Das estepes russas à herança africana: viagem ao passado da Península Ibérica com o ADN de mais de 400 esqueletos
Mais de 400 genomas de esqueletos antigos – 271 deles só agora publicados – de habitantes que viveram na Península Ibérica há entre 6000 a.C. e 1600 d.C. levam-nos numa viagem única pela pré-história desta região. Entre outros capítulos, destacam-se as marcas deixadas por dois irmãos, um casal e um indivíduo com ancestralidade do Norte de África.
Teresa Sofia Serafim
Afinal, como foi o passado dos habitantes da Península Ibérica? Através da análise do genoma de 271 esqueletos antigos publicada esta sexta-feira na revista científica Science, uma equipa de 111 cientistas dos Estados Unidos e da Europa fornece novas pistas sobre a identidade dos antepassados dos actuais portugueses e espanhóis ao longo de 8000 anos. Para os autores deste trabalho – vários deles são cientistas portugueses –, este é o maior estudo de ADN antigo da Península Ibérica feito até agora. Bem-vindo a uma viagem genética com os habitantes da Península Ibérica desde o Mesolítico até ao século XXI.
A primeira paragem desta viagem é precisamente no século XXI, quando uma equipa de cientistas liderados pela Faculdade de Medicina de Harvard (Estados Unidos) e o Instituto de Biologia Evolutiva (Espanha) quis recolher o maior número possível de amostras de genomas de esqueletos antigos da Península Ibérica para se fazer uma caracterização genética desses indivíduos. Objectivo? Perceber como as populações desta região viveram ao longo de 8000 anos.
Ao todo, foram analisados 403 genomas antigos de habitantes que viveram na Península Ibérica há entre 6000 a.C. e 1600 d.C., dos quais 271 nunca tinham sido publicados até agora. Foram ainda estudados genomas de 975 esqueletos antigos de indivíduos de fora da Península Ibérica e de 2900 pessoas actuais. Relativamente às amostras portuguesas, foram consideradas 37 do Neolítico, Idade do Cobre e Idade do Bronze, sendo que 16 delas nunca tinham sido publicadas.
A bióloga Marina Silva – que está a fazer o doutoramento na Universidade de Huddersfield (Reino Unido) – foi a responsável pela análise de algumas amostras dos esqueletos portugueses utilizadas neste trabalho. A bióloga começou por vir a Portugal reunir-se com bioantropólogos ou arqueólogos como Ana Maria Silva (Universidade de Coimbra), Katina Lilios (Universidade de Iowa, Estados Unidos) e António Valera (empresa Era-Arqueologia). Além de cederem as amostras, estes cientistas forneceram o contexto dos locais onde os esqueletos foram encontrados. Também participaram neste estudo arqueólogos da Universidade de Lisboa.
Depois, Marina Silva levou as amostras para o Reino Unido para extrair o seu ADN num laboratório especializado. No total, tentou retirar ADN de 24 amostras, mas só conseguiu extraí-lo de seis delas, que pertencem a esqueletos encontrados em sítios arqueológicos da Idade do Cobre (entre 3300 e 1200 a.C.): Bolores, Cabeço da Arruda (ambos de Torres Vedras) e Paimogo (Lourinhã).
Por fim, o ADN antigo extraído foi enviado para a Faculdade de Medicina de Harvard, onde foi analisado com as restantes amostras. Viajemos então pelas histórias que nos contam os protagonistas desta história, os esqueletos.
Irmãos do Mesolítico
Pertence à província de Leão (no Noroeste de Espanha) o primeiro genoma completo de um caçador-recolector europeu do Mesolítico (entre há 10.000 e 6000 anos), o La Braña 1. Este genoma com 7000 anos já era icónico – até porque as amostras do Mesolítico são raras –, mas agora descobriu-se um irmão deste caçador-recolector: o La Braña 2. “Estes dois esqueletos mesolíticos [tal como outros do Mesolítico] revelam uma estrutura genética mais próxima de grupos da Europa Central, o que poderá ser reflexo de um fluxo genético que afectou o Noroeste da Península Ibérica, mas não o Sudeste”, refere Ana Maria Silva. Como os grupos da Europa Central não terão chegado ao Sudeste da península, os indivíduos que aí viviam derivam a nível genético dos caçadores-recolectores da Idade do Gelo que já existiam na região.
Devido à contribuição genética de grupos da Europa Central em esqueletos do Mesolítico, neste trabalho verificou-se que grupos de caçadores-recolectores da Europa Central migraram para a Península Ibérica antes de uma população da Anatólia (actual Turquia) – que terá trazido a agricultura – ter chegado à região há 7500 anos. “Isto não é propriamente surpreendente. O mais surpreendente é verificar que a população que existia na Península Ibérica era uma mistura da ancestralidade dos caçadores-recolectores com estes agricultores”, considera Pedro Soares, geneticista da Universidade do Minho.
A diversidade (e complexidade) genética dos caçadores-recolectores da Península Ibérica também é comprovada por outro artigo científico publicado na última edição da revista científica Current Biology. “Através de estudos anteriores, soubemos que apenas as principais linhagens genéticas sobreviveram na Europa depois da Idade do Gelo e só restou uma delas há 14.000 anos”, diz ao PÚBLICO Vanessa Villalba do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana (na Alemanha) e autora do trabalho. “Isto não aconteceu na Península Ibérica, onde as linhagens sobreviveram de uma forma integrada.”
Ao todo, foram analisados 11 genomas – apenas um português – de esqueletos de caçadores-recolectores e dos primeiros agricultores da Península Ibérica. Quanto ao esqueleto português, tem cerca de 8000 anos e pertencia a um indivíduo do concheiro do Moita do Sebastião, na freguesia de Muge, no concelho de Salvaterra de Magos. Segundo Vanessa Villalba, a maior parte da ancestralidade deste indivíduo vem dos indivíduos mais antigos do período magdaleniano há cerca de 19.000 anos.
Homem e Mulher na Idade do Bronze
No sítio arqueológico de Castillejo de Bonete (Sudoeste de Espanha) foram encontrados lado a lado dois esqueletos com cerca de 4000 anos – Idade do Bronze – que pertenciam a um homem e a uma mulher. Enquanto a ancestralidade da mulher era 100% local, a do homem era da Europa Central.
“Houve uma forte substituição da população ibérica”, diz Pedro Soares sobre o significado do esqueleto masculino. “Pensa-se que isto aconteceu devido a uma enorme migração que teve origem na zona das estepes russas e ucranianas, que substituiu uma boa parte da população desde o Leste até ao extremo da Europa.” Segundo o cientista, as comunidades pastoris e domesticadores de cavalos das estepes russas migraram para Oeste, chegando à Península Ibérica, e para Leste, atingindo o subcontinente indiano. Além de substituírem a população masculina, terão espalhado ainda o indo-europeu, família linguística falada ao longo da Europa e da Índia.
“Essencialmente, a migração deveria ter homens que há entre 4000 e 4500 anos substituíram praticamente 100% de todos os homens que existiam na Península Ibérica”, salienta Pedro Soares. Qual o motivo? Não se sabe. “Não parecem haver provas no registo arqueológico que indiquem um aumento de violência, por isso não podemos dizer que houve uma grande matança de homens ibéricos por parte dos homens que chegaram na altura”, indica Marina Silva.
Já Pedro Soares adianta: “É mais fácil ver quais foram as consequências do que os motivos.” Quanto às consequências, sabe-se que, há 4000 anos, o padrão genético dos indivíduos da Europa Central já representava cerca de 40% do perfil genético da Península Ibérica e praticamente 100% das linhagens masculinas da região, o que reforça a hipótese de que estes recém-chegados deveriam ser maioritariamente homens e substituíram os homens locais.
Para avançar nesta questão, será preciso reunir mais dados antropológicos e arqueológicos. “Também passa por termos mais amostras do território português”, acrescenta Ana Maria Silva.
Africano na Idade do Cobre
Perto de Madrid, no sítio arqueológico de Camino de las Yeseras foi encontrado um esqueleto com cerca de 4000 anos (que terá vivido entre 2400 a.C. e 2000 a.C.) e com uma ancestralidade do Norte de África. “Já existiam algumas evidências arqueológicas de que haveria contactos entre o Norte de África e a Península Ibérica nesta altura – nomeadamente através de troca de materiais com origem africana recuperados em contextos arqueológicos ibéricos –, mas esta é a primeira vez que encontramos uma prova concreta do movimento de pessoas entre o Norte de África e a Península Ibérica”, explica Marina Silva. Além disso, como este esqueleto foi descoberto no centro da Península Ibérica, não se deverá tratar de um “movimento fortuito entre as duas margens do estreito de Gibraltar”, salienta a bióloga.
No Sul de Espanha também foi descoberto um esqueleto de um indivíduo mais recente – viveu entre 2000 a.C. e 1600 a.C., na Idade do Bronze – que tinha um dos avós do Norte de África. “Apesar desta ancestralidade africana não se ter espalhado na população da Idade do Cobre ou do Bronze, o contacto entre as duas zonas existe efectivamente há muito tempo e já desde a Idade do Cobre que envolvia o movimento de pessoas”, considera Marina Silva.
Isolamento dos bascos
Vejamos ainda o caso dos bascos, que têm um perfil genético diferente do do resto da população da Península Ibérica e não falam uma língua da família indo-europeia. Agora verificou-se que há 2000 anos os bascos ainda tinham o mesmo perfil do resto dos indivíduos da Península Ibérica. Ou seja, essas diferenças surgiram num passado mais recente do que se pensava, nomeadamente há entre 2000 e 1000 anos. Além disso, os bascos têm um perfil genético semelhante a pessoas da Idade do Ferro (há entre 900 a.C. e 19 a.C.).
Pedro Soares explica que estas diferenças não terão sido causadas por migrações, mas pelo isolamento dos bascos – por exemplo – através de uma maior endogamia do que no resto da península.
Avançando algum tempo nesta história, confirmou-se que durante o Império Romano a ancestralidade do Norte de África se espalhou mais pela Península Ibérica, sobretudo no Sul. “As influências genéticas ocorreram bem antes de grupos do Norte de África conquistarem a Península Ibérica durante o século VIII d.C.”, lê-se num comunicado da Faculdade de Medicina de Harvard. “Mas a partir de um certo período [histórico, em que há documentos escritos], já não há grandes surpresas. À medida que nos vamos aproximando da actualidade, os genomas começam a ser mais parecidos com a população actual”, refere Pedro Soares.
“É fantástico como a tecnologia de ADN antigo, combinada com informação arqueológica, antropológica, linguística e o registo histórico, pode trazer o passado de volta”, diz David Reich, geneticista da Faculdade de Medicina de Harvard e coordenador deste estudo. “A região ibérica é agora, provavelmente, a mais bem caracterizada do mundo a nível do ADN humano antigo”, indica-se ainda num comunicado da Universidade do Minho.
Por sua vez, Pedro Soares refere que o conhecimento da nossa ancestralidade é importante para questões médicas e para se saber qual o nosso perfil genético ou susceptibilidade a certas doenças. “Mas a razão pela qual faço isto é porque tenho uma certa curiosidade em conhecer a nossa ancestralidade e saber de onde viemos”, assume.
A viagem não termina aqui. David Reich refere que este estudo só mostrou o potencial de futuros trabalhos. Pedro Soares informa que se irá focar noutros períodos da história e que já tem alguns dados ainda não publicados com resultados interessantes. Já Ana Maria Silva diz que a colaboração com esta equipa é para continuar. E Marina Silva anuncia que já tem outras questões em aberto na manga. Como Portugal teve menos amostras do que Espanha – assim como menos períodos e sítios arqueológicos estudados –, a bióloga realça que ainda há muito a ser estudado. Também não foi analisado ADN de esqueletos do Norte do país. “Será interessante ver no futuro se todos os sinais demográficos que vemos em Espanha para os outros períodos também são visíveis no extremo Oeste da península ou se houve dinâmicas populacionais diferentes em Portugal.” Esta viagem só agora começou.
https://www.publico.pt/2019/03/14/cienc ... as-1865348