O retorno da "Guerra Fria"
EUA-RÚSSIA
Cerimônia do 70º aniversário do Dia D, o desembarque dos aliados na Normandia, vai colocar os presidentes Barack Obama e Vladimir Putin frente a frente.
Especialistas alertam para uma perigosa deterioração nas relações entre Moscou e o Ocidente
RODRIGO CRAVEIRO
Os presidentes Barack Obama (Estados Unidos) e Vladimir Putin (Rússia) ficarão frente a frente, na sexta-feira, em um compromisso para celebrar a aliança que libertou o mundo da ameaça nazista. Na Praia de Omaha, situada na Normandia, os dois chefes de Estado vão lembrar os 70 anos do Dia D, quando 75.215 soldados britânicos e canadenses, além de 57.500 americanos, desembarcaram de 7 mil navios e abriram outro front contra as tropas do então chanceler alemão, Adolf Hitler, já envolvida em uma feroz campanha travada pelos soviéticos no leste. Ninguém imaginava que o maior ataque anfíbio da história seria sucedido por 45 anos de hostilidades entre Washington e Moscou, a chamada Guerra Fria, que ruiu com a queda do Muro de Berlim, em 1990. O encontro dos líderes no noroeste da França ocorre em novo momento de tensão entre o Kremlin e o Ocidente, deflagrado pela anexação da Crimeia, na Ucrânia. Há quem veja as dissensões quase como uma recapitulação da fase mais nervosa das relações russo-americanas.
"Existe uma nova Guerra Fria, mas não aquela universal, experimentada no século 20. Ela não vai incluir a China e a Índia, nem áreas como a América Latina e a África", disse ao Correio Robert Legvold, professor de ciência política da Columbia University, em Nova York. Segundo ele, as relações entre a Rússia e o Ocidente foram empurradas para o precipício. "As consequências dessa nova Guerra Fria serão muito graves para várias áreas, inclusive o controle de armas e o gerenciamento do arsenal nuclear, a resposta a desafios globais — que vão das mudanças climáticas ao terrorismo — e a abordagem de crises regionais", alerta, ao admitir que a comunidade internacional tem motivos para se preocupar com o impacto sobre a política internacional.
Apesar de crer que Putin, Obama, e a chanceler alemã, Angela Merkel, discutam a crise ucraniana, Legvold esbanja pessimismo. "É improvável que um progresso importante seja feito, no sentido de superar a crise ou aliviar as tensões", disse. Professor de história militar da Missouri University of Science and Technology, John C. McManus vê a presença do líder russo como fator desencadeador de constrangimento. "Eu suponho que os líderes ocidentais decidiram que desconvidá-lo causaria mais problemas", comentou. Em entrevista à rede de tevê TF1, o presidente da França, François Hollande, justificou a deferência a Moscou. "Eu disse a Vladimir Putin que, como representante do povo russo, ele é bem-vindo à cerimônia", declarou. De acordo com ele, a diferença entre pontos de vista não significa que ele tenha se esquecido dos milhões de russos mortos durante a Segunda Guerra. O governo francês entende que o cancelamento do convite representaria um insulto histórico. O presidente ucraniano eleito, Petro Poroshenko, também estará na cerimônia, na Normandia.
"A crise da Ucrânia retrocedeu as relações entre EUA e Rússia em muitos anos. Se Moscou continuar com a rota expansionista, os interesses mútuos com Washington serão insignificantes, em comparação com a tensão dominante", advertiu McManus, autor de The dead and those about to die, D-Day: The big red one at Omaha Beach ("Os mortos e aqueles prestes a morrer, Dia D: o grande vermelho na Praia de Omaha"). No entanto, ele considera exagerado classificá-la como uma nova Guerra Fria. McManus lembra que o embate envolvendo o capitalismo e o comunismo durou décadas, afetou quase todo o mundo e foi um dos eventos mais marcantes da era moderna. "Temos que esperar e ver se a nova crise vai levar ao mesmo tipo de conflito a longo prazo."
O especialista comenta que, 70 anos atrás, a maior parte do planeta estava envolvida numa guerra total. "O povo americano aguardava por mais de dois anos a entrada militar dramática no continente europeu. Para os EUA, a invasão foi um evento épico, que marcou o início de sua ascensão ao status de superpotência econômica e militar. Para os soviéticos, o Dia D não passou de história. As poucas notícias do mundo externo eram absorvidas pela campanha titânica dos soviéticos contra o Exército nazista", explicou McManus.
Desastre
Na opinião do francês Jean-Yves Camus, cientista político do Institut de Relations Internationales et Strategiques (em Paris), o mundo não pode bancar a volta à Guerra Fria. "Ao menos que desejemos ver a Rússia virar as costas para a União Europeia, com as consequências que isso representaria para a nossa economia e o futuro do nosso povo", afirmou. Ele comenta que a vitória sobre Hitler teria sido impossível, caso os EUA e a União Soviética não tivessem resgatado a França e outras nações dos nazistas. "Isso é o que Hollande entendeu ao convidar Putin."
A russa Lila Shevtsova, chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (Moscou), reconhece que a Ucrânia foi o estopim para a mais grave confrontação entre a Rússia e o Ocidente desde 1991. "Mas é algo diferente da Guerra Fria. Não há um confronto de ideologias; a Rússia é muito mais fraca que a comunidade ocidental; e existe uma cooperação bilateral, a elite russa se integrou ao Ocidente." No entanto, a estudiosa não acha que isso seja o bastante para prevenir uma confrontação direta ou mesmo uma ruptura.
Correio Braziliense
http://www.assuntosmilitares.jor.br/201 ... -fria.html