Fonte: http://www.estadao.com.br
Rio de Janeiro - Apolônio Pinto de Carvalho, 93 anos, um dos protagonistas da história da esquerda brasileira, morreu nesta sexta-feira, às 18h30. A causa da morte foi um quadro de insuficiência respiratória, pneumonia e descompensação cardíaca, que se agravou por volta de 17h30.
Apolônio, veterano de três conflitos armados - a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial e a guerrilha urbana brasileira - havia sido internado na quarta-feira no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) da clínica Casa de Portugal, no Rio Comprido, zona norte do Rio.
Ele morreu ao lado da mulher e dos filhos. De acordo com o diretor do hospital, dr. Silvio Provenzano, o velho militante manteve a lucidez até seus últimos momentos. Ele disse também que, apesar da profunda tristeza, o clima entre os parentes era de paz e tranqüilidade.
Apolônio viveu o século 20 com intensidade experimentada por poucos. Militar e comunista, foi preso pelo governo Vargas no Brasil e enfrentou o franquismo na Espanha dos anos 30, a invasão nazista da França nos 40 e o regime fardado brasileiro nos 60.
Crença no socialismo
Viu a denúncia do stalinismo, aprendeu que o paraíso socialista não era o que pensava e rompeu com o PCB. Preso em 1969, reagiu aos torturadores e foi espancado. Expulso do País com mais 39 presos políticos, sobreviveu e ajudou a criar o PT. Morreu acreditando no socialismo, ao qual aderiu aos 25 anos.
"A confusão entre desejo e realidade é uma das fontes de erro da esquerda em todas as fases de nossa vida, de nossa trajetória", afirmou ele em entrevista publicada na revista Teoria e Debate, editada pelo PT, ainda nos anos 80.
Até o fim, defendeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, segundo acreditava, foi traído por auxiliares no caso do mensalão.
Conhecido pelo otimismo, pela fala mansa e pela polidez, Apolônio nasceu em 1912, em Corumbá, hoje Mato Grosso do Sul. Sua mãe, Inês, era gaúcha de Bagé; seu pai, Cândido, sergipano e militar. "Foi cadete de Benjamin Constant", contou ele, referindo-se a um dos líderes positivistas do golpe republicano que encerrou o império do Brasil e líder no Exército imperial.
Quando menino, sonhou ser médico, mas, ao partir para o Rio, ouviu um conselho que Inês lhe deu, na despedida. "Como estudar medicina e trabalhar, se o curso toma o dia inteiro? Se você for militar, como seu pai, vai poder ajudar a família." A parentela era grande: Apolônio teve cinco irmãos. Seguiu o conselho materno e, em 1930, ingressou na Escola Militar de Realengo.
O jovem Apolônio, que ainda não tinha idéias socialistas, encontrou na academia militar um ambiente fortemente influenciado pelo tenentismo e pelas repercussões da Coluna Prestes, que de 1924 a 1927 percorrera o Brasil como "Bandeira da Revolução".
Formado oficial da Artilharia em 1933, foi servir em Bagé, onde um amigo comunista, o capitão Rolim, o levou em 1935 para a Aliança Nacional Libertadora (ANL), réplica brasileira das frentes populares antifascistas européias, que reuniam democratas, socialistas e comunistas contra o avanço da extrema direita.
Com programa nacionalista, a ANL existiu de março a junho de 1935, quando foi declarada ilegal. Pouco depois, em novembro, militares aliancistas tentaram uma revolução armada. Fracassaram. Apolônio não participou -"Fomos surpreendidos", contou-, mas acabou preso.
Comunismo
Ainda na cadeia em Bagé, perdeu a patente de tenente, em 9 de abril de 1936, "sem processo", ressaltava. No cárcere no Rio, para onde foi transferido ,conheceu Graciliano Ramos na Casa de Correção e estreitou suas ligações com os comunistas.
"Eu conheci a existência do PC na prisão", contou na entrevista a Teoria e Debate, feita por Paulo de Tarso Venceslau. "Lá eu entrei em contato com os dirigentes internacionais que participavam da luta: Rodolfo Ghioldi, Olga Benário, (Luís Carlos) Prestes." Foi solto em junho de 1937 e "no dia seguinte" se inscreveu no PCB.
Poucas semanas depois, embarcou para a Espanha, com outros militares expulsos do Exército Brasileiro, para participar das Brigadas Internacionais que iam combater o franquismo em seu avanço contra a República espanhola.
"Fui tenente todo o tempo na Espanha, mas tive funções de major, de capitão, de coronel e teria de general se continuasse", contou ele, descrevendo a precariedade de meios que cercou a luta contra os fascistas espanhóis.
"A artilharia da República era menos numerosa do que seria necessário, então cada uma de nossas tropas estava em mobilização constante para várias frentes. Percorríamos 100, 150, 200 quilômetros para participar das outras lutas."
Mesmo sendo comunista ortodoxo na época, Apolônio condenou a perseguição movida pelo governo espanhol contra o Partido Operário de Unificação Marxista (POUM) e os anarquistas, atribuindo a essa divisão a derrota da República. Outra causa da derrocada, dizia, foi o processo de aproximação da URSS com a Alemanha de Adolf Hitler, que desembocaria no Pacto Nazi-Soviético em 1939, deixando os republicanos espanhóis sem as armas e munições que os russos até então mandavam.
Em fevereiro de 1939, a situação chegou ao insuportável: derrotados, 300 mil militares e 800 mil civis republicanos se deslocaram para a fronteira com a França. Dali, foram levados para campos de internamento em território francês, onde, na prática, eram prisioneiros. Em dezembro de 1940, com boa parte do território da França sob ocupação direta dos nazistas, Apolônio fugiu.
Ironicamente, o ex-combatente das Brigadas Internacionais foi trabalhar no consulado brasileiro em Marselha, onde alguns funcionários eram contra Vargas. Lá, por meio do trabalho de assistência que o consulado dava a brasileiros presos, entrou em contato com a Resistência Francesa, que se articulava.
Havia algumas vantagens: a cidade ficava sob jurisdição do governo colaboracionista de Vichy, formalmente sem ocupação alemã, e o Brasil ainda não guerreava os alemães. Mas em 1942 os brasileiros declararam guerra à Alemanha, e os nazistas, alarmados com o desembarque aliado no Norte da África, ocuparam o restante do território francês.
Já participando de ações armadas contra os alemães , mas ainda na legalidade, Apolônio foi avisado pelo PC da França de que as representações diplomáticas brasileiras seriam fechadas, e seus funcionários, levados prisioneiros para a Alemanha. Fugiu e caiu na clandestinidade, participando, com as tropas de maquis (como os guerrilheiros franceses eram conhecidos), de ataques aos alemães.
Inicialmente, comandava uma esquadra, comando de quatro homens, depois um grupo de combate e logo um destacamento, formado por três grupos. "Fazíamos operações de sabotagem de fábricas, de transportes, de locomotivas, de transmissão de energia, ataques a quartéis, a destacamentos na rua, justiça para colaboradores, resgate de presos", narrou.
Foi na Resistência que Apolônio conheceu sua mulher, a adolescente Renée, de uma família de comunistas e com quem viveu até o fim da vida, chamando-a romanticamente de "minha namorada". Acabou deslocado para Lyon, cidade onde as SS foram comandadas por um dos mais conhecidos criminosos de guerra, Klaus Barbie. Dali, Apolônio comandou a Resistência na região sul.
Em janeiro de 1944, foi viver com Renée, atuando nas regiões onde a repressão nazista era mais intensa. Ao fim da guerra, comandava 2 mil homens, participando não só da libertação, mas também da "limpeza" de áreas ainda cheias de invasores. Libertada a França, foi condecorado com a Legião de Honra. Por sua atuação na Espanha, recebeu a cidadania espanhola, nos anos 90.
Volta
Sem contato com o PCB desde que deixara o Brasil, uma década antes, Apolônio foi descoberto na Paris do pós-guerra pelo correspondente da revista Diretrizes Samuel Wainer, que nos anos 50 criaria o jornal Última Hora. Em dezembro de 1946, voltou ao Brasil,com Renée grávida (os filhos foram dois, filhos, René-Louis e Raul). O militante se incorporou a um PCB legal, assessorando o dirigente Diógenes de Arruda Câmara, com quem passava "das seis da manhã às 11 da noite", visitando o partido.
Chegou a presidir a União da Juventude Comunista (UJC), que tinha como secretário-geral João Saldanha, dirigente do PCB no bairro da Lagoa, e, anos depois, jornalista e técnico da Seleção Brasileira. Mas a UJC foi posta na ilegalidade antes do PCB e, pouco depois, o partido teve seu registro cassado.
Apolônio, Renée e os filhos assumiram,então, um trabalho clandestino: foram "caseiros" dos dirigentes perseguidos, entre eles João Amazonas, dando-lhes abrigo.
O casal também viveu na União Soviética do fim de 1954 até 1957, para fazer um curso. Estava lá quando ocorreram as denúncias dos crimes de Stalin, mas o próprio Apolônio não se sentiu surpreso nem chocado, segundo diria depois, porque já tinha alguma informação. Viajava com a mulher pela URSS, observava a realidade e conversava com pessoas bem informadas, que lhe contavam de arbitrariedades e distorções do socialismo soviético.
"Fizemos viagens em barcos, onde sentimos não a existência de duas classes, mas a existência de três classes", contou ele. "Três classes bem definidas, em função do local, do camarote, do lugar que tinha no barco." Renée, narrou, ajudou-o a superar a visão "ilusória, irreal (...) fantasiada" que, avaliou, tinha do socialismo.
Em mais um retorno ao Brasil, Apolônio passou a escrever a coluna Teoria e Prática, na revista do partido, Novos Rumos, e participou da comissão de Educação do PCB, dando cursos de formação. Um de seus alunos foi Marco Aurélio Garcia, atual assessor para assuntos internacionais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mesmo crítico ao PCB, Apolônio ficou no partido, mas, após o golpe de 64, formou, com Carlos Marighela, Mário Alves e outros antigos dirigentes do partido, a Corrente Revolucionária - integrada, por exemplo, pelo estudante de engenharia Cesar Maia, hoje prefeito do Rio de Janeiro pelo PFL.
O grupo, porém, rachou: a maioria criou a Ação Libertadora Nacional (ALN) , e outra, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). A organização política e de guerrilha urbana foi duramente golpeada em 1969, quando Apolônio e outros militantes foram presos.
Alves morreu sob torturas no quartel do Exército da Barão de Mesquita, onde ficava o Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de repressão sob comando do I Exército. Apolônio, porém, reagiu à prisão. Com quase 60 anos, saltou sobre o motorista do carro que o levava para o quartel, na tentativa de jogar o veículo sobre um paredão. Foi contido a coronhadas.
"A idéia de ser um oficial num quartel do Exército me desperta a formação pessoal e a ilusão romântica, e me apresento", narrou, recordando o momento. "Aí, chamam o oficial, me põem o capuz, e começa o interrogatório. Diante das minhas respostas, um dos policiais me dá uma bofetada. Eu reajo: `Isso é uma indignidade, uma covardia.´ Tiro o capuz e agrido os torturadores. Dois minutos depois, estava esticado no chão, desacordado."
A prisão durou até 1970,quando deixou o Brasil no grupo de 40 presos políticos, trocado pelo embaixador alemão, Enrenfied Anton Theodor Ludwig Von Holleben, seqüestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e pela Ação Libertadora Nacional (ALN), na chamada Operação Joaquim Câmara Ferreira. Foi para a Argélia. Só voltou ao Brasil após a anistia de 1979, após afastar-se do PCBR em 1978, integrando-se ao grupo que formou o PT.
Inicialmente, foi anistiado como tenente da reserva, depois, no fim dos anos 80, foi promovido a coronel e, no governo Lula, ganhou o direito a soldo de general de brigada. Até o fim da vida, manifestou sua paixão pelo PT e por Lula, que conheceu na volta. Mesmo assim, mantinha o espírito crítico.
"Hoje, no PT, temos uma visão do seu papel que lembra muito o messianismo dos partidos comunistas em épocas passadas", afirmou, em 1989, à Teoria e Debate. "O PT é visto como símbolo da força social, então joga-se para escanteio a idéia fundamental do conjunto de forças sociais e políticas da esquerda e de outras forças periféricas, outras forças interessadas num programa de mudança para a sociedade."
