SIMON SCHAMA “TRUMP COMPREENDEU O PODER DO ÓDIO”
Na semana em que chega às livrarias portuguesas o segundo de três volumes de “A História dos Judeus”, fomos a Londres conversar com o popular e às vezes polémico historiador que admite que alguns livros de História são também histórias pessoais
POR PEDRO MEXIA Enviado a Londres
Gomes, Mendes, Dias, Lopes, Carvalho, Pereira. Há portugueses e lusodescendentes do princípio ao fim das novecentas e tantas páginas de “A História dos Judeus: Pertencer (1492-1900)”, edição da Temas e Debates, segundo volume de uma trilogia que Simon Schama projetou escrever sobre este tema infindável, quase impossível. Um tema a que volta com frequência, até porque lhe diz respeito, uma vez que o historiador, nascido em 1945, tem ascendentes judaicos por via materna (asquenazes) e paterna (sefarditas).
Schama estudou em Cambridge, onde também ensinou. Atualmente é professor de História e de História da Arte na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Foi crítico de arte na “New Yorker” e escreve, entre outras publicações, no “Financial Times”, do qual é editor convidado. Dois dos seus livros mais antigos definiram as áreas de estudo em que se especializou: “The Embarrassement of Riches” (1987) é sobre o apogeu económico e artístico de uma nação, no caso a Holanda, enquanto “Cidadãos” (1989, ed. port. Civilização) afirmou-se, com estrépito, como um estudo “revisionista” sobre a Revolução Francesa.
Mas, nos últimos 20 anos, Schama tornou-se igualmente o “historiador televisivo” mais conhecido do Reino Unido, por causa de sucessivas séries que escreveu e apresentou para a BBC, como “A History of Britain”, “Power of Art”, “The American Future”, “The Story of the Jews” e, atualmente, “Civilisations”. Sucessos de público e de crítica, as séries propõem um novo paradigma, biografista, narrativo, identitário e empático, para uma História que queira chegar mesmo a quem não lê livros de História.
Acabado de regressar de uma viagem ao Médio Oriente que o deixou esgotado, não apenas em termos físicos, Schama, menos efervescente do que a sua imagem televisiva, mas igualmente afável e bem-humorado, conversou com o Expresso nos escritórios da sua agente, em Bloosmbury, Londres. E haveria de ficar visivelmente tocado com referências aos judeus portugueses a quem no seu livro dá voz num mar de vozes: judeus chamados Bento de Espinosa, Uriel da Costa, Abraão Zacuto e Samuel Usque, o último dos quais intuiu que uma história dos judeus é ao mesmo tempo uma lamentação e uma consolação.
Escreveu há uns anos um texto que era uma resposta aos historiadores que criticavam os seus programas de televisão…
Ah, já sei, a propósito de “A History of Britain”.
Para um português, não é assim tão estranha essa desconfiança dos historiadores, mas na Inglaterra pensava que fosse uma questão ultrapassada.
Isso já tem uns anos. Agora há muito mais historiadores académicos que também escrevem e apresentam programas televisivos. “A History of Britain” foi feito em 1999, portanto há uns bons anos. Já havia uma certa moda de programas televisivos “de autor”, nomeadamente os de Kenneth Clark [“Civilisation”, 1969] e Alistair Cooke [“America: A Personal History of the United States”, 1972], mas não eram académicos a tempo inteiro. Era ainda pouco habitual que um professor de História se dedicasse, como diria a academia, a “popularizar-se” ao ponto de fazer televisão. Portanto, o que já é pacífico em Inglaterra agora não era tão óbvio há 20 anos.
“QUANDO ANDAVA NA ESCOLA, NOS ANOS 50, ESTAVA INDECISO QUANTO ÀQUILO QUE QUERIA SEGUIR, LITERATURA OU HISTÓRIA”
Lembrei-me desse texto porque nele diz que a maioria das pessoas, agora e no futuro, terão um contacto com a História através de imagens e de conteúdos digitais, e não de livros...
Talvez não a maioria, mas acho que isso é muito importante. Haverá sempre livros… Tenho duas séries em exibição agora, uma das quais sobre a Historia dos judeus, que é uma repetição da série que fiz há cinco anos, e a nova é a série sobre a arte chamada “Civilisations”. E é verdade que esses programas são vistos por milhões de pessoas [risos], ao passo que com os livros são uns milhares, se tiver sorte. Isso é uma verdade inevitável.
E, na sua opinião, é importante manter essas duas vidas do historiador: o académico, o investigador, o autor de livros, por um lado, e por outro o popularizador televisivo. Já afirmou que se sentiria incompleto sem uma destas facetas...
É verdade, e ainda sinto isso. Eu tive um professor, nos anos 60, J. H. Plumb, que era um grande divulgador. E nunca faria os seus alunos sentirem-se envergonhados por se dedicarem à História “popular”. Ele tinha ideia de que os dois lados da nossa personalidade intelectual se alimentavam um ao outro. Portanto, para mim foi uma coisa instintiva. Mas há raízes mais profundas. Quando andava na escola, nos anos 50, estava muitíssimo indeciso quanto àquilo que queria seguir, Literatura ou História. E queria igualmente escrever ficção (o que também acabei por fazer). Escolhi História, mas sempre tive muito presente a ideia da escrita imaginativa. Sempre li livros de História também pela capacidade que os autores tinham de usar instrumentos próprios da imaginação, com factos reais, mas ao mesmo tempo com cenas, personagens e técnicas próprias de um escritor de ficção.
E a relação entre as suas séries e os seus livros é sempre a mesma? Geralmente os livros são apresentados como textos que “acompanham” a série.
Talvez não seja bem isso. Nunca peguei nos guiões dos programas que escrevi e os transformei em capítulos, isso nunca fiz. Os capítulos são extremamente mais densos, mais escritos, têm outras histórias, outra estrutura. Quando estou a escrever guiões estou sempre a pensar na câmara. Além do mais, no espaço de uma hora de programa temos de ter uma estrutura dramática bem delineada. Quando se escreve um livro não há esse constrangimento. “A História dos Judeus” vai ter três volumes, como “A History of Britain” teve três volumes. Em “Power of Art”, o livro e a série estavam mais próximos, mas mesmo aí o livro era bastante mais desenvolvido.
Em toda a sua obra opta por seguir histórias individuais. Isso também é controverso no campo da História, porque houve toda uma escola que valorizava sobretudo as estruturas.
Eu cresci com isso, com essa ortodoxia, li o [Fernand] Braudel, que foi uma das grandes experiências formadoras da minha vida. “O Mediterrâneo” [1949/66] é uma obra-prima, mas o que é interessante num livro como esse é que no segundo volume vamos à mesma parar ao Filipe II [risos], ou seja, a atores e agentes históricos. “The Embarrassment of Riches” [1987], o livro que escrevi sobre a Holanda, tinha sem dúvida muitas personagens, mas era essencialmente um livro “temático”. O que mudou tudo foi obviamente ter escrito o livro sobre a Revolução Francesa [“Cidadãos”, 1989]. O que acontecia era que entre os historiadores da Revolução Francesa havia um descontentamento com o facto de se explicar a Revolução inteiramente em termos da estrutura social, a revolta da burguesia, e tudo isso. Era muito claro que a maioria dos revolucionários mais militantes eram aristocratas ou ex-clérigos, não eram de todo burgueses frustrados: Lafayette, Mirabeau. Robespierre era quase uma anomalia nesse contexto. Mas mais do que a origem social deles, o que me pareceu a mim e a outras pessoas, como a [historiadora] Lynn Hunt, muito importante, foi a linguagem. Essa velha ideia do século XIX de que o discurso, a escrita, a retórica, podiam eletrizar os seguidores, por exemplo quando se chamava a alguém “traidor” ou “patriota”. E isso pressupunha uma agência humana individual. Por isso voltei aos discursos, aos panfletos, às canções, coisas que não eram a “estrutura social”. O outro elemento que foi importante para mim nesse livro foi querer estudar o que acontece quando nos tornamos animais políticos. A nossa primeira fidelidade é para com a nossa família. A segunda, talvez com a nossa religião. A terceira, talvez com a nossa cidade ou a nossa profissão. Queria perceber como se processa isso num agente político. E o preço que se paga por isso. E escolhi um elenco de personagens, alguns muitos conhecidos, como Talleyrand, outros não tão conhecidos.
Escreveu esse livro com uma intenção polémica?
Bem, foi certamente recebido como polémico. [risos] Fui talvez um pouco ingénuo. À medida que escrevia não podia evitar falar do papel desempenhado pela violência. E as pessoas conheciam-me como sendo uma pessoa de esquerda. Não muito de esquerda, mas de centro-esquerda, que é o que ainda sou. E por isso acharam que eu era um vira-casacas. Um historiador parisiense disse que eu me tinha tornado reaganista, o que me horrorizou. Ele nem tinha lido o livro. E depois saiu um artigo no “Figaro” a elogiar-me por ser um reaganista [risos], o que ainda me incomodou mais. E as pessoas deixaram de me falar. Velhos amigos deixaram de me falar. E eu entrei um pouco às cegas nesta tempestade polémica. Devia estar mais ciente disso.
Porque no livro defende que a violência é inerente ao processo revolucionário.
Exatamente. Eu disse basicamente duas coisas. Uma foi que a Revolução aconteceu numa altura em que a França estava numa curva ascendente e não descendente (embora não para todos). E depois [o livro foi publicado em 1989, no Bicentenário] disse que se olharmos para 1789, quaisquer que tenham sido os resultados, vemos um apetite pela exibição pública da violência.
Disse que isso é que tornou a revolução revolucionária.
Disse, sim. E não retiro o que disse, de todo. Aliás, agora isso é quase consensual. [risos] Eu não pensei nisso como sendo provocatório, porque estava apenas a dizer o que aconteceu, mas percebi que era uma coisa trágica de se dizer. Talvez porque havia muitos marxistas arrependidos nessa altura. E eu era um grande devoto do Soljenitsine.
“A HISTÓRIA NÃO É SÓ PROFESSORES E SEMINÁRIOS ACADÉMICOS. BASTA PENSARMOS EM TUCÍDIDES. A HISTÓRIA NÃO É PARA TIMORATOS”
François Furet faz algo de semelhante em França.
Isso é muito interessante. Lembro-me de estar na biblioteca da Universidade de Cambridge, como aluno de licenciatura ou de pós-graduação, até me lembro a cadeira em que estava sentado, e de ler um texto do François (digo assim porque nos tornámos bons amigos, ele foi muito gentil comigo, de certa forma protegeu-me). Mas quando eu era miúdo, não o conhecia, e lembro-me de ler esse artigo chamado “O catecismo revolucionário”. Era um ataque ao [historiador da Revolução Francesa] Albert Soboul, e a essa grande tradição. O “catecismo” era a ideia de que “isto aconteceu porque neste momento particular da história do materialismo dialético, quando uma burguesia frustrada…” [risos], etc, etc. E para mim isso foi um momento excitante, porque eu não conhecia o Furet mas ele ia ao encontro do que eu intuía. O grande iniciador dessa escola de defesa da democracia liberal foi na verdade Raymond Aron. O Aron era mais de direita do que o François ou do que eu, mas o que ele dizia estava basicamente certo. E nós nesse aspeto éramos “aronistas”.
Mas alguém como o [historiador marxista britânico] Hobsbwam tratou o livro com respeito, embora discordasse dele.
Exatamente. E eu também me tornei bom amigo do Eric, mais tarde. E tive outras críticas, de pessoas de esquerda, incluindo marxistas, que foram generosas, embora discordantes. Mas algumas pessoas reagiram com hostilidade declarada ou mesmo com o corte de relações. Foi extraordinário. Então lembrei-me de que a Historia não é só professores e seminários académicos. Basta pensarmos em Tucídides. A História não é para timoratos.
E alguma vez pensou que um homem de esquerda não devia criticar a esquerda?
Não, não, pensei que um homem de esquerda tinha o dever de criticar a esquerda.
Em vários destes livros há um tema comum da identidade. Quando vai estudar os rostos da Grã-Bretanha [“The Face of Britain: The Nation through Its Portraits”, 2015], está a tentar compreender um povo a partir das suas representações, das suas imagens. Mas quando decidiu dedicar-se à História dos judeus, isso já parece uma missão impossível...
[Risos] O [crítico e historiador do judaísmo] Adam Kirsch, na “New Yorker”, escreveu isso mesmo…
Mas depois verificamos que não é tão impossível assim, porque mais uma vez escolheu seguir o destino de umas quantas figuras, umas muito conhecidas, outras não, e parece que para onde quer que se vire encontra um judeu. [risos] Pugilistas, soldados, artistas. E encontra-os em todo o lado porque eles estão em todo o lado, porque estão sempre…
Em movimento.
…em movimento. Expulsos, perseguidos. E estão mesmo onde não os imaginamos. Vai buscar por exemplo a figura de Abraão Zacuto, que escreveu um manual de astronomia...
Vou contar-lhe uma história portuguesa. Tínhamos uma casa de verão há muitos anos, e eu estava a escrever esse livro, algures na costa atlântica. Choveu o tempo todo [risos], mas um dia em que não estava a chover, eu fui a um sítio muito bonito. Toh-mar?
Tomar.
E descobri uma pequena sinagoga do século XII, do tamanho desta sala. A sinagoga não é um conceito arquitetónico: o estilo arquitetónico adapta-se ao sítio onde os judeus se encontram. E isto era apenas uma abóbada medieval igual às outras. E eu achei aquilo muito comovente. E o Abraão Zacuto esteve lá. Foi uma pequenina epifania.
Ao que parece, Vasco da Gama tinha o livro dele, que terá servido como guia de navegação.
Diz-se que sim. Mas havia uma tradição, em especial em Maiorca, na Catalunha também. Os judeus tinham todo esse conhecimento mercantil, conheciam os ventos, as marés, eram cartógrafos. Portanto, se as fronteiras geográficas iam ser desbravadas, os judeus tinham conhecimento empírico nessa matéria, estavam no Magrebe, eram colaboradores óbvios.
E então Portugal cometeu um dos seus maiores erros, e mais do que um erro: a conversão forçada dos judeus e a expulsão dos que não se convertessem...
Não foi uma grande ideia.
E no seu livro vemos o rei de Portugal indeciso.
É verdade, logo no princípio do segundo volume. Os monarcas europeus sabem que se entregarem os judeus à Inquisição estão a cortar fontes de financiamento. [risos] Estão divididos entre a piedade e o pragmatismo económico. Isso foi verdade com Manuel.
Em Portugal não há uma noção muito profunda do antissemitismo português. Por exemplo, só nos 500 anos do massacre dos judeus de 1506 [no Rossio, em Lisboa] é que se falou mais nisso no espaço público. Um massacre que não foi comandado pelas autoridades, mas que as autoridades...
…não fizeram nada para impedir. Isso já tinha acontecido em Espanha, com os dominicanos, desde o fim do século XIV. Deixavam que os pregadores instigassem os massacres e depois não faziam nada. É uma constante da História dos judeus. Os pogroms russos não foram iniciados pelos governos radicais de direita, antissemitas, dos czares, mas esses governos também não se deram ao trabalho de os impedir. Era uma válvula de escape útil quando se queria ameaçar os judeus ou quando se queria libertar alguma tensão.
“EU SOU CRÍTICO DE ISRAEL. A DIFERENÇA É ENTRE CRITICAR AQUILO QUE OS GOVERNOS DE ISRAEL FAZEM E AQUILO QUE ISRAEL É”
Há um certo fascínio à volta dessas pessoas que se convertem exteriormente, mas que secretamente continuam fiéis à sua fé.
Vai de encontro a todos os chavões: a ideia de que os judeus têm sempre uma vida secreta, uma vida conspirativa. E nessa época os judeus tinham de facto uma vida secreta; mas não era para trair o seu país, era uma vida secreta para praticarem a sua religião.
Quando estive na Sinagoga de Amesterdão, da qual fala...
[Encantado com a evocação] Não é bonita? É de cortar a respiração.
E um português põe-se a pensar que o Espinosa podia ter sido português… [risos] No seu livro fala muito dos judeus de origem portuguesa, Espinosa, Uriel da Costa, Samuel Usque…
E o Usque escreve em português, nem sequer é em ladino. Como eu digo no livro, há uma intenção de preservar a identidade portuguesa, apesar do trauma que sofreram.
Alguns desses homens estão na origem de uma visão liberal das sociedades, nomeadamente de uma visão crítica dos textos sagrados. Mas nas comunidades judaicas essa visão punha em causa a autoridade e a tradição que eram a base da identidade judaica.
Sem dúvida.
Considera Espinosa um herói intelectual?
É um herói intelectual. Ele não pode aceitar que uma identidade se baseia na crença de que Deus ditou a Tora a Moisés. É claro que ele leu Maimónides [autor do “Guia para os Perplexos”, 1190], e Maimónides aceitava a Revelação, embora não a maioria dos milagres, que encarava com ceticismo; mas Maimónides não leva isso à sua conclusão lógica. Espinosa acredita numa espécie de deus panteísta, que é a força matriz da origem do universo, mas não que Deus se preocupe com o destino dos judeus ou de quem quer que seja. E no livro falo de Moisés Mendelssohn [Iluminista judaico], que quis rejudaizar Espinosa, recuperá-lo, dizendo que se pode ter um certo grau de racionalismo e ceticismo, que até se pode ser afastado da comunidade como um herético, excomungado, e ainda assim fazer parte da tradição judaica. Esse dilema reflete-se nos debates sobre o judaísmo reformado, no século XIX e agora, e na identidade de Einstein (que dizia que era espinosista, tal como eu também me sinto).
O livro de Samuel Usque [“Consolação às Tribulações de Israel”, 1553] é ao mesmo tempo um lamento e uma consolação. E ele a dado passo diz que a maldição dos judeus é de algum modo uma bênção, porque os judeus têm de estar por todo o mundo.
É comovente.
Não é um pouco…
Não é grande consolação. [risos] Mas impressionou-me muito que ele o tenha dito.
Em todas as paragens que o seu livro visita, encontramos o mesmo ressentimento, em situações sociais e políticas completamente diferentes. Mesmo na Revolução Francesa, com o combate de estender a cidadania aos judeus. Ou nos escritos de Marx, que tendia a associar os judeus ao dinheiro. Porque é que isto acontece?
Numa sociedade cristã, não era boa ideia ter matado o filho de Deus, ou ser culpado disso, mesmo que tenham sido os romanos a fazê-lo. Isso teve consequências profundas. Mas acho que há alguma coisa mais funda. Porque essa hostilidade já existia no mundo romano. Tácito é muito azedo com os judeus. Acho que é porque os judeus tinham um grande sentimento de coesão, uma coesão que, com exceção do desejo um pouco fantástico de regresso a Israel, não dependia de instituições, de monumentos, ou de um território. Dependia de uma coisa que é transportável, ou seja, a Bíblia, e o Talmude, e a ética judaica que esses textos transmitem, e um calendário religioso a que se podia obedecer integralmente ou nem tanto. Isso torna-os irritantes. Como o mercúrio, que podemos pisar e se reconstitui. Isso aconteceu até depois de algo tão feroz e totalizante como o Holocausto. É isso que gera desconfiança, ressentimento. É, de certo modo, a recusa em ser conquistado, a recusa em apresentar os habituais objetos de conquista. Não interessa se se incendeia uma cidade, se se destrói Jerusalém, se o Templo se desfaz: o que os judeus descobriram é que se pode tornar a existência portátil, migratória, e ainda assim manter uma identidade coletiva coesa. E isso parece ser um problema. Estou tentado a dizer que a inimizade aos judeus através das gerações é um problema dos outros, não é uma coisa que os judeus tenham de explicar. É o vosso problema, não é o nosso problema. [risos]
Há, portanto, um elemento de inveja?
Sim, sem dúvida.
“AO ABASTARDAR A LINGUAGEM, TRUMP MUDOU AS REGRAS DO JOGO. A FORMA COMO A COMUNICAÇÃO POLÍTICA SE FAZ IMPORTA MUITO”
Toda a gente conhece o enorme impacto dos judeus no mundo da cultura, e até a figura a que chamamos o “intelectual” nasceu de um episódio, o Caso Dreyfus, e do antissemitismo francês, que nós julgámos que estava extinto entretanto…
Mas que afinal não está…
E nesse caso houve um romancista [Zola] a tomar uma posição política, e depois um jornalista judeu, Theodor Herzl, a perceber que os judeus não podiam ser “assimilados” nas sociedades ocidentais, mas que tinham de encontrar uma terra que fosse sua. Então, depois de uma tragédia, que foi não ter casa em lado nenhum, nasce a esperança de ter uma casa, mas essa esperança também tem o seu lado trágico.
E esse debate gerou conflitos dentro da comunidade judaica. O debate entre o poder e a ética. O grande adversário de Herzl era Ahad Ha’am [ensaísta sionista, 1856-1927], que acreditava que uma identidade cultural e étnica era o mais importante. Ha’am não estava especialmente interessado num Estado judaico. Martin Buber e Gershom Scholem [filósofos judeus] argumentaram contra a criação de um Estado até acontecer o Holocausto, o inconcebível, quando se tornou claro que era preciso um lugar onde cada um pudesse controlar o seu destino. Mas esse debate entre a ética e o poder ainda está vivo, não terminou.
Mas depois de uma fase heroica, que despertou simpatias entre os progressistas, Israel tornou-se um problema, até como tema de conversa. É uma das discussões mais envenenadas que se pode ter.
É verdade. É terrível.
E às vezes não é muito clara a diferença entre criticar Israel e criticar “os judeus”.
Mas devia ser. Eu sou crítico de Israel. A diferença é entre criticar aquilo que os governos de Israel fazem e aquilo que Israel é. É uma linha muito clara. Quem sugere que aquilo que o Governo de Israel faz é uma razão para que Israel não exista é antissemita. É muito simples. Mas se não se ultrapassar essa linha, pode-se atacar toda a espécie de decisões dos governos israelitas, como eu faço constantemente, e audivelmente.
O atual líder trabalhista inglês tem sido criticado pela esquerda israelita.
Eu não quero falar disso. Acho que o Partido Trabalhista tem facilitado a transformação da crítica a Israel em formas horríveis de antissemitismo. Isso parece-me indesmentível. Acho que Jeremy Corbyn devia ter combatido isso mais intensamente, e há mais tempo. Mas isso faz dele um antissemita? Não, acho que não.
Já escreveu que a internet se revelou um oceano profundo de antissemitismo, do qual nem tínhamos bem consciência.
E escrevi isso há dez anos. Eu percebi que tinha de investigar a internet se queria saber como tinha evoluído o antissemitismo. Infelizmente, tinha razão.
Como falou das palavras, gostava de o ouvir sobre dois líderes políticos que tinham um grande gosto pela retórica: Churchill, que continua objeto de livros e filmes, e Obama. Quando escreveu sobre Churchill, disse que as palavras dele eram capazes de fazer mudar as marés, o que é uma frase quase bíblica. E quando elogiou Obama enfatizou mais a retórica dele do que a questão racial.
Vou contar-lhe uma coisa. O meu genro trabalhou na campanha da Hillary Clinton. E a certa altura ela tinha de escrever um discurso, o discurso de vitória na Convenção de 2016, e houve um debate entre os assessores dela. Os mais velhos, que trabalharam com Bill Clinton e com Barack Obama, como o meu genro, queriam que Hillary escrevesse um discurso mais retórico, mais inspirador, um discurso com alguma visão. Um discurso que desse à América razões para votar nela que não fosse apenas o facto de não ser Donald Trump. Mas ela fez saber que não fazia esse tipo de discursos. “O meu marido fazia isso, o Barack fazia isso, mas se eu o fizesse ia soar pouco autêntico, ia soar vazio.” Bem, se eu estivesse lá, tinha-lhe dito: nós ensinamos-lhe a fazer isso, porque a América precisa disso. E o Donald Trump, ao abastardar a linguagem, mudou as regras do jogo. Portanto, eu acho que as palavras, as declarações e até os tweets [risos] têm importância. A forma como a comunicação política se faz importa muito. E os democratas liberais de centro-esquerda, anti-Trump, ainda não perceberam isso, não sabem como responder a Trump e à linguagem que ele usa, cheia de mentiras, vulgaridades, caricaturas e insultos. Houve um momento incrível num dos debates televisivos em que Jeb Bush disse a Donald Trump: “Você vai insultar toda a gente até se tornar Presidente.” E foi exatamente isso que ele fez. Ele compreendeu o poder do ódio. E cavalgou esta onda de fúria inorgânica. Por isso, pensar na linguagem importa muitíssimo.
Para terminar ainda com a linguagem, fiquei muito intrigado com o poema de Yehuda Amichai [poeta israelita contemporâneo], que usou como epígrafe do seu livro. Porque sugere que este livro não é um qualquer livro de História, é um livro pessoal. Amichai escreveu: dentro de mim está o meu coração, dentro do meu coração está um museu, dentro está uma sinagoga, e assim por diante.
Os meus livros de História, mas acho que muitos outros livros de História também, são uma batalha infindável entre coração e a cabeça, entra a razão e a emoção. E não se pode escrever História judaica fingindo que se vai conseguir ser completamente desapaixonado, que vai ser um exercício inteiramente racional. Nesse sentido, a memória das sinagogas, desde o tempo em que era muito miúdo (aprendi hebraico aos 4 anos, numa cidadezinha à beira do Tamisa, todo vestidinho a preceito), essa experiência de ter estado numa sinagoga, e de carregar todas essas memórias, isso é muito forte. E essas memórias pessoais são uma parte daquilo que me faz escrever. Depois, temos de dar um passo atrás, e olhar para tudo aquilo, porque não queremos que a emoção conduza a narrativa, porque nesse caso seriam apenas umas memórias sentimentais. Mas tem de se reconhecer que isso existe. Tem razão quando diz que há momentos em que a minha vida pessoal se mete no caminho. A grande diferença que senti entre o primeiro e o segundo volume da “História dos Judeus” foi a invenção da imprensa. No segundo volume, temos textos escritos em línguas vernáculas, e, portanto, temos um grande alargamento da experiência. Encontramos cartas, memórias, autobiografias. Temos voz após voz, após voz, todas apaixonadas pela linguagem. Tudo o que eu tinha de fazer era deixar que essas vozes contassem a história. Eu era apenas o refrão no meio das vozes.