quando foi internado por graves problemas de saúde.
Em 2002 sofreu um ACV que o deixou em estado semi-vegetal até esta segunda-feira à tarde, quando teve um novo derrame cerebral.
Segundo me disse ontem à noite um capitão de navio crítico com Massera, o ex-almirante “partiu a tempo de tomar o chá das cinco com Adolf Hitler, Stálin e Francisco Franco”.
Os organismos de defesa dos Direitos Humanos não celebraram a morte de Massera, já que o ex-militar levou consigo os segredos do paradeiro de milhares de desaparecidos e da identidade dos bebês sequestrados.
FATOS, NÚMEROS E EXPRESSÕES RELATIVAS AO MODUS OPERANDI DE MASSERA
ESMA (Escola de Mecânica da Armada): O feudo de Massera, onde tinha o poder de decisão sobre a vida e morte dos prisioneiros. Localizada na esquina da Avenida Libertador e a rua Santiago Calzadilla, foi durante cinco décadas a sede do liceu naval, a escola de guerra naval e o departamento de educação naval, entre outros organismos de ensino da Marinha. Mas em 1976 transformou-se no maior centro de torturas da ditadura. Paradoxalmente, estava em pleno bairro residencial de Núñez, sobre uma das mais movimentadas avenidas do país (e a dez quarteirões do estádio do River Plate). Atualmente é o “Espaço para a Memória e Estímulo e Defesa dos Direitos Humanos”.
SEQUESTROS: Do total de sequestros realizados pelos oficiais e suboficiais da Marinha que operavam na ESMA,
- 66% ocorriam durante a noite, para que outros civis não vissem o que ocorria
- 70% dos sequestros eram realizados nas residências das vítimas, já que a maioria não estava em estado de clandestinidade.
PRISIONEIROS -
Os prisioneiros da ESMA eram militantes de esquerda, peronistas e integrantes de outros partidos, pessoas sem interesse algum em política, velhos, adolescentes, vizinhos e parentes dos supostos “subversivos”, paraplégicos, rabinos, padres católicos, freiras, garotas bonitas que ao passar na rua despertavam os instintos dos oficiais, universitários e operários.
Grande parte dos prisioneiros, seminus mesmo no inverno, ficavam encapuzados até seis meses ininterruptos, acumulando piolhos e infecções. Ninguém podia conversar, sob o risco de ser espancado. Esta era uma forma dos carcereiros eliminarem qualquer noção de tempo e espaço dos detidos.
BEBÊS: De 500 crianças que teriam sido sequestradas pela ditadura, umas 200 teriam nascido na ESMA. A maioria das crianças foi entregue a famílias de militares estéreis e colaboradores civis.
MÃES DOS BEBÊS:
Todas as mulheres que deram à luz ali dentro foram assassinadas. Massera era conhecido por seus toques de humor negro: no natal de 1977, passou pela sala onde diversas mulheres eram torturadas, desejando “feliz Natal”.
T: Letra colocada antes dos nomes dos prisioneiros, que indicava que a pessoa seria “transferida”, isto é, morta.
L: Letra colocada antes dos nomes dos prisioneiros que ficariam livres, já que eram “perdoados” por Massera e seus assessores.
AQUÁRIO: Lugar onde – como escravos – trabalhavam os prisioneiros da ESMA para a falsificação de documentos, preparação de resumos de imprensa e traduções, entre outros serviços. Eram a mão de obra gratuita de Massera.
AVENIDA DE LA FELICIDAD: O corredor que ligava as celas à sala de torturas da ESMA era chamado de “Avenida da Felicidade” pelos militares que ali operavam.
TABIQUE, TABICAR: Capuz, colocar um capuz no prisioneiro. Com frequencia os prisioneiros passavam semanas ou meses com capuzes.
PICANA ELÉTRICA: Criada nos anos 30 na Argentina por Leopoldo Lugones Hijo, filho do escritor Leopoldo Lugones. Era o instrumento para assustar o gado com choques elétricos. Aplicado a seres humanos, tornou-se o instrumento preferido de tortura na Argentina. Coincidentemente, a filha do criador da picana elétrica, a intelectual Piri Lugones, foi torturada com esse instrumento e assassinada pelos militares.
SUBMARINO: Não se referia às belonaves submersas da Marinha, mas sim à modalidade de colocar a cabeça do prisioneiro dentro de um balde d’água ou de urina com fezes. O procedimento consistia em deixar o prisioneiro à beira da asfixia e assim forçá-lo a confessar qualquer coisa.
QUADROS – O Führer Adolf Hitler estava presente na ESMA por meio de fotos penduradas nas paredes da sala de torturas, onde estava pintada em letras garrafais a frase “Viva Hitler”.
MANDAR LÁ PRA CIMA: Matar.
VOOS DA MORTE: Modalidade para eliminar ao máximo possível vestígios de prisioneiros. Eles eram levados a aviões que sobrevoavam o rio da Prata ou o mar. Durante o voo, os prisioneiros eram jogados ainda vivos nas águas. As estimativas indicam que nesta modalidade morreram de 1.200 a 1.500 pessoas. O dia dos voos da morte eram todas as quartas-feiras.
MORTOS (VÍTIMAS DA GUERRILHAS)
- Segundo um relatório das próprias forças armadas argentinas a guerrilha e grupos terroristas de esquerda e cristãos nacionalistas teriam assassinado 900 pessoas (diversos historiadores afirmaram ao longo dos anos que esse número está ligeiramente inflacionado, já que diversos dos mortos da lista militar teriam sido assassinados pelos próprios militares, na miríade de brigas internas, e, convenientemente, teriam colocado a culpa nos terroristas) entre 1974 e 1983.
- Segundo o coronel Eusebio González Breard, ativa figura nas atividades de repressão nos anos 70, o número de militares mortos em confrontos com guerrilheiros entre 1976 e 1983 foi de 515 pessoas.
MORTOS (VÍTIMAS DA DITADURA)
- Segundo os dados de organizações de defesa dos Direitos Humanos e a Anistia Internacional, entre outros, a ditadura assassinou um total de 30 mil civis, entre os quais crianças, adolescentes e idosos.
- Segundo o próprio ex-ditador e general Reynaldo Bignone o número de desaparecidos é de 8 mil. Essa declaração foi realizada em abril passado, quando ele falou durante seu julgamento no município de San Martín, na Grande Buenos Aires. Ele havia indicado um número similar durante uma entrevista com uma jornalista da TV francesa na virada do século. Nunca antes um ex-integrante da ditadura havia revelado um número (eles costumavam negar a existência de centros de torturas e dos assassinatos).
“Falam nesse tal número de 30 mil desaparecidos…mas nunca demonstraram que foram mais de 8 mil”, disse Bignone, antes de ouvir a sentença.
- Segundo Emilio Mignone, ex-presidente do Centro de Estudos Legais e Sociais, do total de desaparecidos, somente entre 5% e 10% eram guerrilheiros. Os restantes 90% ou 95% dos desaparecidos eram civis sem participação em atividades armadas.
ESTUPROS – Massera contava com o almirante Rubén Chamorro como “gerente” da Esma. Chamorro era descrito como “baixinho e feio…um homem insignificante”. Seus colegas afirmavam que tinha “extrema habilidade para colocar no ponto mais alto do crânio o quepe, que por sua vez era esticado na parte superior. Com isso e mais uma grossa sola extra nas botas, aumentava a altura em cinco centímetros”.
Chamorro era conhecido por estimular seus homens a violar as prisioneiras, grande parte delas garotas universitárias, de famílias de classe média, com alto nível cultural, muitas das quais eram filhas de imigrantes europeus, que haviam escolhido a Argentina para fugir dos horrores da Segunda Guerra Mundial. As loiras eram as preferidas dos oficiais da Esma.
Teresa, uma das prisioneiras que morreu na Esma, e cujo sobrenome é desconhecido, era violada cada vez que ia ao banheiro. “Se ela ia uma vez, a estupravam nessa ocasião. Mas, se, horas depois, ia de novo ao banheiro, era novamente violada. Todas as vezes que ia ao banheiro, era impreterivelmente estuprada. Todas”, relata Enrique Fuckman, ex-detido das masmorras da Esma.
SAQUES À PROPRIEDADE PRIVADA - Comandos militares e policiais se encarregavam de saquear as propriedades dos desaparecidos durante a ditadura. Desta forma, jóias, dinheiro, quadros, lustres, geladeiras e automóveis eram retiradas das casas pelos militares me caminhões das forças armadas, como se fosse uma mudança. A proporção do saque era tão grande que foram montados galpões especiais para armazenar os bens. A Marinha tinha na ESMA um salão especial para acumular os bens roubados. Além disso, Massera e seus assessores montaram uma imobiliária que vendeu as casas e apartamentos dos desaparecidos. Diversas fábricas e fazendas também foram apropriadas, muitas vezes, com documentos legais: os sequestrados eram obrigados através de torturas a assinar os certificados de transferência de propriedade.