GUERRA DAS MALVINAS - O soldado sem farda e o Recife
Enviado: Dom Jul 08, 2012 11:20 am
No ano em que o conflito completa três décadas, piloto civil lembra viagem secreta com escala em Pernambuco
Há três meses, o Jornal do Commercio publicou uma série de reportagens sobre os 30 anos da Guerra das Malvinas, relembrando passagens marcantes do conflito sucedidas no Recife. Uma delas desengavetava história que o tempo empoeirou. Recontava a saga de sete pilotos civis da empresa Aerolíneas Argentinas que desafiaram a morte e voaram no escuro, de luzes apagadas, para buscar armamentos negociados em sigilo com o ditador líbio Muamar Kadafi. Na volta, a capital pernambucana era escala obrigatória para reabastecimento. Uma semana atrás, nos chegou mensagem de um destes guerreiros sem farda. A efeméride já passou. A guerra de 74 dias em que o Reino Unido saiu-se vitorioso contra a Argentina ocorreu entre abril e junho de 1982 e resultou na soberania britânica sobre as ilhas, ricas em petróleo. A tensão entre argentinos e britânicos, embora ainda persistente, amansou um tanto. Merecem ser redescobertas. Mas boas histórias transcendem os ponteiros do relógio. Juan Carlos Ardalla Alesina, 72 anos de vida, 30 de saudade e lamento, revisita o passado em que empunhou seu Boeing 707 em defesa da pátria portenha.
Ardalla festejou a retomada das Malvinas pelos militares argentinos, em um ataque surpresa deflagrado no distante 2 de abril de 1982. Até ali, era ele só mais um entre os milhares de anônimos que encheram as ruas de Buenos Aires, entre gritos, buzinaço e chuva de papel picado. Sequer imaginava o “convite” que lhe chegaria poucos dias depois. Irrecusável. Convocação de guerra ao piloto civil. “O presidente da companhia aérea fez o requerimento à frota de Boeing 707 e então fomos convocados”, contou, em entrevista por e-mail. A ordem havia partido da alta cúpula da Força Aérea da Argentina. Ninguém podia dizer não.
O grupo fez voos entre os dias 7 de abril e 9 de junho, enquanto a guerra explodia nas Malvinas, chamadas de Falklands pelos britânicos. Os dois primeiros foram para Israel, mas o apoio velado foi suspenso após intervenção dos Estados Unidos, tradicional aliado do Estado hebreu e que apoiava o Reino Unido no conflito. Uma incursão à África do Sul foi abortada por falta de acordo com o traficante de armas local. Ardalla não fora acionado para nenhuma das três viagens iniciais.
Foi aí que surgiu a Líbia. A Argentina estava longe de ser aliada do país árabe, mas no cenário da Guerra Fria o regime de Trípoli se unira à União Soviética contra os EUA e seus parceiros internacionais. Kadafi ofereceu ajuda e o ditador Leopoldo Galtieri de pronto aceitou. Documento assinado pelas partes em 14 de maio de 1982 selou o acordo.
Juan Carlos Ardalla, então, entrou em ação. Tinha 42 anos e jamais havia tocado numa arma. Nutria paixão pelo céu e devotou a ele a esperança de um país inteiro. Foram, ao todo, quatro voos dos pilotos civis para a Líbia. O comandante Ardalla fez um deles, entre 29 de maio e 3 de junho de 1982, dias derradeiros da guerra.
Estar vivo e poder contar sua história três décadas depois é quase um milagre. Ardalla pôs a vida em perigo lançando-se em voos secretos para buscar armamentos para a Argentina. Embarcou no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires. Nem mesmo os familiares podiam saber do que se tratava a missão. À mulher e filhos, o piloto falou que encararia mais um dia de trabalho. Sabia que poderia não voltar. “As tripulações eram integradas pelo comandante, dois copilotos, mais dois engenheiros de voo e um comissário de bordo”, revela. “Deste modo, foram armadas tripulações com o máximo de treinamento e em condições de voar com descansos mínimos”, complementa.
LÍBIA - Ardalla não chegou a ter contato com Muamar Kadafi, morto e sodomizado em outubro do ano passado em meio a um levante popular contra sua ditadura de 42 anos. Mas o argentino foi recebido por militares de alta patente, entre os quais o chefe das Forças Armadas da Líbia, brigadeiro Mustafá Muhamad al-Jarrubi. “A estada foi de vários dias. Ficamos internados em uma unidade militar. Não nos permitiram sair”, relata. De longe, avistou o bunker do ditador e recebeu de presente o Livro Verde, compêndio das doutrinas de Kadafi publicado nos anos 1970 e que servia de Constituição do país. Seu comissário de bordo teve a máquina fotográfica destruída pelas forças de segurança de Kadafi por tirar fotos de cargueiros russos. “Apesar disso, fomos muito bem tratados”, assegura.
Em uma das raras fotografias que registram o abastecimento secreto de armas, é justamente Ardalla quem aparece, de bigode, guardando uma caixa de munições dentro de seu Boeing 707 estacionado em um hangar militar na capital líbia. O piloto tinha o cuidado de equilibrar os pesos no interior da aeronave, para evitar problemas de pendor durante o longo e perigoso voo de volta. “Sabíamos que estes voos não eram cobertos pelo seguro e que estávamos sujeitos à interceptação inimiga”, pontua.
Sim, Juan Carlos Ardalla sempre esteve consciente de todos os riscos que corria. Tinha conhecimento de que carregava armas pesadas e que poderia ser abatido a qualquer momento ao cruzar o Atlântico. Os equipamentos eram acomodados no lugar dos assentos. Só da Líbia foram traficados 120 mísseis, 10 morteiros, mil bombas, 50 metralhadoras, 50 mil projéteis e 9 mil minas, num total de 40 toneladas de armamentos.
Toda a travessia do Oceano Atlântico ocorria sob tensão. Mas ele sabia que o perigo maior estava sobre a ilha britânica de Ascensão, onde a frota do Reino Unido estava estacionada – com embarcações e aviões que mais tarde viriam a bombardear os argentinos nas Malvinas.
“O risco era cruzar, na rota do Atlântico Sul, a linha de patrulha do avião britânico Nimrod, equipado com mísseis Sidewinder; a zona da ponte aérea entre Londres e Ascensão, com permanente voo de aeronaves armadas e navios de guerra armados com mísseis de terra-ar; e os radares de Gibraltar, Malta, entre outros, tudo sob controle do Reino Unido”, detalha. “Tivemos medo de ser derrubados durante meu voo, já que, por se tratar do quinto avião com armas, pensávamos que os ingleses já haviam identificado o expediente”, completa.
O risco era cruzar, na rota do Atlântico Sul, a linha de patrulha do avião britânico Nimrod, equipado com mísseis Sidewinder; a zona da ponte aérea entre Londres e Ascensão, com permanente voo de aeronaves armadas e navios de guerra armados com mísseis de
Juan Carlos Ardalla
O jeito era driblar a patrulha inimiga voando à noite, de avião apagado, silencioso. “Empregamos algumas técnicas evasivas e voamos sem luzes e com o rádio desligado”, conta. Era comum dar posições falsas e desativar o radar. O recurso, para lá de falível, acabou dando certo. Nenhum Boeing 707 foi descoberto ou abatido. “Quando a pátria está em guerra, você sente que seu dever está em ajudar. Não se pensa em riscos”, ensina, com a sabedoria que o tempo herdou, o hoje senhor Ardalla, que mantém o bigode mas viu o negro cabelo branquear.
PERNAMBUCO - Livre da ameaça no Atlântico, Juan Carlos Ardalla celebrava a chegada ao continente americano. Antes de desembarcar em Buenos Aires com o dever cumprido, fazia sua única escala no Aeroporto Internacional dos Guararapes, no Recife. Voos anteriores chegaram a fazer uma parada anterior em Madri, mas a Espanha acabou pressionada pela comunidade europeia a não contribuir com a Argentina. “O Recife foi nossa única possibilidade para reabastecimento”, admite. Razão suficiente para guardar a capital pernambucana no coração. “Conheci a charmosa cidade do Recife antes disso até. Já havia voado antes como piloto da Aerolíneas e fiz algumas paradas em Pernambuco. Não tive oportunidade de ver muita coisa, porque ficava pouco tempo, mas me encantou a praia”, elogia.
A parada tinha de ser breve e discreta. No máximo, uma pernoite. Ardalla acredita que o governo brasileiro era conivente com a Argentina, permitindo as escalas em seu território, embora o Brasil adotasse, oficialmente, uma posição de neutralidade durante a guerra. “Nós aterrissávamos à noite com as armas e, por via das dúvidas, não deixávamos ninguém subir no avião enquanto se carregava o combustível para seguirmos viagem de imediato”, explica ele, piloto da Aerolíneas por 36 anos e hoje consultor.
“O Brasil se comportou como um verdadeiro aliado. O governo provavelmente sabia o que transportávamos. Decerto os informes oficiais eram de carga geral para não comprometer o regime brasileiro. Mas sem a ajuda de vocês nada disso teria sido feito. Não há como não amar o Brasil”, enfatiza, em tom de gratidão.
ARGENTINA - Mas o auxílio brasileiro e o esforço de Ardalla resultaram inúteis. Os armamentos adquiridos na Líbia eram, na maioria dos casos, de origem soviética. Conhecido pelos outros seis pilotos civis como o especialista do grupo, por ter passado a se dedicar ao assunto após encerrada a guerra, o comandante estima que somente 30% das armas chegaram às Malvinas – antes, seguiam para Río Gallegos. Os argentinos não sabiam manusear os armamentos. Desconheciam a tecnologia utilizada na União Soviética. “Os militares líbios nos perguntaram se tínhamos assessores cubanos para poder manusear as armas russas. Dissemos que não, que só havia peruanos. Isso os satisfez”, conta.
A resistência portenha durou até 14 de junho e custou a vida de 649 militares argentinos e 255 britânicos. A vitória do Reino Unido deu a Londres a soberania sobre o arquipélago, situado a 500 quilômetros de Buenos Aires e disputado pelos países desde o s
A resistência portenha durou até 14 de junho e custou a vida de 649 militares argentinos e 255 britânicos. A vitória do Reino Unido deu a Londres a soberania sobre o arquipélago, situado a 500 quilômetros de Buenos Aires e disputado pelos países desde o século 19.
O segredo de Ardalla, no entanto, perdurou até este ano. Só agora revelou aos parentes sua cruzada sigilosa. Maior que o medo de morrer, diz ele, só a lembrança da derrota. É o que mais dói. Recordação que três décadas não conseguiram apagar, sequer abrandar. “Fica o consolo de que, para eles, não foi um piquenique. Nossa gente lutou com honra e valor”, frisa.
Ardalla aposentou-se como piloto da Aerolíneas e jamais recebeu dinheiro ou privilégios por se sujeitar à morte na Guerra das Malvinas. Calejado, rejeita outro conflito armado. O tempo lecionou que sangue não cura nem resolve. Civil com status e orgulho de veterano de guerra, ele pede que as duas partes se sentem para conversar sobre o futuro das ilhas. Mas não abre mão da verdade que o fez arriscar a vida 30 anos atrás e que carrega latente ainda hoje: “As Malvinas não são penhascos batidos pelo vento. São ricas e são argentinas”.
Por Wagner Sarmento
http://jconline.ne10.uol.com.br
Há três meses, o Jornal do Commercio publicou uma série de reportagens sobre os 30 anos da Guerra das Malvinas, relembrando passagens marcantes do conflito sucedidas no Recife. Uma delas desengavetava história que o tempo empoeirou. Recontava a saga de sete pilotos civis da empresa Aerolíneas Argentinas que desafiaram a morte e voaram no escuro, de luzes apagadas, para buscar armamentos negociados em sigilo com o ditador líbio Muamar Kadafi. Na volta, a capital pernambucana era escala obrigatória para reabastecimento. Uma semana atrás, nos chegou mensagem de um destes guerreiros sem farda. A efeméride já passou. A guerra de 74 dias em que o Reino Unido saiu-se vitorioso contra a Argentina ocorreu entre abril e junho de 1982 e resultou na soberania britânica sobre as ilhas, ricas em petróleo. A tensão entre argentinos e britânicos, embora ainda persistente, amansou um tanto. Merecem ser redescobertas. Mas boas histórias transcendem os ponteiros do relógio. Juan Carlos Ardalla Alesina, 72 anos de vida, 30 de saudade e lamento, revisita o passado em que empunhou seu Boeing 707 em defesa da pátria portenha.
Ardalla festejou a retomada das Malvinas pelos militares argentinos, em um ataque surpresa deflagrado no distante 2 de abril de 1982. Até ali, era ele só mais um entre os milhares de anônimos que encheram as ruas de Buenos Aires, entre gritos, buzinaço e chuva de papel picado. Sequer imaginava o “convite” que lhe chegaria poucos dias depois. Irrecusável. Convocação de guerra ao piloto civil. “O presidente da companhia aérea fez o requerimento à frota de Boeing 707 e então fomos convocados”, contou, em entrevista por e-mail. A ordem havia partido da alta cúpula da Força Aérea da Argentina. Ninguém podia dizer não.
O grupo fez voos entre os dias 7 de abril e 9 de junho, enquanto a guerra explodia nas Malvinas, chamadas de Falklands pelos britânicos. Os dois primeiros foram para Israel, mas o apoio velado foi suspenso após intervenção dos Estados Unidos, tradicional aliado do Estado hebreu e que apoiava o Reino Unido no conflito. Uma incursão à África do Sul foi abortada por falta de acordo com o traficante de armas local. Ardalla não fora acionado para nenhuma das três viagens iniciais.
Foi aí que surgiu a Líbia. A Argentina estava longe de ser aliada do país árabe, mas no cenário da Guerra Fria o regime de Trípoli se unira à União Soviética contra os EUA e seus parceiros internacionais. Kadafi ofereceu ajuda e o ditador Leopoldo Galtieri de pronto aceitou. Documento assinado pelas partes em 14 de maio de 1982 selou o acordo.
Juan Carlos Ardalla, então, entrou em ação. Tinha 42 anos e jamais havia tocado numa arma. Nutria paixão pelo céu e devotou a ele a esperança de um país inteiro. Foram, ao todo, quatro voos dos pilotos civis para a Líbia. O comandante Ardalla fez um deles, entre 29 de maio e 3 de junho de 1982, dias derradeiros da guerra.
Estar vivo e poder contar sua história três décadas depois é quase um milagre. Ardalla pôs a vida em perigo lançando-se em voos secretos para buscar armamentos para a Argentina. Embarcou no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires. Nem mesmo os familiares podiam saber do que se tratava a missão. À mulher e filhos, o piloto falou que encararia mais um dia de trabalho. Sabia que poderia não voltar. “As tripulações eram integradas pelo comandante, dois copilotos, mais dois engenheiros de voo e um comissário de bordo”, revela. “Deste modo, foram armadas tripulações com o máximo de treinamento e em condições de voar com descansos mínimos”, complementa.
LÍBIA - Ardalla não chegou a ter contato com Muamar Kadafi, morto e sodomizado em outubro do ano passado em meio a um levante popular contra sua ditadura de 42 anos. Mas o argentino foi recebido por militares de alta patente, entre os quais o chefe das Forças Armadas da Líbia, brigadeiro Mustafá Muhamad al-Jarrubi. “A estada foi de vários dias. Ficamos internados em uma unidade militar. Não nos permitiram sair”, relata. De longe, avistou o bunker do ditador e recebeu de presente o Livro Verde, compêndio das doutrinas de Kadafi publicado nos anos 1970 e que servia de Constituição do país. Seu comissário de bordo teve a máquina fotográfica destruída pelas forças de segurança de Kadafi por tirar fotos de cargueiros russos. “Apesar disso, fomos muito bem tratados”, assegura.
Em uma das raras fotografias que registram o abastecimento secreto de armas, é justamente Ardalla quem aparece, de bigode, guardando uma caixa de munições dentro de seu Boeing 707 estacionado em um hangar militar na capital líbia. O piloto tinha o cuidado de equilibrar os pesos no interior da aeronave, para evitar problemas de pendor durante o longo e perigoso voo de volta. “Sabíamos que estes voos não eram cobertos pelo seguro e que estávamos sujeitos à interceptação inimiga”, pontua.
Sim, Juan Carlos Ardalla sempre esteve consciente de todos os riscos que corria. Tinha conhecimento de que carregava armas pesadas e que poderia ser abatido a qualquer momento ao cruzar o Atlântico. Os equipamentos eram acomodados no lugar dos assentos. Só da Líbia foram traficados 120 mísseis, 10 morteiros, mil bombas, 50 metralhadoras, 50 mil projéteis e 9 mil minas, num total de 40 toneladas de armamentos.
Toda a travessia do Oceano Atlântico ocorria sob tensão. Mas ele sabia que o perigo maior estava sobre a ilha britânica de Ascensão, onde a frota do Reino Unido estava estacionada – com embarcações e aviões que mais tarde viriam a bombardear os argentinos nas Malvinas.
“O risco era cruzar, na rota do Atlântico Sul, a linha de patrulha do avião britânico Nimrod, equipado com mísseis Sidewinder; a zona da ponte aérea entre Londres e Ascensão, com permanente voo de aeronaves armadas e navios de guerra armados com mísseis de terra-ar; e os radares de Gibraltar, Malta, entre outros, tudo sob controle do Reino Unido”, detalha. “Tivemos medo de ser derrubados durante meu voo, já que, por se tratar do quinto avião com armas, pensávamos que os ingleses já haviam identificado o expediente”, completa.
O risco era cruzar, na rota do Atlântico Sul, a linha de patrulha do avião britânico Nimrod, equipado com mísseis Sidewinder; a zona da ponte aérea entre Londres e Ascensão, com permanente voo de aeronaves armadas e navios de guerra armados com mísseis de
Juan Carlos Ardalla
O jeito era driblar a patrulha inimiga voando à noite, de avião apagado, silencioso. “Empregamos algumas técnicas evasivas e voamos sem luzes e com o rádio desligado”, conta. Era comum dar posições falsas e desativar o radar. O recurso, para lá de falível, acabou dando certo. Nenhum Boeing 707 foi descoberto ou abatido. “Quando a pátria está em guerra, você sente que seu dever está em ajudar. Não se pensa em riscos”, ensina, com a sabedoria que o tempo herdou, o hoje senhor Ardalla, que mantém o bigode mas viu o negro cabelo branquear.
PERNAMBUCO - Livre da ameaça no Atlântico, Juan Carlos Ardalla celebrava a chegada ao continente americano. Antes de desembarcar em Buenos Aires com o dever cumprido, fazia sua única escala no Aeroporto Internacional dos Guararapes, no Recife. Voos anteriores chegaram a fazer uma parada anterior em Madri, mas a Espanha acabou pressionada pela comunidade europeia a não contribuir com a Argentina. “O Recife foi nossa única possibilidade para reabastecimento”, admite. Razão suficiente para guardar a capital pernambucana no coração. “Conheci a charmosa cidade do Recife antes disso até. Já havia voado antes como piloto da Aerolíneas e fiz algumas paradas em Pernambuco. Não tive oportunidade de ver muita coisa, porque ficava pouco tempo, mas me encantou a praia”, elogia.
A parada tinha de ser breve e discreta. No máximo, uma pernoite. Ardalla acredita que o governo brasileiro era conivente com a Argentina, permitindo as escalas em seu território, embora o Brasil adotasse, oficialmente, uma posição de neutralidade durante a guerra. “Nós aterrissávamos à noite com as armas e, por via das dúvidas, não deixávamos ninguém subir no avião enquanto se carregava o combustível para seguirmos viagem de imediato”, explica ele, piloto da Aerolíneas por 36 anos e hoje consultor.
“O Brasil se comportou como um verdadeiro aliado. O governo provavelmente sabia o que transportávamos. Decerto os informes oficiais eram de carga geral para não comprometer o regime brasileiro. Mas sem a ajuda de vocês nada disso teria sido feito. Não há como não amar o Brasil”, enfatiza, em tom de gratidão.
ARGENTINA - Mas o auxílio brasileiro e o esforço de Ardalla resultaram inúteis. Os armamentos adquiridos na Líbia eram, na maioria dos casos, de origem soviética. Conhecido pelos outros seis pilotos civis como o especialista do grupo, por ter passado a se dedicar ao assunto após encerrada a guerra, o comandante estima que somente 30% das armas chegaram às Malvinas – antes, seguiam para Río Gallegos. Os argentinos não sabiam manusear os armamentos. Desconheciam a tecnologia utilizada na União Soviética. “Os militares líbios nos perguntaram se tínhamos assessores cubanos para poder manusear as armas russas. Dissemos que não, que só havia peruanos. Isso os satisfez”, conta.
A resistência portenha durou até 14 de junho e custou a vida de 649 militares argentinos e 255 britânicos. A vitória do Reino Unido deu a Londres a soberania sobre o arquipélago, situado a 500 quilômetros de Buenos Aires e disputado pelos países desde o s
A resistência portenha durou até 14 de junho e custou a vida de 649 militares argentinos e 255 britânicos. A vitória do Reino Unido deu a Londres a soberania sobre o arquipélago, situado a 500 quilômetros de Buenos Aires e disputado pelos países desde o século 19.
O segredo de Ardalla, no entanto, perdurou até este ano. Só agora revelou aos parentes sua cruzada sigilosa. Maior que o medo de morrer, diz ele, só a lembrança da derrota. É o que mais dói. Recordação que três décadas não conseguiram apagar, sequer abrandar. “Fica o consolo de que, para eles, não foi um piquenique. Nossa gente lutou com honra e valor”, frisa.
Ardalla aposentou-se como piloto da Aerolíneas e jamais recebeu dinheiro ou privilégios por se sujeitar à morte na Guerra das Malvinas. Calejado, rejeita outro conflito armado. O tempo lecionou que sangue não cura nem resolve. Civil com status e orgulho de veterano de guerra, ele pede que as duas partes se sentem para conversar sobre o futuro das ilhas. Mas não abre mão da verdade que o fez arriscar a vida 30 anos atrás e que carrega latente ainda hoje: “As Malvinas não são penhascos batidos pelo vento. São ricas e são argentinas”.
Por Wagner Sarmento
http://jconline.ne10.uol.com.br