Porra era a da formiga na capa...
Rondônia
"Sem fé, lei ou rei"
A Funai fez das reservas indígenas áreas de preservação de sua própria burocracia e agora enfrenta acusações de corrupção
Com o primitivismo característico do homem europeu culto e nobre do século XVI, o cronista português Pero de Magalhães Gândavo diagnosticou o que a seu ver seria a mácula original do caráter do silvícola brasileiro. Depois de uma viagem ao Brasil em 1570, ele escreveu que os índios não podiam ser mesmo grande coisa, pois na língua deles "não se acham F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei". A confusão mental de Gândavo, que não via ordem ou justiça possíveis em uma sociedade estranha se ela não reproduzisse fielmente os vocábulos de seu próprio idioma, não difere muito da imagem que seus contemporâneos tiveram dos índios. Cinco séculos depois, essa imagem praticamente se inverteu. Os índios são idolatrados. No Brasil do século XXI, todo dia é dia de índio. Os selvagens são vistos como defensores da floresta e guardiães de culturas e línguas que precisam ser preservadas a todo custo.
Na semana passada, com a descoberta de um massacre cometido pelos índios cintas-largas contra 29 brasileiros que garimpavam diamantes em sua reserva no Estado de Rondônia, a idéia de que o índio pode ser tão cobiçoso, cruel e mesquinho como qualquer outro ser humano voltou a ser cogitada. Não sem certa resistência, em especial da imensa burocracia federal encarregada de tutelar os selvagens brasileiros, a Fundação Nacional do Índio (Funai). Mércio Pereira Gomes, presidente da Funai, e seu chefe, Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, justificaram o ataque dos índios como um ato de defesa de suas terras. Ambos lembraram que os garimpeiros estavam "cometendo um crime". Qual? Prospectar diamante em áreas indígenas. Pero de Magalhães Gândavo ficaria deveras contente em ouvir tais justificativas. Descobriria que estivera certo todos esses séculos. Se as maiores autoridades do país encarregadas da política indigenista reconhecem que os índios podem matar quem garimpa em suas terras então está claro que são mesmo uma gente sem fé, lei ou rei. Tanto os tutelados quanto seus protetores, diria um cronista moderno. Como outros ministérios e órgãos do governo do PT – os mais notórios deles aqueles ligados à reforma agrária –, a Funai vem ajudando a criar no país uma falsa "questão indígena".
Donos de 12% de todo o território nacional, os cerca de 410.000 índios – fossem a Funai mais competente e o governo menos leniente – não deveriam ter problema algum além do tédio e da obesidade, que já está se transformando em doença nas tribos do Xingu.
O próprio PT deu o alerta sobre essa nova forma de atuação proativa da Funai. No ano passado, o governador petista de Mato Grosso do Sul, José Orcírio Miranda dos Santos, o Zeca do PT, pediu ao presidente a substituição dos três administradores da Funai no Estado. Segundo o governador, funcionários da Funai estavam transportando em seus carros índios terenas para uma área invadida com o objetivo de "aumentar o contingente de conflito". Agora outro governador, Ivo Cassol, de Rondônia, vê na atuação da Funai o catalisador de discórdia e tensão em seu Estado. O governador corroborou as acusações feitas por um bispo de Ji-Paraná, em Rondônia, dom Antonio Possamai, segundo quem a Funai faz vistas grossas ao uso por contrabandistas das pistas de pouso existentes na reserva dos índios cintas-largas. "A Funai sabe de tudo. Contrabandistas pousam seus aviões em pistas da própria Funai, que vê tudo e não fala. Até o acompanhamento da negociação das pedras de diamante é feito sob os olhos dos funcionários do órgão", acusa o governador Cassol. Uma comissão de deputados federais liderada por Alberto Fraga, do PTB do Distrito Federal, esteve na semana passada em Espigão d'Oeste, cidade distante 20 quilômetros da reserva onde ocorreu o massacre. Fraga reclamou do controle total que a Funai tem do acesso ao território indígena. Disse Fraga: "Nem a Polícia Federal pode entrar na reserva, e o que se ouve na cidade é que o comércio de diamantes é acertado com os caciques na presença do pessoal da Funai".
O governo já fora informado da tensão na área da Reserva Roosevelt e nada fez para esfriar a temperatura elevada devida à cobiça de índios, garimpeiros e, como sustentam o governador, o bispo e o deputado, dos funcionários da Funai. Os cintas-largas se confundem com a população não índia de Espigão d'Oeste. Os caciques vivem parte do tempo nas melhores casas da cidade, que eles compraram com o dinheiro do comércio de diamantes. As propriedades dos caciques nas cidades de Cacoal e Pimenta Bueno estão entre as mais caras. Em Cacoal, por exemplo, o cacique João Bravo tem uma mansão com cercas eletrificadas e vigilância eletrônica. Só usam carros do ano. Eles preferem as caminhonetes como a Hilux 3.0. A de um dos filhos do cacique Bravo é equipada com DVD-player. Muitos dos chefes índios apontados como suspeitos de comandar o massacre dos garimpeiros na semana passada já respondem a processo na Justiça Federal. Eles são acusados de formação de quadrilha, garimpagem ilegal e contrabando.
A força-tarefa comandada pela Funai, que cercou a reserva dos cintas-largas depois do massacre dos garimpeiros, atua de forma bastante peculiar. As estradas de acesso à reserva estão fechadas e os carros são minuciosamente revistados. Mas, por alguma razão misteriosa, as revistas visam apenas aos veículos que se dirigem à cidade de Espigão d'Oeste e à reserva. Os que saem não sofrem nenhum tipo de revista. No dia 19 de abril, índios paramentados de índios entraram livremente no Congresso Nacional, ocuparam as mesas dos parlamentares e fizeram discursos em saudação a eles próprios. Com as tribos indígenas prósperas, donas de latifúndios tão vastos e sob a tutela da Funai, fica a pergunta: quem vai cuidar da tribo dos garimpeiros? A cultura deles pode não ser tão atraente do ponto de vista antropológico, mas certamente atrairia a curiosidade de cronistas seiscentistas como Magalhães Gândavo. Eles gostavam de perdedores.