André estava convencido de que a afluência à JMJ tinha sido largamente exagerada, pelo que o êxodo de todos os seus entes queridos era patético
André está só em Lisboa. A namorada, madrinha de um casamento e persuasiva oradora em áudios de Whatsapp, conseguiu que a despedida de solteira em Cádiz calhasse precisamente nesta semana. Os pais agendaram a habitual quinzena em Armação de Pêra, mas desta feita arrendaram um apartamento com apenas um quarto e foi com pouca pena que o informaram de que “não há sofá-cama”, acrescentando a mãe, que desgosta da atual namorada, que “devias aproveitar e ir conhecer umas peregrinas”.
O Diogo, o Saraiva e os gémeos foram todos para a casa de campo no Minho dos já falecidos avós do primeiro, local onde alternarão o consumo de drogas leves com a frequência de praias fluviais. André não quis ir com eles: aos 29 anos não está para dividir uma cama de corpo e meio com um amigo também ele de corpo e meio. Sobretudo, sente que já não tolera o tipo de férias pós-adolescentes em que, para secar o corpo após o duche, se recorre a uma ainda húmida toalha de praia. Fugir à Jornada Mundial da Juventude obrigá-lo-ia a levar a cabo coisas jovens e já não é dessa forma que André se sente.
“Tenho a certeza de que vem muito menos gente do que se espera”, vaticinou perante a insistência dos amigos, que já se encontravam no Intermarché de Vila Verde a adquirir cerveja em quantidades de associado da AHRESP e ainda tentavam convencê-lo a apanhar um FlixBus, “depois alguém vai buscar-te à estação. Eu não, que não sei guiar automáticos! Não tiraste férias? O Saraiva também não. Está em teletrabalho, entre aspas. Pôs um cinzeiro em cima do teclado para aparecer online no Teams e tem andado a levar tareias no FIFA”. Em vão.
André estava convencido de que a afluência à JMJ tinha sido largamente exagerada, pelo que o êxodo de todos os seus entes queridos era patético. Ficaria na capital, transformaria a sua inércia numa missão, seria o único vigia de uma guarnição de descrentes, um cruzado do ateísmo, o anjo da guarda de todos os que nunca decoraram o Pai Nosso e que ficam a olhar para o lado para saber quando é que se devem levantar em missas de casamento.
Como é que concretizaria esse recém-adquirido ímpeto republicano de catequizar laicidade? Através do Twitter, claro. A partir da sua ermida, um T0 em Alvalade, twittou vigorosa e copiosamente sobre as implicações morais de dilapidar o erário público com um certame religioso que, escreveu, “celebra uma organização criminosa que há séculos sabota o avanço da Ciência”.
Apesar de ter secretamente considerado demagógico, elogiou em público o simulador do Livre em que o cidadão escolhe que melhor aplicação teria o dinheiro que a Câmara gastou na JMJ. Magnânimo, André até contribuiu com cinco euros para um crowdfunding para a afixação de painéis publicitários sobre os abusos na Igreja.
Criticou com veemência a expressão “retorno imaterial” que António Costa usou, através de um espirituoso remoque que evocava o prémio para os profissionais da pandemia que foi a final da Champions.
Partilhou um artigo, já com uns meses, de Carlos Guimarães Pinto - fazendo questão de sublinhar que este se situa “nos antípodas” do seu pensamento político - em que se desmonta a falácia dos benefícios económicos dos grandes eventos. Julgou que se mergulhasse no comentário contínuo no Twitter iria distrair-se do burburinho dos peregrinos na rua, mas a verdade é que o volume das cantorias beatas na rua conseguiu penetrar os seus auscultadores com cancelamento de ruído.
“E la nostra voce correrà! / Alziamo le braccia, in fretta si va”. Eram italianos, a cantar a sua versão do hino da JMJ, "Há pressa no ar". Para André, havia certamente pressa no ar de que todos estes escuteiros abandonassem a sua cidade, contudo, a música começava a ficar-lhe na cabeça e já se tinha apanhado a trauteá-la. Ok, a religião, ópio do povo, etc, etc, mas, porra, os beatos cantam nas horas, não cantam? Sempre afinados e felizes.
André tentava lembrar-se da última vez em que cantara uma música em conjunto com amigos. Nunca fora católico, mas se a namorada quisesse casar-se pela Igreja, ele fazia-lhe o favor. E não tinha más memórias das aulas de Religião e Moral na escola primária. Inclusivamente, quando passara a Páscoa no Minho, em casa dos avós do Diogo, não recusara beijar a cruz trazida em delivery pelo pároco.
Que seca, estar sozinho em Lisboa no verão. E se fosse dar um propz ao Santo Padre? É que este não é como os outros, o homem de certeza que votaria à esquerda do PS. Não era má ideia - ninguém do Twitter iria saber. O senhor está debilitado e fez o esforço de aparecer; seria absurdo não ir. É isso mesmo, se calhar ainda dá para apanhar os italianos, é calçar os ténis, há pressa no ar. Tem de ser. Não faz sentido viver na Avenida de Roma e não ver o Papa.
O único lisboeta ateu que não fugiu da JMJ (msn.com)
Re: Noticias de Portugal
Enviado: Qui Ago 03, 2023 9:36 am
por cabeça de martelo
EduClau escreveu: Qua Ago 02, 2023 1:30 pm
Uma vista sobre a política de drogas em Portugal:
Aumento do uso de drogas em Portugal levanta questionamentos sobre descriminalização; entenda
País virou modelo internacional ao abraçar política focada na redução de danos. Mais de 20 anos depois, modelo apresenta problemas.
Cresci nos anos 80/90 e sei do que era Portugal com a antiga politica de criminalizar tanto os traficantes como os consumidores e prefiro sem dúvida muito mais o panorama atual.