15 de novembro: Os Militares e a República
Enviado: Seg Nov 15, 2004 9:10 pm
Os militares e a República
MARCO ANTONIO VILLA - Folha de S. Paulo
A República nasceu sob o signo do militarismo: um golpe de Estado instaurou o novo regime. O Império tinha-nos livrado do caudilhismo, doença epidêmica na América Latina. Os republicanos, minoria política no final dos anos 1880, conseguiram um atalho para o poder, aliando-se aos militares, insatisfeitos com o regime monárquico, principalmente desde a Questão Militar -um conjunto de incidentes envolvendo a quebra de hierarquia entre oficiais e os ministros da Guerra, estes, todos civis. Desde então o fantasma do militarismo ronda a democracia brasileira.
Com a redemocratização, em 1985, esperava-se que as Forças Armadas retornassem às suas funções constitucionais e que o presidente José Sarney tomasse a iniciativa de moldá-las ao regime democrático. Ledo engano. Sarney, refém do ministro do Exército, o general Leônidas Pires Gonçalves, nada fez durante os cinco anos de mandato para resolver tal questão. De forma radicalmente distinta agiu o presidente Raul Alfonsin. Numa situação muito mais desconfortável, dada a amplitude e a violência da repressão da ditadura argentina, criou uma comissão para tratar da questão dos presos políticos, torturados e desaparecidos nos anos 1976-1983, publicou o relatório da comissão, os ditadores foram julgados, condenados e presos. Já, no Brasil, nada ocorreu.
Desde então as Forças Armadas não fizeram parte da agenda política, mesmo após a criação do Ministério da Defesa. É uma espécie de tema maldito. Vez ou outra a questão reaparece na cena política, mas some rapidamente, sem deixar rastros. E continuamos com as Forças Armadas intocadas, com uma pesada estrutura, que custa caro, muito caro, ao país. O poder civil mal sabe do seu funcionamento interno -basta recordar o episódio recente da nota glorificando os anos de chumbo. Ora são lembradas para combater a criminalidade nas grandes cidades, ora para algum trabalho assistencialista, como o programa Fome Zero. Como não se sabe bem o que fazer com elas, o governo ou ignora sua existência, ou atende alguma demanda corporativa. E, como diria o locutor esportivo Fiori Gigliotti, "o tempo passa". Porém, ao contrário do que ocorre nas transmissões esportivas, o espetáculo não termina.
A questão central não é a abertura dos arquivos do período do regime militar. Isso pode ser resolvido facilmente através de uma decisão corajosa do presidente da República ou enviando um projeto de lei, em regime de urgência, para o Congresso Nacional. O que deve ser discutido e resolvido é o papel das
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O que deve ser discutido e resolvido é o papel das Forças Armadas em um Estado democrático
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Forças Armadas em um Estado democrático. Em outras palavras, deve ser respondida a pergunta: Forças Armadas para quê? O governo até hoje nem sequer pensou na questão -e os militares, muito menos. O que se discute são problemas pontuais, como o aumento dos salários ou o reequipamento das três Forças.
É difícil compreender a necessidade de manter tantos homens e equipamentos estacionados na fronteira Sul. Deve-se ao temor de uma invasão argentina? Qual a necessidade da Vila Militar, no Rio de Janeiro, e de tantas outras espalhadas pelo país? Como explicar que a Marinha esteja ausente do patrulhamento dos rios na Amazônia Legal e a Aeronáutica tenha pouca presença na região? Por que temos tantos generais, almirantes e brigadeiros? Como explicar que a Marinha -poderia também citar o Exército ou a Aeronáutica- tem, só no Rio de Janeiro ou nas proximidades, além da sede do 1º Comando Naval, mais quatro comandos (Fuzileiros, Divisão Anfíbia, Tropa de Reforço e a Chefia da Esquadra), além de outros 30 comandos e diretorias? Há alguma explicação para sediar o 7º Comando em Brasília? É para controlar a navegação no lago Paranoá?
Continuo com as perguntas: as escolas militares alteraram seus currículos desde o fim do regime militar? São formados oficiais dentro do espírito democrático, consubstanciado na Constituição de 1988? Reequipar as Forças Armadas para atuar onde e como? E a nossa indústria bélica, não poderia ser reativada para atender parte desses pedidos?
São muitas as perguntas; pena que não tenhamos as respostas.
Não se resolve a "questão militar", assim como no final do Império, indo aos bailes dos oficiais, usando uniformes militares ou pedindo para esquecer o passado. Muito menos dando alguma função ao vice-presidente da República. Cabe ao governo e aos partidos políticos desenhar o modelo de Forças Armadas que pretendem para o país, adequado à conjuntura de um mundo com clara hegemonia norte-americana e com inimigos que não são mais os do século 19.
Por que não termos Forças Armadas organizadas em pequenas unidades, profissionalizadas, devidamente equipadas, permitindo a defesa eficaz das fronteiras nacionais e, quando necessário, segundo o disposto na Constituição, a manutenção da ordem interna?
Uma saudável comemoração, no ano que vem, dos 20 anos de regime civil e democrático -marca única na história brasileira- seria a transformação, finalmente, das Forças Armadas em uma instituição moderna e plenamente democrática.
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Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil (1945-1964)" (editora Globo).
MARCO ANTONIO VILLA - Folha de S. Paulo
A República nasceu sob o signo do militarismo: um golpe de Estado instaurou o novo regime. O Império tinha-nos livrado do caudilhismo, doença epidêmica na América Latina. Os republicanos, minoria política no final dos anos 1880, conseguiram um atalho para o poder, aliando-se aos militares, insatisfeitos com o regime monárquico, principalmente desde a Questão Militar -um conjunto de incidentes envolvendo a quebra de hierarquia entre oficiais e os ministros da Guerra, estes, todos civis. Desde então o fantasma do militarismo ronda a democracia brasileira.
Com a redemocratização, em 1985, esperava-se que as Forças Armadas retornassem às suas funções constitucionais e que o presidente José Sarney tomasse a iniciativa de moldá-las ao regime democrático. Ledo engano. Sarney, refém do ministro do Exército, o general Leônidas Pires Gonçalves, nada fez durante os cinco anos de mandato para resolver tal questão. De forma radicalmente distinta agiu o presidente Raul Alfonsin. Numa situação muito mais desconfortável, dada a amplitude e a violência da repressão da ditadura argentina, criou uma comissão para tratar da questão dos presos políticos, torturados e desaparecidos nos anos 1976-1983, publicou o relatório da comissão, os ditadores foram julgados, condenados e presos. Já, no Brasil, nada ocorreu.
Desde então as Forças Armadas não fizeram parte da agenda política, mesmo após a criação do Ministério da Defesa. É uma espécie de tema maldito. Vez ou outra a questão reaparece na cena política, mas some rapidamente, sem deixar rastros. E continuamos com as Forças Armadas intocadas, com uma pesada estrutura, que custa caro, muito caro, ao país. O poder civil mal sabe do seu funcionamento interno -basta recordar o episódio recente da nota glorificando os anos de chumbo. Ora são lembradas para combater a criminalidade nas grandes cidades, ora para algum trabalho assistencialista, como o programa Fome Zero. Como não se sabe bem o que fazer com elas, o governo ou ignora sua existência, ou atende alguma demanda corporativa. E, como diria o locutor esportivo Fiori Gigliotti, "o tempo passa". Porém, ao contrário do que ocorre nas transmissões esportivas, o espetáculo não termina.
A questão central não é a abertura dos arquivos do período do regime militar. Isso pode ser resolvido facilmente através de uma decisão corajosa do presidente da República ou enviando um projeto de lei, em regime de urgência, para o Congresso Nacional. O que deve ser discutido e resolvido é o papel das
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O que deve ser discutido e resolvido é o papel das Forças Armadas em um Estado democrático
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Forças Armadas em um Estado democrático. Em outras palavras, deve ser respondida a pergunta: Forças Armadas para quê? O governo até hoje nem sequer pensou na questão -e os militares, muito menos. O que se discute são problemas pontuais, como o aumento dos salários ou o reequipamento das três Forças.
É difícil compreender a necessidade de manter tantos homens e equipamentos estacionados na fronteira Sul. Deve-se ao temor de uma invasão argentina? Qual a necessidade da Vila Militar, no Rio de Janeiro, e de tantas outras espalhadas pelo país? Como explicar que a Marinha esteja ausente do patrulhamento dos rios na Amazônia Legal e a Aeronáutica tenha pouca presença na região? Por que temos tantos generais, almirantes e brigadeiros? Como explicar que a Marinha -poderia também citar o Exército ou a Aeronáutica- tem, só no Rio de Janeiro ou nas proximidades, além da sede do 1º Comando Naval, mais quatro comandos (Fuzileiros, Divisão Anfíbia, Tropa de Reforço e a Chefia da Esquadra), além de outros 30 comandos e diretorias? Há alguma explicação para sediar o 7º Comando em Brasília? É para controlar a navegação no lago Paranoá?
Continuo com as perguntas: as escolas militares alteraram seus currículos desde o fim do regime militar? São formados oficiais dentro do espírito democrático, consubstanciado na Constituição de 1988? Reequipar as Forças Armadas para atuar onde e como? E a nossa indústria bélica, não poderia ser reativada para atender parte desses pedidos?
São muitas as perguntas; pena que não tenhamos as respostas.
Não se resolve a "questão militar", assim como no final do Império, indo aos bailes dos oficiais, usando uniformes militares ou pedindo para esquecer o passado. Muito menos dando alguma função ao vice-presidente da República. Cabe ao governo e aos partidos políticos desenhar o modelo de Forças Armadas que pretendem para o país, adequado à conjuntura de um mundo com clara hegemonia norte-americana e com inimigos que não são mais os do século 19.
Por que não termos Forças Armadas organizadas em pequenas unidades, profissionalizadas, devidamente equipadas, permitindo a defesa eficaz das fronteiras nacionais e, quando necessário, segundo o disposto na Constituição, a manutenção da ordem interna?
Uma saudável comemoração, no ano que vem, dos 20 anos de regime civil e democrático -marca única na história brasileira- seria a transformação, finalmente, das Forças Armadas em uma instituição moderna e plenamente democrática.
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Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil (1945-1964)" (editora Globo).