Despreparo azul
Enviado: Sex Mar 18, 2005 10:37 pm
Esterlin Marie Carmelle continua em choque. Mantém os olhos catatônicos. Apesar da pouca idade – aparenta 20 e poucos anos –, ela carrega o peso da vida pobre e violenta. Mora numa casa de um único aposento, em Cité Soleil, uma das maiores favelas de Porto Príncipe, capital do Haiti. Sua pequena família transformou-se em vítima do descuido, da falta de estrutura e do despreparo das tropas da ONU lideradas pelo Exército brasileiro. O mandato do Conselho de Segurança é claro em relação às responsabilidades e obrigações da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah). Está explícito no texto que as tropas de paz estacionadas no país têm o dever de impedir qualquer tipo de abuso e violência. A função da missão é de “apoiar o governo transitório e as instituições e grupos de direitos humanos no esforço de promover e proteger os direitos humanos, particularmente das mulheres e crianças”.
Um ano após a queda do então presidente Jean-Bertrand Aristide e oito meses após o estabelecimento da Missão de Paz, a Escola de Direito da Universidade de Harvard e a ONG Centro de Justiça Global lançam simultaneamente no Brasil, nos Estados Unidos e na Suíça, na quarta-feira 23, um relatório bombástico baseado em vasta documentação, que descreve e analisa como o comando brasileiro, junto com forças chilenas, argentinas, canadenses, francesas e americanas, entre outras, vem não só permitindo que abusos ocorram como garantindo impunidade aos perpetradores e contribuindo para que a violência aumente e se espalhe no país.
O título do relatório é irônico: “Mantendo a paz no Haiti?” Segundo o estudo, a Minustah “tem feito pouco para estabilizar, proteger a população e impedir violações de direitos humanos” e falha no cumprimento de três pontos básicos da resolução 1542 do Conselho de Segurança: “Prover um ambiente seguro e estável, particularmente através do desarmamento; apoio ao processo político e de preparação às próximas eleições; e proteção e monitoramento dos direitos humanos.” Adiante, o texto é ainda mais crítico. “Minustah tem prestado cobertura para a campanha de terror da polícia nas favelas de Porto Príncipe. E mais impressionante do que a cumplicidade com abusos da Polícia Nacional Haitiana são as acusações de abusos de direitos humanos perpetrados pela própria Minustah.”
A história de Esterlin Marie é um exemplo e abre o relatório. Ela e sua família se transformaram em vítimas da Missão na madrugada do dia 14 de dezembro de 2004. Por volta das três da manhã, carros Urutu do Exército brasileiro iniciaram uma operação de apoio à polícia haitiana no combate a gangues locais. Esterlin dormia com o único filho, Herlens Henri, dois anos, e o marido, Henry Morenaud, na mesma cama. Os três acordaram com o barulho. O marido decidiu então levantar e se aprontar para o trabalho, enquanto mulher e filho voltaram a deitar abraçados. O tiroteio se intensificou. Esterlin lembra: “Senti alguma coisa quente... pensei que tivesse sido atingida. Sangue e partes de cérebro escorriam pelo meu braço.” Mas não era ela que havia sido atingida. Seu filho pousava inerte em seu colo. A mãe desmaiou.
Suspeitas – Horas depois, por volta das 11 da manhã, quando o tiroteio acabou, o comando das tropas brasileiras instruiu moradores a levar civis atingidos aos soldados para serem socorridos. Esterlin e o marido removeram o corpo da criança e um dos tanques brasileiros levou a família até uma ambulância. Já no hospital, o pai, Henry Morenaud, concedeu entrevista a uma rádio local acusando as tropas brasileiras de matar seu filho. A história fica ainda mais nebulosa dois dias após o tiroteio. Segundo a família, a Minustah removeu o corpo do menino do necrotério nacional. E não foi só o corpo de Herlens que desapareceu, levantando suspeitas graves sobre o comportamento das tropas brasileiras. A vizinha de Henry, Rosianne Wilfred, lembra que imediatamente após o tiroteio soldados brasileiros revistaram casas na área para recuperar balas e cartuchos usados na operação. Rosianne tinha com ela dois “grandes balaços”. Um deles, coberto de sangue, ela havia apanhado da casa de Esterlin, e garante ser o que matou Herlens. Entregou aos soldados brasileiros. E agora repete o que ouviu: “Eles disseram que eram deles e os levaram.”
O professor James Cavallaro, diretor associado do Departamento de Direitos Humanos da Escola de Direito de Harvard e diretor de Relações Internacionais da Justiça Global, coordenou e supervisionou o trabalho. Entrevistas com ministros e autoridades brasileiras estão sendo agendadas para o mesmo dia do lançamento. Ele vai fazer uma maratona pelo Planalto. “A Missão escolheu o caminho mais fácil. E qual é o caminho mais fácil? Quem está no poder de fato no país? A polícia, que é o braço armado do governo, e ex-militares. Então o caminho mais fácil é ficar do lado do mais forte e deixar quem manda continuar matando”, diz ele. E acrescenta: “Não é só gente comum como o filho de Esterlin que está morrendo nas mãos da polícia ou de uma Missão que entra atirando na favela, mas esse governo, sob a presença das tropas de paz, está desmobilizando a oposição, o Lavalas, partido político do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide bastante presente nos bairros pobres de Porto Príncipe.”
O comandante das tropas de paz da ONU no Haiti, general Augusto Heleno Pereira, em uma das entrevistas que concedeu durante a compilação do relatório, atribuiu a morte da criança a gangues da favela. Segundo ele, tudo teria acontecido durante a noite, portanto antes da chegada das tropas. Mas moradores de Martissaint, bairro pobre de Porto Príncipe, acusam soldados brasileiros de estarem diretamente vinculados a outra morte violenta, que teria ocorrido durante uma operação de apoio à polícia haitiana. O drama do ajudante de carpinteiro Carlo Pierre, 26 anos, órfão de pai e mãe, começa em 27 de outubro de 2004. Às 7 horas da manhã, ele deixou a casa que dividia com os primos, os tios, a avó e a irmã. Uma hora depois um tiroteio começou. Às 11 e meia, um homem desceu a rua dizendo que alguém da área havia sido baleado. Gladis Edna, tia do rapaz, tomou coragem para ver o corpo. “Carlo estava coberto por um cobertor”, conta ela. Naquele dia Carlo não havia ido trabalhar. Juntou-se a uma manifestação pelo retorno de Aristide. O tio Roland Ednard explica por que o sobrinho participou do protesto: “O pai de Carlo foi assassinado após a queda do ex-presidente. Ele acreditava que, se Aristide voltasse, haveria justiça.”
Impassível – Uma testemunha que não quis se identificar assistiu de perto ao drama de Carlo. Ela lembra que, às 6 da manhã, partidários do Lavalas fecharam algumas ruas. Duas horas depois a polícia tentou subir o morro, mas não conseguiu e chamou a Minustah, que entrou com tanques para destruir as barricadas, atirando para todos os lados. Quando apontaram armas para o muro de uma escola, Carlo segurou uma pedra com uma das mãos para lançar contra um tanque. Foi atingido no estômago, no peito e na boca. Talvez os soldados nem sequer tenham notado que atingiram alguém. Policiais vinham logo atrás, usando máscaras para não serem identificados.
Mais frequentes do que as mortes atribuídas à Missão são as de autoria da polícia durante operações conjuntas. Nesses casos, a Minustah torna-se cúmplice por ficar impassível. No dia 24 de outubro do ano passado, um morador de Bel-Air, Jean Joseph Senat, 26 anos, um ex-técnico de comunicação, caminhava por volta das 7 horas da manhã de sua casa para a de sua mãe, no mesmo bairro. Notou alguns tanques da Missão e carros da polícia. Pouco tempo depois, foi atingido por uma bala na fronte, mas apenas perdeu quatro dentes. Ele viu quem atirou: um homem vestindo uniforme camuflado da Companhia para Intervenção e Manutenção da Ordem (Cimo), um grupo da Polícia Nacional Haitiana modelado, treinado e equipado pela Swat americana no passado e que hoje comete abusos.
A americana Anne Susin, monitora de direitos humanos do Instituto pela Justiça e Democracia no Haiti, trabalha há mais de um ano no país e tem acompanhado de perto a ação da polícia e das tropas da ONU. “Eles estão apoiando a Polícia Nacional. Por exemplo, em meados de outubro, a polícia iniciou uma operação em Bel-Air. As forças de paz permitiram uma porção de absurdos. Tivemos notícias de estupros e detenções, e alguns presos desapareceram”, afirma. Susin também acusa a Minustah de atuar com ex-militares, “reconhecendo as detenções ilegais que eles executam”.
Abusos – O relatório do Centro de Justiça Global conclui que “a menos que entre as responsabilidades (da Missão) esteja a perpetração de várias formas de abusos de direitos humanos – uma suposição absurda –, as tropas necessariamente violam o mandato do Conselho de Segurança quando simplesmente asseguram uma área ou montam guarda enquanto membros da Polícia cometem abusos”. Mas o general Heleno deixa clara a posição do comando militar no Haiti: “Nós oferecemos à polícia a proteção que ela não tinha. Damos espaço para que opere. Sim, nós fazemos isso.” O trabalho critica a posição do general, que “agiria melhor se entendesse que sua obrigação original é proteger civis”.
As prisões sem mandados também se multiplicam a cada dia. Em visita à Penitenciária Nacional em outubro do ano passado, o professor James Cavallaro não passou da sala do diretor. Na parede estava uma pequena lousa com números chocantes: de um total de 1.015 presos, apenas 21 haviam sido condenados. Ou seja, 98% dos presos são mantidos sem nenhuma condenação. Um caso que ganhou os jornais em todo o mundo foi o da prisão do padre Pierre Gerar Jean-Juste, solto após pressões do Exterior. Amigo pessoal de Aristide, Jean-Juste é um ativista de direitos humanos especializado em ajudar haitianos em dificuldades com a imigração americana. Rénan Hedouville, da ONG Carli (Comitê para o Respeito das Liberdades Individuais), lembra: “A polícia bateu nele acusando-o de ter armas, mas não acharam nada e, mesmo assim, o levaram preso sem a chance de ser ouvido por um juiz.” Mas a Missão não investiga abusos desse tipo alegando que é um problema para autoridades locais. O tenente Carlos Chagas, assistente do comandante Heleno, explica: “Se o problema de comportamento é do lado da Polícia Nacional, não há o que possamos fazer.” Ao se recusar a investigar, a Missão descumpre mais um ponto do mandato da ONU, segundo o qual deve prestar assistência na “monitoração, reestruturação e reforma da polícia”.
Abandono – O relatório do Centro de Justiça Global denuncia também outras práticas terríveis. Segundo o estudo, a Polícia Haitiana vem retirando pacientes civis dos hospitais, assassinando e, em certos casos, jogando os corpos em valas comuns. Samba Boukman lembra de vários de seus vizinhos que foram mortos assim. Ele conta que durante uma operação da polícia os adolescentes Gorda Guerrier e Guy Wilson sofreram ferimentos à bala nas costelas e no estômago e foram levados pelas famílias ao Hospital Geral. Dias depois, diz, a polícia entrou no hospital e matou os dois. Hoje, muitos feridos à bala recusam tratamento. Mas o general Heleno não vê necessidade de vigiar pacientes: “Eles (haitianos) não precisam de contingente militar em hospitais.” Segundo o relatório, a recusa em proteger feridos em hospitais contraria novamente o mandato do Conselho de Segurança da ONU porque deixa civis ameaçados no abandono. Ao ver as tropas brasileiras tomando partido de um dos lados, a população – que costuma demonstrar nas ruas seu afeto pelo Brasil e, principalmente, pelo futebol do País – começa a encará-las de maneira menos amigável. Alguns já perdem a paciência. Muitas vezes recebem soldados com paus, pedradas e até à bala.
Na última semana, uma das poucas notícias boas sobre o Haiti era a mobilização de autoridades promovida pelo governo francês para discutir medidas concretas em torno da reestruturação do país. Em Caiena, na Guiana Francesa, em 18 de março, o objetivo de uma reunião entre representantes da ONU, da OEA, o primeiro-ministro do Haiti, Gérard Latortue, e ministros das relações exteriores dos países que atuam na estabilização do país era encontrar soluções para o fortalecimento da chamada “boa governança”. Haitianos certamente agradecerão se ela vier em breve.
Um ano após a queda do então presidente Jean-Bertrand Aristide e oito meses após o estabelecimento da Missão de Paz, a Escola de Direito da Universidade de Harvard e a ONG Centro de Justiça Global lançam simultaneamente no Brasil, nos Estados Unidos e na Suíça, na quarta-feira 23, um relatório bombástico baseado em vasta documentação, que descreve e analisa como o comando brasileiro, junto com forças chilenas, argentinas, canadenses, francesas e americanas, entre outras, vem não só permitindo que abusos ocorram como garantindo impunidade aos perpetradores e contribuindo para que a violência aumente e se espalhe no país.
O título do relatório é irônico: “Mantendo a paz no Haiti?” Segundo o estudo, a Minustah “tem feito pouco para estabilizar, proteger a população e impedir violações de direitos humanos” e falha no cumprimento de três pontos básicos da resolução 1542 do Conselho de Segurança: “Prover um ambiente seguro e estável, particularmente através do desarmamento; apoio ao processo político e de preparação às próximas eleições; e proteção e monitoramento dos direitos humanos.” Adiante, o texto é ainda mais crítico. “Minustah tem prestado cobertura para a campanha de terror da polícia nas favelas de Porto Príncipe. E mais impressionante do que a cumplicidade com abusos da Polícia Nacional Haitiana são as acusações de abusos de direitos humanos perpetrados pela própria Minustah.”
A história de Esterlin Marie é um exemplo e abre o relatório. Ela e sua família se transformaram em vítimas da Missão na madrugada do dia 14 de dezembro de 2004. Por volta das três da manhã, carros Urutu do Exército brasileiro iniciaram uma operação de apoio à polícia haitiana no combate a gangues locais. Esterlin dormia com o único filho, Herlens Henri, dois anos, e o marido, Henry Morenaud, na mesma cama. Os três acordaram com o barulho. O marido decidiu então levantar e se aprontar para o trabalho, enquanto mulher e filho voltaram a deitar abraçados. O tiroteio se intensificou. Esterlin lembra: “Senti alguma coisa quente... pensei que tivesse sido atingida. Sangue e partes de cérebro escorriam pelo meu braço.” Mas não era ela que havia sido atingida. Seu filho pousava inerte em seu colo. A mãe desmaiou.
Suspeitas – Horas depois, por volta das 11 da manhã, quando o tiroteio acabou, o comando das tropas brasileiras instruiu moradores a levar civis atingidos aos soldados para serem socorridos. Esterlin e o marido removeram o corpo da criança e um dos tanques brasileiros levou a família até uma ambulância. Já no hospital, o pai, Henry Morenaud, concedeu entrevista a uma rádio local acusando as tropas brasileiras de matar seu filho. A história fica ainda mais nebulosa dois dias após o tiroteio. Segundo a família, a Minustah removeu o corpo do menino do necrotério nacional. E não foi só o corpo de Herlens que desapareceu, levantando suspeitas graves sobre o comportamento das tropas brasileiras. A vizinha de Henry, Rosianne Wilfred, lembra que imediatamente após o tiroteio soldados brasileiros revistaram casas na área para recuperar balas e cartuchos usados na operação. Rosianne tinha com ela dois “grandes balaços”. Um deles, coberto de sangue, ela havia apanhado da casa de Esterlin, e garante ser o que matou Herlens. Entregou aos soldados brasileiros. E agora repete o que ouviu: “Eles disseram que eram deles e os levaram.”
O professor James Cavallaro, diretor associado do Departamento de Direitos Humanos da Escola de Direito de Harvard e diretor de Relações Internacionais da Justiça Global, coordenou e supervisionou o trabalho. Entrevistas com ministros e autoridades brasileiras estão sendo agendadas para o mesmo dia do lançamento. Ele vai fazer uma maratona pelo Planalto. “A Missão escolheu o caminho mais fácil. E qual é o caminho mais fácil? Quem está no poder de fato no país? A polícia, que é o braço armado do governo, e ex-militares. Então o caminho mais fácil é ficar do lado do mais forte e deixar quem manda continuar matando”, diz ele. E acrescenta: “Não é só gente comum como o filho de Esterlin que está morrendo nas mãos da polícia ou de uma Missão que entra atirando na favela, mas esse governo, sob a presença das tropas de paz, está desmobilizando a oposição, o Lavalas, partido político do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide bastante presente nos bairros pobres de Porto Príncipe.”
O comandante das tropas de paz da ONU no Haiti, general Augusto Heleno Pereira, em uma das entrevistas que concedeu durante a compilação do relatório, atribuiu a morte da criança a gangues da favela. Segundo ele, tudo teria acontecido durante a noite, portanto antes da chegada das tropas. Mas moradores de Martissaint, bairro pobre de Porto Príncipe, acusam soldados brasileiros de estarem diretamente vinculados a outra morte violenta, que teria ocorrido durante uma operação de apoio à polícia haitiana. O drama do ajudante de carpinteiro Carlo Pierre, 26 anos, órfão de pai e mãe, começa em 27 de outubro de 2004. Às 7 horas da manhã, ele deixou a casa que dividia com os primos, os tios, a avó e a irmã. Uma hora depois um tiroteio começou. Às 11 e meia, um homem desceu a rua dizendo que alguém da área havia sido baleado. Gladis Edna, tia do rapaz, tomou coragem para ver o corpo. “Carlo estava coberto por um cobertor”, conta ela. Naquele dia Carlo não havia ido trabalhar. Juntou-se a uma manifestação pelo retorno de Aristide. O tio Roland Ednard explica por que o sobrinho participou do protesto: “O pai de Carlo foi assassinado após a queda do ex-presidente. Ele acreditava que, se Aristide voltasse, haveria justiça.”
Impassível – Uma testemunha que não quis se identificar assistiu de perto ao drama de Carlo. Ela lembra que, às 6 da manhã, partidários do Lavalas fecharam algumas ruas. Duas horas depois a polícia tentou subir o morro, mas não conseguiu e chamou a Minustah, que entrou com tanques para destruir as barricadas, atirando para todos os lados. Quando apontaram armas para o muro de uma escola, Carlo segurou uma pedra com uma das mãos para lançar contra um tanque. Foi atingido no estômago, no peito e na boca. Talvez os soldados nem sequer tenham notado que atingiram alguém. Policiais vinham logo atrás, usando máscaras para não serem identificados.
Mais frequentes do que as mortes atribuídas à Missão são as de autoria da polícia durante operações conjuntas. Nesses casos, a Minustah torna-se cúmplice por ficar impassível. No dia 24 de outubro do ano passado, um morador de Bel-Air, Jean Joseph Senat, 26 anos, um ex-técnico de comunicação, caminhava por volta das 7 horas da manhã de sua casa para a de sua mãe, no mesmo bairro. Notou alguns tanques da Missão e carros da polícia. Pouco tempo depois, foi atingido por uma bala na fronte, mas apenas perdeu quatro dentes. Ele viu quem atirou: um homem vestindo uniforme camuflado da Companhia para Intervenção e Manutenção da Ordem (Cimo), um grupo da Polícia Nacional Haitiana modelado, treinado e equipado pela Swat americana no passado e que hoje comete abusos.
A americana Anne Susin, monitora de direitos humanos do Instituto pela Justiça e Democracia no Haiti, trabalha há mais de um ano no país e tem acompanhado de perto a ação da polícia e das tropas da ONU. “Eles estão apoiando a Polícia Nacional. Por exemplo, em meados de outubro, a polícia iniciou uma operação em Bel-Air. As forças de paz permitiram uma porção de absurdos. Tivemos notícias de estupros e detenções, e alguns presos desapareceram”, afirma. Susin também acusa a Minustah de atuar com ex-militares, “reconhecendo as detenções ilegais que eles executam”.
Abusos – O relatório do Centro de Justiça Global conclui que “a menos que entre as responsabilidades (da Missão) esteja a perpetração de várias formas de abusos de direitos humanos – uma suposição absurda –, as tropas necessariamente violam o mandato do Conselho de Segurança quando simplesmente asseguram uma área ou montam guarda enquanto membros da Polícia cometem abusos”. Mas o general Heleno deixa clara a posição do comando militar no Haiti: “Nós oferecemos à polícia a proteção que ela não tinha. Damos espaço para que opere. Sim, nós fazemos isso.” O trabalho critica a posição do general, que “agiria melhor se entendesse que sua obrigação original é proteger civis”.
As prisões sem mandados também se multiplicam a cada dia. Em visita à Penitenciária Nacional em outubro do ano passado, o professor James Cavallaro não passou da sala do diretor. Na parede estava uma pequena lousa com números chocantes: de um total de 1.015 presos, apenas 21 haviam sido condenados. Ou seja, 98% dos presos são mantidos sem nenhuma condenação. Um caso que ganhou os jornais em todo o mundo foi o da prisão do padre Pierre Gerar Jean-Juste, solto após pressões do Exterior. Amigo pessoal de Aristide, Jean-Juste é um ativista de direitos humanos especializado em ajudar haitianos em dificuldades com a imigração americana. Rénan Hedouville, da ONG Carli (Comitê para o Respeito das Liberdades Individuais), lembra: “A polícia bateu nele acusando-o de ter armas, mas não acharam nada e, mesmo assim, o levaram preso sem a chance de ser ouvido por um juiz.” Mas a Missão não investiga abusos desse tipo alegando que é um problema para autoridades locais. O tenente Carlos Chagas, assistente do comandante Heleno, explica: “Se o problema de comportamento é do lado da Polícia Nacional, não há o que possamos fazer.” Ao se recusar a investigar, a Missão descumpre mais um ponto do mandato da ONU, segundo o qual deve prestar assistência na “monitoração, reestruturação e reforma da polícia”.
Abandono – O relatório do Centro de Justiça Global denuncia também outras práticas terríveis. Segundo o estudo, a Polícia Haitiana vem retirando pacientes civis dos hospitais, assassinando e, em certos casos, jogando os corpos em valas comuns. Samba Boukman lembra de vários de seus vizinhos que foram mortos assim. Ele conta que durante uma operação da polícia os adolescentes Gorda Guerrier e Guy Wilson sofreram ferimentos à bala nas costelas e no estômago e foram levados pelas famílias ao Hospital Geral. Dias depois, diz, a polícia entrou no hospital e matou os dois. Hoje, muitos feridos à bala recusam tratamento. Mas o general Heleno não vê necessidade de vigiar pacientes: “Eles (haitianos) não precisam de contingente militar em hospitais.” Segundo o relatório, a recusa em proteger feridos em hospitais contraria novamente o mandato do Conselho de Segurança da ONU porque deixa civis ameaçados no abandono. Ao ver as tropas brasileiras tomando partido de um dos lados, a população – que costuma demonstrar nas ruas seu afeto pelo Brasil e, principalmente, pelo futebol do País – começa a encará-las de maneira menos amigável. Alguns já perdem a paciência. Muitas vezes recebem soldados com paus, pedradas e até à bala.
Na última semana, uma das poucas notícias boas sobre o Haiti era a mobilização de autoridades promovida pelo governo francês para discutir medidas concretas em torno da reestruturação do país. Em Caiena, na Guiana Francesa, em 18 de março, o objetivo de uma reunião entre representantes da ONU, da OEA, o primeiro-ministro do Haiti, Gérard Latortue, e ministros das relações exteriores dos países que atuam na estabilização do país era encontrar soluções para o fortalecimento da chamada “boa governança”. Haitianos certamente agradecerão se ela vier em breve.