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Mensagem
por Marino » Seg Abr 09, 2012 12:46 pm
O interesse nacional
DENIS LERRER ROSENFIELD
O mundo atual se caracteriza, cada vez mais, por uma percepção aguda de que os recursos do planeta são finitos. Cabe, evidentemente, a pergunta de se essa percepção corresponde ou não à realidade, pois a própria vigência do capitalismo tem mostrado, no decurso de sua história, o surgimento de novas formas de exploração da terra e a invenção de novos instrumentos científicos e tecnológicos. Em todo caso, nossos governantes orientam-se por essa percepção, que se torna uma espécie de guia da ação política.
Surge, daí, uma preocupação legítima desses governantes em relação à propriedade de terras, pois ela termina sendo inserida dentro de um contexto não somente econômico, mas, também, geopolítico. Ela vem a ser identificada à soberania nacional. No entanto, convém distinguir entre uma política legítima de defesa do interesse nacional de posições nacionalistas estreitas, que podem vir a ser um empecilho para o desenvolvimento econômico nacional.
O mundo globalizado não dá guarida para nenhum tipo de nacionalismo estreito, sob pena de o país que implantá-lo vir a ser o mais prejudicado. O Brasil faz parte desse mundo, vindo a ocupar nele a sexta posição internacional em termos de PIB. Mais precisamente, o país necessita desses capitais internacionais para o seu desenvolvimento, condição essa de criação de empregos, aumento da renda e da competitividade.
O novo parecer da AGU, que regulamenta a compra de terra por estrangeiros e redefine o que é empresa nacional, inscreve-se em uma preocupação legítima de defesa do interesse nacional, ao voltar-se, por exemplo, para a questão de propriedade de terras brasileiras por governos estrangeiros. Consequentemente, torna-se necessário regulamentar o investimento na compra de terras de tal modo que obedeça a critérios que ordenem a especulação de terras e o investimento de empresas estatais em nosso país. Caberia, aliás, distinguir entre empresas estrangeiras privadas e empresas estrangeiras estatais, pois seguem objetivos claramente distintos.
Contudo, o parecer da AGU, alterando o anterior, distinguiu empresas brasileiras de capital nacional de empresas brasileiras de capital estrangeiro. Até então, no contexto anterior, as duas tinham sido equiparadas, usufruindo dos mesmos benefícios e obrigações, sempre em claro respeito à lei nacional.
A situação terminou por complicar-se ainda mais, pois a referida mudança de legislação se fez tão somente por um ato administrativo da AGU, não tendo passado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Foi introduzida, por assim dizer, da noite para o dia, uma nova regra que alterou completamente a área de atuação das empresas brasileiras
de capital estrangeiro. Note-se que elas operavam normalmente no país e, de repente, foram remetidas a uma completa insegurança.
O governo está, agora, debruçado sobre essa questão, assim como a Câmara dos Deputados está elaborando um novo projeto de lei visando a equacionar o imbróglio criado. As idas e vindas têm se multiplicado nesses últimos meses, sem que uma solução satisfatória, até agora, tenha sido apresentada.
Conviria, assim, fazer a distinção entre duas ordens de questões: a) o estabelecimento de uma regra de transição; b) critérios para uma solução definitiva do problema.
A necessidade de uma regra de transição diz respeito à insegurança jurídica criada. A imagem mesma do país está em questão, pois não se deve, administrativamente, por um parecer que contradiz um parecer anterior do mesmo órgão estatal, alterar abruptamente as regras do jogo mediante uma legislação infralegal. Empresas brasileiras de capital estrangeiro, com investimentos em curso, não sabem mais como agir. Empresas com investimentos previstos, licenças ambientais já concedidas e negócios em andamento vêm-se, assim, impedidas de seguir adiante. Os prejuízos econômicos para o país montam a dezenas de bilhões de dólares, incluindo, entre outros, os setores florestais, de papel e celulose, cana de açúcar e etanol.
Logo, seria necessária a formulação de uma regra de transição, que poderia ser feita administrativamente ou mesmo por medida provisória, que contemplasse as empresas brasileiras de capital estrangeiro com investimentos em curso. As empresas em pauta deveriam comprovar esses investimentos por projetos, licenças ambientais, licenças de instalação, protocolos de intenções junto a governos municipais e estadual ou negociações de compra de terras (contratos particulares de compra e venda). O parecer da AGU a elas não se aplicaria e a segurança jurídica seria restabelecida, tendo, ainda, como efeito um grande ganho de imagem para o país.
Uma vez restabelecida a segurança jurídica, em um trabalho que se apresenta, atualmente, como conjunto entre o governo e a Câmara dos Deputados, conviria estabelecer alguns critérios que, ao mesmo tempo em que assegurassem a soberania nacional, sinalizassem para uma abertura para o mundo.
É necessário fazer a distinção entre empresas brasileiras de capital estrangeiro, com investimentos produtivos, diretos, no país, e investimentos especulativos ou operados por empresas estrangeiras de capital estatal.
O país necessita, por exemplo, ter um cadastro nacional de propriedades, instrumento confiável que permita não somente a regulamentação do setor, mas torne transparente, publicamente, uma base de dados da estrutura fundiária nacional.
Poder-se-ia, igualmente, pensar na aplicação do princípio da reciprocidade. Ou seja, países que não permitem que empresas privadas brasileiras comprem terras não poderiam exigir um tratamento diferente de nosso país. Inversamente, países que acolhem empresas brasileiras na compra de terra teriam um tratamento equivalente no Brasil. Com isto, evitar-se-ia qualquer retórica antiempresarial, mostrando um país aberto a tratamentos internacionais equitativos. Exceções seriam tratadas como tais, em função do interesse nacional. Trata-se, aliás, de um princípio amplamente utilizado no mundo diplomático.
O Brasil precisa, urgentemente, do equacionamento dessa questão.
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
"A reconquista da soberania perdida não restabelece o status quo."
Barão do Rio Branco