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Mensagem
por Clermont » Sáb Fev 02, 2008 11:17 pm
PAÍS PELA ÓTICA DA CASERNA – Americano faz obra fundamental sobre a formação do Exército brasileiro.
Angela Moreira – O GLOBO, 19 de janeiro de 2008.
O historiador norte-americano Frank McCann há muito se interessa pela história militar do Brasil e recentemnte publicou mais uma obra a esse respeito. Trata-se do livro “Soldados da pátria: história do Exército brasileiro (1889-1937)”, editado nos Estados Unidos em 2004 e agora traduzido para o português.
Utilizando documentos não somente de arquivos brasileiros, mas também dos Estados Unidos e da Inglaterra, o autor traça o processo de formação do Exército brasileiro relacionando-o a momentos históricos de mudanças de regime ou de descontinuidade institucional. Percorremos no livro a ação militar em momentos como a queda do Império em 1889, a República Velha, a Revolução de 30 e a instauração do Estado Novo, em 1937. McCann considera estas quase cindo décadas como “ a sementeira de acontecimentos posteriores”.
Informações sobre episódios pouco estudados.
Organizada em onze capítulos, a extensa obra demonstra como o Exército, visto pelo autor como a única instituição nacional existente no país no período analisado, esteve extremamente vinculado à política nacional sem descuidar de seus interesses internos. Nesse sentido, acompanha a composição do quadro de oficiais que moldaram esta instituição tão fundamental para o Brasil republicano. Em linhas gerais, McCann foca a história do Brasil no período abarcado através da ótica da caserna, sistematizando informações e permitindo ao leitor conhecer episódios poucos estudados como, por exemplo, o movimento salvacionista, no governo de Hermes da Fonseca, e a Guerra do Chaco (1932-1936).
Suas principais referências brasileiras são José Murilo de Carvalho e Edmundo Campos Coelho, autores de estudos clássicos sobre militares e política no Brasil, que compartilham de uma visão organizacional das Forças Armadas, concepção esta cara aos estudiosos das relações entre civis e militares. Além disso, estabelece diálogo constante com uma bibliografia americana sobre o papel do Exército brasileiro, sua formação, estrutura e influência na política e na sociedade brasileiras.
Após o golpe de 1889 e a Proclamação da República, o Exército passaria a ter papel fundamental como instrumento de força da nova ordem estabelecida. As guerras de Canudos (1896-1897) e do Contestado (1912-1916) ganham atenção especial por refletirem uma intensa relação entre os esforços modernizadores do Exército e sua ação prática na contenção de movimentos populares insurrecionais.
Ao analisar o empenho da oficialidade para redefinir o papel do Exército, sua função e sua relação com a sociedade. McCann deixa claro que foi a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e não a Guerra do Contestado, o evento que mais influenciou os projetos reformistas de reorganização militar. Nesse contexto, a implementação da lei do serviço militar obrigatório, em 1916, seria o mote fundamental para manifestações acerca da modernização dessa Força. Esta questão traz á tona de que forma assuntos teoricamente intrínsecos à caserna eram discutidos pela sociedade civil, visualizada nas figuras de Olavo Bilac, defensor caloroso do serviço militar, e Alberto torres, que se opunha à existência de um Exército permanente.
Ao retratar o anseio pela modernização do Exército na década de 1910, assim como as disputas na contratação de uma missão militar estrangeira, McCann não reduz a escolha da missão francesa em 1919, em detrimento da germânica, ao simples fato de que a Alemanha peerdera a Primeira Guerra Mundial. Alia esse argumento mais amplo a questões políticas internas para explicar a escolha do Exército francês como referência para o estabelecimento de um Exército moderno e eficiente no país.
Protagonistas da instauração do Estado Novo.
Ao longo da obra, o autor demonstra que foi uma escolha equivocada, pois suscitou descontentamentos no seio da oficialidade brasileira, ocasionados por problemas como a subordinação a oficiais estrangeiros e a suposta prática de corrupção por membros da missão. A natureza da instrução fornecida também se mostrou deficiente, pois privilegiou aspectos não condizentes com a geografia do país, como, por exemplo, o treinamento dos militares brasileiros em “guerra de posição” e não em “guerra de movimento”. Ainda assim, os militares franceses só finalizaram seu trabalho no país com o início da Segunda guerra Mundial, quando precisaram retornar à Europa.
Na interpretação do autor, as revoltas tenentistas, em 1922, “solaparam o Exército e a autoridade moral do governo central” e a Revolução de 30 foi um “indicador da desintegração do Exército brasileiro”, instituição que simbolizava a República Velha. O episódio que trouxe à tona a figura do presidente Getúlio Vargas ao poder é visto como um “golpe de altos oficiais contra a própria estrutura de comando do Exército”.
McCann eleva os generais à condição de protagonistas da instauração do Estado Novo, cujo apoio permitiu a Vargas ficar no poder até 1945. Afirma, ainda, que graças a um acordo político-militar, que envolvia o rearmamento e a reorganização das Forças Armadas e o fomento ao setor industrial da siderurgia em troca de apoio militar para a manutenção da ordem social, a ditadura varguista se estruturou e se manteve ao longo de oito anos.
Apesar de exigir fôlego do leitor, por conta do vasto período abarcado e pela riqueza de informações que ilustram a narrativa, “Soldados da pátria” é uma obra inovadora e fundamental, não somente para estudiosos de assuntos militares, mas também para aqueles que desejam conhecer mais a fundo as cinco primeiras décadas da história do Brasil republicano.
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ANGELA MOREIRA é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História do CPDOC/FGV.
Soldados da pátria: História do Exército brasileiro (1889-1937), de Frank McCann. tradução de Laura Teixeira Motta. Editora Companhia das Letras, 744 páginas. R$ 69,50.