Legião Estrangeira, a minha experiência pessoal.

[legionario]

Boas,
Criei este topico para publicar a minha experiencia pessoal na Legiao Estrangeira.
A maior parte do que aqui vou colocar ja escrevi num outro forum em Portugal, e portanto vou fazer um "copiar/colar" dos textos que ali escrevi, depois de eventualmente ter feito algumas revisoes. Desenvolverei tambem algumas partes que nao foram suficientemente relatadas, ou de todo escritas.
Tomei esta iniciativa porque durante o meu serviço na L.E. conheci muitos brasileiros, camaradas de armas, com quem eu tive sempre um excelente relacionamento e porque penso que havera muitos outros irmaos brasileiros que gostariam de ter uma informaçao sobre a Legiao, para além dos "clichés" habituais.
O meu relato sera dividido am varias partes que serao acompanhadas de algumas das fotos que fui acumulando ao longo do meu serviço.
Antes de publicar a primeira parte que diz respeito aos motivos que me levaram a alistar-me, e à instruçao no 4°RE , aguardarei um lapso de tempo para dar tempo ao administrador do forum de me "despejar" do forum... caso entenda que o meu relato nao é bem vindo.
Cumprimentos a todos

[joao fernando]

Pq não seria bem vindo?

Bem vindo ao Forum Defesa Brasil. E que começe logo a postar seus relatos

[Túlio]

Tá esperando o quê? Estou CURIOSO, POWS!!!

E olhes o que está escrito ali, abaixo das minhas estrelinhas...

[Dorfus]

Já percebestes legionario? Agora vai ser despejado SE NÃO contar...

[Moccelin]

Bom, já passaram duas horas, e um Administrador (Túlio) já passou, então senta a ripa e posta os textos!

[joao fernando]

SE não postar logo, vc que sentira a ripa nas costas...

[Túlio]

BOURNE anda por aqui, nem que seja EM ESPÍRITO...

[legionario]

Tal como uma boa parte dos jovens, sempre apreciei os filmes e a literatura de açao e de aventuras e desde os 14 ou 15 anos que sabia da existencia deste Corpo militar, cuja reputaçao me fascinava na altura. Em oposiçao à rotina da minha vida que eu considerava estupida e sem sabor, eu sonhava com outros horizontes, sonhava com viagens a paises exoticos e distantes, sonhava com aventuras e até com combates heroicos...
Uma altura durante as minhas férias escolares de verao fui trabalhar para um hotel da minha cidade como recepcionista noturno para ganhar algum dinheiro e foi aqui que, estava eu "encostado" a dormitar com as portas do hotel ja fechadas , quando por volta das 2 ou 3 da manha me apareceu um cliente que me despertou a atençao : era um tipo dos seus 30 anos , magro , seco e de ar atlético , cabelos cortados muito curtos e com um olhar, que apesar de dar a impressao que me varava de lado a lado, tinha qualquer coisa de ... nao sei bem explicar, como se lhe faltasse aluguma coisa, como se estivesse num continuo sofrimento, algo que nao sei definir bem. O homem tinha estado a beber alccol, via-se bem, mas mantinha uma atitude digna e correcta e falou normalmente quando me pediu um quarto. Depois do quarto pediu-me que o fosse servir ao bar e... foi aqui que , com os meus 17 anos conheci pela primeira um verdadeiro legionario e que durante o resto da noite, ouvi historias sobre a Legiao.

[legionario]

Nunca mais equeci este encontro e o que esse legionario me contou ficou gravado em mim até hoje, sobretudo quando soube pouco tempo depois que ele teve um fim tragico, um fim que ele escolheu ele mesmo.

Anos depois, ja depois de ter cumprido o serviço militar que na altura era obrigatorio, e ja estando (bem) empregado numa multinacional e com uma vida aparentemente organizada, deu-se o "clique". Estava farto de toda aquela vida rotineira , organizada e previsivel, estava farto da minha cidade, dos amigos e até da familia. Tudo me aborrecia e nada me motivava.
O diretor regional da multinacional onde eu trabalhava ficou estarrecido quando eu o informei que me ia embora no fim do mês ; é que eu tinha acabado de fazer uma formaçao na empresa que lhes tinha custado uma fortuna, e assim de repente mandar tudo às urtigas, nao foi muito bem aceite...

Eu nao disse a ninguem que ia para a Legiao, nao queria passar por "fraco" caso nao fosse selecionado, por isso informei a minha familia que ia de férias para França durante 15 dias...e a minha familia so voltou a têr noticias minhas ao fim de 3 meses, ja o meu pai me tinha procurado por todo o lado : hospitais, policia, embaixada, etc

[legionario]

No dia 10 de abril de 1989 depois de ter comprado um bilhete de expresso Leiria - Bayonne deixei a cidade que me viu nascer e 24 horas depois estava diante da porta do posto de recrutamento da legiao, que nessa altura existia nesta cidade francesa perto da fronteira espanhola.
O cabo-chefe veterano que me recebeu olhou para mim de alto a baixo com cara de poucos amigos, perguntou-me o que queria e depois de ouvir a minha resposta, mandou-me entrar para uma dependencia do forte, onde fiquei sozinho, pois pelos vistos eu era o primeiro candidato do dia.
Momentos depois entraram dois cabos antigos que me ordenaram secamente que me despisse completamente ao mesmo tempo que revistaram a pouca bagagem que eu levava. Retiraram-me rigorosamente tudo o que eu trazia comigo, deram-me um velho fato de treino verde e mandaram-me tomar um douche.
O resto do dia passei-o a fazer limpezas de balde e esfregona na mao e tambem tive que lavar a louça de toda a gente e limpar a cozinha depois da refeiçao. Essa noite passei-a numa especie de pequena camarata de beliches junto com mais 2 ou 3 candidatos espanhois que entretanto tambem se tinham apresentado.

[legionario]

No dia seguinte, depois de ter tomado o pequeno almoço e de mais uma vez ter feito as limpezas, fui chamado a uma sala onde se encontravam um médico e dois pequenos graduados . O médico, lembro-me que era muito simpatico, o que contrastava com os demais presentes, fez-me um exame basico e as perguntas habituais : se tinha tido fracturas, problemas de saude, viu-me os dentes, controlou-me a visao, mediu-me, pesou-me, perguntou-me se ja me tinha drogado, se bebia alcool, etc. Tratava-se com efeito da primeira inspeçao médica muito sumaria que é habitualmente feita logo ao principio. Logo aqui fui o primeiro a ficar pois os outros candidatos foram logo eliminados, ja nao me recordo porque razao.
Mais dois dias em limpezas no forte e na madrugada do quarto dia fui enviado para Aubagne de comboio, acompanhado por um cabo-chefe. Lembro-me de este ter adormecido e se ter esquecido de descer em Aubagne, fomos parar nao sei onde e depois tivemos que voltar para traz.
Em Aubagne, encontra-se o 1° Régiment étranger, que é nao so a casa-mae da Legiao como o centro de seleçao por onde todos os candidatos têm que passar a fim de prestar uma bateria de testes e de exames.

[legionario]

Aqui recebi verdadeiramente o primeiro choque. Fui posto junto com as dezenas de candidatos que provinham de todos os postos de recrutamento que na altura existiam nas principais cidades francesas. O clima era pesado, a mistura de cheiros de toda aquela gente era horrivel, falavam-se todas as linguas, gritava-se por todo o lado e os cabos que nos enquadravam nao se privavam de distribuir pancada cada vez que achavam necessario ou que lhes apetecia.
Foi aqui que conheci os primeiros portugueses, alguns dos quais (eramos 5 no total) haveriam de ser enviados comigo, 4 semanas depois, ao 4° régiment étranger de Castelnaudary para ai efectuarmos a instruçao juntos.
Durante o dia, era formaturas por tudo e por nada, assim como as "corvée quartier" que consistia em pôr o pessoal todo em linha para apanhar as "beatas" dos cigarros que estavam no chao...
Passei 4 semanas em testes de seleçao, exames médicos, limpezas e entrevistas, das quais destaco a temida passagem pela "Gestapo". A Gestapo era a alcunha que se dava ao serviço de segurança da legiao e onde os "inspectores" tentavam saber de nos aquilo que eventualmente quisessemos esconder deles : se pertenciamos a esta ou aquela organizaçao, qual o nosso percurso de vida, porque queriamos ir para a legiao, se ja tinhamos consumido drogas, se ja tinhamos sido condenados em justiça...etc etc.

[legionario]

Foi-me dada a opçao de mudar de nome o que eu recusei. Alguns candidatos que tinham problemas com a justiça ou porque assim o solicitavam, mudavam de nome, de nacionalidade e de data de nascimento. Todos os candidatos de origem francesa "recebiam" obrigatoriamente uma outra nacionalidade e so um ano mais tarde poderiam pedir a "rectification" e recuperar a sua verdadeira identidade caso tal fosse possivel, pois para muitos tal era impossivel visto terem problemas com a justiça ou porque simplesmente nao queriam.

Qual o perfil dos candidatos ? havia de todas as origens e profissoes (mesmo um ex-padre) e de todas as idades dos 18 (alguns muito poucos com 17 anos) aos 36 anos e uma boa parte provinham dos paises de leste, havia tambem bastantes portugueses, espanhois, alemaes, ingleses, belgas, chineses, e mesmo um ou outro americano.

Nesta altura, em cada 12 candidatos so ficava 1. Eu, assim como os outros portugueses que ja referi, fizemos parte do lote de selecionados e brevemente iriamos partir juntos para o regimento de instruçao. Formavamos um grupo solidario, e hei-de referir-me a eles mais tarde no decorrer da minha hstoria.

[legionario]

Durante o processo de seleçao dos futuros legionarios em Aubagne, é tambem explicado aos candidatos o que é a Legiao, quais as suas missoes, os seus regimentos, a sua Historia , as suas tradiçoes e o que é o espirito legionario. Começa-se aqui, logo desde o inicio , a ser inculcado em cada um, o sentimento de pertença a uma familia, uma grande familia de que farao parte para sempre, mesmo depois de regressados à vida civil, todos os legionarios.

No dia 30 de abril comemora-se uma das duas principais festas da Legiao, que é a evocaçao do combate de Camerone. A outra grande festa da Legiao é o Natal, festa da familia ; entenda-se, da familia legionaria.
No dia 30 de abril estava eu ainda em fase de seleçao em Aubagne, e foi aqui pois, que assiti pela primeira vez a esta grandiosa e espectacular comemoraçao, a que assistem nao so as centenas, senao milhares de civis, como diversas associaçoes de antigos combatentes e os representantes das "amicales d'anciens légionnaires".
Deixo aqui um brevissimo resumo sobre Camerone, verdadeiro alicerce inspirador do "'espirito legionario" :

[legionario]

Entre 1861 e 1867, a França juntamente com a Inglaterra, Espanha e a Belgica, enviou uma força expedicionaria ao México por razoes de ordem politico-estratégica da época.
Ao contrario do que se possa pensar, o combate de Camerone nao foi protagonizado por uma unidade de choque da Legiao, mas sim por oficiais e legionarios rebuscados nos diferentes serviços de apoio do regimento, pois nao havia outras tropas disponiveis :

Em 1863 durante esta expediçao ao Mexico, o exercito francês cerca a cidade mexicana de Puebla e para abastecer as forças sitiantes, uma coluna francesa parte do porto de Vera Cruz carregada de mantimentos, de muniçoes e de 3 milhoes de francos em dinheiro. O comando francês recebeu informaçoes em como esta coluna seria atacada pelos mexicanos e decide enviar uma companhia para explorar o itinerario e prevenir eventuais ataques.
Devido às febres, esta companhia nao tinha oficiais disponiveis, e o capitao Danjou, oficial administrativo (Adjudant-Major do regimento), assim como o alferes Jean Vilain (oficial da tesouraria) e ainda o alferes Clément Maudet (porta-estandarte) oferecem-se como volontarios.
Na madrugada de 30 de abril de 1863, uma força de 62 legionarios da 3° companhia do regimento estrangeiro da Legiao, comandada pelos 3 oficiais ja referidos, parte ao encontro da coluna de reabastecimento e depois de ter percorrido uma vintena de quilometros, à altura da aldeia de Camerone (Camaron de Tejeda), avistam as forças mexicanas, comandadas pelo coronel Milan e compostas por 1200 homens de infantaria e 800 de cavalaria.
O capitao Danjou decide entao de se barricar numa "hacienda" afim de resistir o mais tempo possivel permitindo entretanto a coluna de reabastecimento de atingir o seu objectivo.
O capitao Danjou recusa a intimaçao de se render dos mexicanos e antes de morrer, atingido por uma bala no peito, faz prestar aos seus homens o juramento de nao se renderem .