O que é uma favela carioca?
Enviado: Qua Jul 21, 2004 5:12 pm
Um texto altamente esclarecedor é que faz jus a uma leitura lenta e cuidadosa. O historiador e antropólogo Marcos Alvito é um homem decente e do mais alto grau intelectual. O que ele diz deve ser levado em conta por quaisquer pessoas interessadas em compreender os graves problemas de ordem social, econômica e cultural que atormentam não só o Rio de Janeiro, mas também outras áreas do país.
Os negritos são de minha autoria.
ABANDONO E PRECONCEITO SÃO ESTIGMAS DAS FAVELAS.
Domingo, 19 de Agosto de 2001
O historiador Marcos Alvito trocou anos de estudo sobre Grécia pelas três favelas siamesas que compõem Acari, na Av. Brasil. Disso resultou sua tese de doutorado e um livro (As cores de Acari) que ilumina o fenômeno da favelização no Rio de Janeiro. A aventura mudou a visão que tinha sobre a pobreza e a violência que atordoam a cidade.
Entrevista / MARCOS ALVITO
por MÁRCIA VIEIRA e Jonas Cunha
Mulheres de Atenas e Mulheres de Atenas e Esparta. Este seria o tema de tese de doutorado em antropologia de Marcos Alvito, 40 anos, historiador carioca de rosto anguloso, fascinado por versos de Homero. Das ''estratégias de apropriação do corpo feminino'' na Grécia para o feijão de dona Marlene em Acari, favelão plano nos confins da Avenida Brasil, foi um enorme salto. Da harmonia para o caos. Da sabedoria oracular para Xangô, a quem hoje reverencia sempre que chega em casa. É o protetor das pedreiras e seu apartamento no Jardim Botânico dá de cara para uma. Também trocou horas de leitura pela pelada regada a cerveja nos fins de semana na favela onde leva o filho de sete anos e joga no ataque, na banheira, para compensar seus escassos recursos.
A aventura em que Alvito se lançou resultou no livro ''As cores de Acari - Uma Favela Carioca'', lançado pela Editora da Fundação Getúlio Vargas, que renova e atualiza em grande estilo os estudos sobre a favelização no Rio de Janeiro. A experiência não lhe rendeu apenas amizades entre os 40 mil habitantes de Acari - ''criei laços fortes com os moradores; continuo indo lá'' - mas uma compreensão mais aguda do que são as mais de 600 favelas onde vivem um milhão de cariocas. Em Acari, viu de perto a brutalidade da polícia, a crueldade dos traficantes, fervor evangélico, jovens mães viciadas em cocaína, mas também raros exemplos de sociabilidade, além de estratégias de sobrevivência de quem já se acostumou com a orfandade do poder público e cada vez tem menos oportunidades de melhorar de vida só trabalhando. ''Um ambiente de injustiça e abandono facilita a penetração de esquemas criminosos onde jovens são usados como mão de obra barata'', diz. ''O tráfico é neoliberal, vai onde tem mão de obra mais barata''.
Vista na intimidade a favela derruba suas lendas. Ali funciona o varejo da droga para alimentar o viciado da Zona Sul. Meia verdade. Cada vez mais os pobres estão se viciando em cocaína, numa proporção alarmante, depõe Alvito. Favelado não gosta de polícia, prefere os traficantes. Falso. Acari viveu dias de esplendor com uma ocupação da polícia civil. A educação é a única saída para se melhorar de vida. Outra meia verdade. Favelados fazem um imenso esforço para educar os filhos, mas mesmo com segundo grau eles não encontram emprego decente e acabam, como os pais, caixeiros na Ceasa. Não há simplificação que ajude a entender a complexidade da favela.
A vida de Alvito mudou completamente. Hoje dá aulas de História da Sexualidade. Aprendeu a tocar pandeiro. Anda até freqüentando shows de samba. Nesta entrevista para o Jornal do Brasil falou sobre o mundo das favelas, um fenômeno inexorável da vida carioca, para dizer que só é possível entendê-las, como são, jogando fora a pesada carga de preconceitos e estereótipos que desviam a atenção dos problemas reais.
Esta semana discutiu-se muito a atuação da polícia no combate ao tráfico de drogas nas favelas cariocas. Os moradores das favelas preferem a ocupação policial à presença do tráfico?
Claro. Mas existem vários tipos de ocupação policial. A ocupação feita em Acari, em 1996, foi uma ocupação de exceção. Foi a polícia civil, na gestão do Hélio Luz (Chefe da Polícia Civil), com ordens claras de ocupar a favela respeitando os moradores. Os policiais estavam ali para desmantelar o tráfico. Sem tocar na comunidade. E nos poucos meses em que a polícia civil ficou lá, pacificamente, o tráfico acabou. Mesmo. Em dois, três meses, os policiais conseguiram achar mais armas e drogas do que a polícia militar, que entrava três vezes por dia em Acari, durante 10 anos. Os traficantes foram embora. Quem era aviãozinho, quem era endolador, quem não era conhecido pela polícia ficou ali, procurou outro emprego, mudou de vida. O resto fugiu. A polícia desmontou também a possibilidade do tráfico voltar. Os moradores me diziam que a favela estava uma maravilha, que a polícia estava respeitando todo mundo. E isto é muito importante. Os moradores diziam que enquanto a polícia civil estivesse lá, agindo corretamente, não havia condição moral para o tráfico voltar. A favela estava melhor sem ele. Os moradores têm idéia de justiça e reciprocidade muito forte. Se a polícia respeita os moradores, eles também respeitam a polícia. E aí eles não dão apoio para nenhum traficante. Pode ser um menino que eles viram crescer. Os moradores diziam na época: ''a favela está maravilhosa, está uma uva, a polícia deveria ficar aqui um milhão de anos.''
O que aconteceu quando a polícia civil foi embora?
Entrou a polícia militar. No início, eram policiais de batalhões diferentes. Portanto não dava para o traficante saber qual policial aceitava propina. Ficava difícil o acerto, o esquema da corrupção. Depois houve a entrada do batalhão de choque. Os soldados usaram Acari para treinar. Ficavam correndo pela favela de fuzil na mão, com crianças brincando na rua. Eu ficava alucinado vendo aquilo. E depois finalmente veio o 9° Batalhão da Polícia Militar. Aí todo mundo se arrepiou e os moradores prenunciaram que o tráfico ia voltar. A violência é irmã da corrupção e a corrupção é a irmã do tráfico. A linguagem da violência é a linguagem do tráfico. Quando ficou apenas o posto policial comunitário, com um número muito menor de policiais, de um único batalhão, que já tinha todo um acerto com os traficantes. Aí é óbvio que o tráfico voltou. Voltou em outras modalidades, menos ostensivo. Mas voltou.
O primeiro passo para acabar com o tráfico no Rio é ocupar as favelas nos moldes que a Polícia Civil fez em Acari?
Não, isto não é solução. Primeiro porque não tem tropa policial suficiente para ocupar todas as comunidades. Não há homens preparados para fazer este tipo de ocupação feita pela polícia civil de desmantelamento e de inteligência. E quando você ocupa uma série de favelas, as facções correm para outras. O tráfico é rápido, móvel, adaptável. Portanto não é nessa esfera do varejinho que vai se conseguir combater o tráfico. Hoje em Acari tem tráfico de drogas e corrupção policial. Onde tem corrupção tem morte porque se o traficante não paga a polícia mata. É o que o Caio Ferraz (sociólogo que dirigiu a Casa da Paz em Vigário Geral) chamava de chacina à prestação. Todo mundo se choca quando morrem 21 pessoas de uma só vez, mas na verdade toda semana morre um, dois, três. E não se acaba com o poder do tráfico de uma hora para outra. A turma que tem 15 anos já nasceu na favela com a percepção de que a autoridade máxima ali é o líder do tráfico. Portanto, mesmo no momento em que a polícia tinha desmantelado o tráfico em Acari, pairava ainda nas mentes e nos corpos dos moradores o medo da volta do tráfico. Eles estavam o tempo todo pensando na possibilidade de um dia o tráfico voltar. Um dia quem não agisse corretamente teria que prestar contas. E isso é uma verdade. Portanto não são momentos de presença policial que vão apagar esta certeza. A população pobre jamais teve segurança. Ela sempre esteve abandonada à própria sorte tendo que criar seus mecanismos de sobrevivência.
Como se poderia atacar o tráfico, eliminá-lo de vez das favelas?
Para resolver a violência, tem que pensar em resolver o problema da injustiça. Tem que pensar em resolver o problema do desemprego, do preconceito racial, da desigualdade ao acesso à educação, à assistência médica. Um ambiente de injustiça, de abandono facilita a penetração de esquemas criminosos, que usam estes jovens como mão-de-obra barata. O tráfico é neoliberal. Ele vai onde tem mão-de-obra mais barata, de fácil reposição. Onde tem jovem de 15 anos disposto a arriscar a própria vida em troca daquele dinheiro, ele se instala. O dia em que a classe média empobrecer o suficiente para aceitar este dinheiro, ele também vai empregar gente de classe média. É possível desmantelar o tráfico indo ao Fórum. Quem são esses advogados que defendem os traficantes? Tem que investigar daí pra cima.
Este poder que o tráfico tem na favela se estende às associações de moradores? Até que ponto o tráfico domina estas associações nas favelas cariocas?
Em cada favela há uma relação diferente. O que pesa nesta diferença é a relação da favela com o restante da sociedade. Ela é determinante na possibilidade da associação de moradores construir alianças que permitam a ela contrabalançar o poder do tráfico. Isso aconteceu em Vigário Geral, depois da chacina de 21 pessoas que chamou atenção de todo mundo para a favela. E acontece na Mangueira, por causa da visibilidade da escola de samba. Nesta favelas fica mais fácil para a associação de moradores construir uma relação diferente com o tráfico. Acari nunca teve nada disso. Fica muito longe da Zona Sul, lá no fundo da Avenida Brasil. Em Acari não vai ninguém. O líder comunitário fica sem aliança possível. Mas mesmo em Acari houve uma resistência ao tráfico por parte da associação de moradores. Teve até um presidente que chegou a criar uma cela dentro da sede da associação para prender traficante e entregar para a polícia. É claro que depois ele teve que sair fugido para não morrer. Em Acari existem várias associações. Umas mais outras menos ligadas ao tráfico. Em uma delas a influência do tráfico era tão grande que a sede foi construída pelo Cy (ex-chefe do tráfico, já morto). Era uma baita duma sede, com dois andares.
Nestes seis anos frequentando Acari e outras favelas, o Sr. percebe um aumento do número de pessoas pobres consumindo drogas?
Em todos os lugares que fui isso me chamou muito atenção. Tinha muita esta idéia de que a favela é o lugar do varejo e que a classe média e os ricos é que consomem a droga. Infelizmente não é verdade. Eu vi coisas assustadoras. Mãe entrando com filho de 12 anos na boca-de-fumo. Mãe carregando filho recém-nascido para consumir droga. Tudo gente pobre. Vi grupos de senhores de 50 anos cheirando cocaína numa birosca. O problema da droga e da dependência química dentro das comunidades pobres é muito mais amplo do que a gente pode avaliar. A quantidade de dependentes químicos em favela hoje é enorme. Em Parada de Lucas eu via entrar uma multidão, tinha até trocador de ônibus. É claro que tinha gente que ia revender, mas a quantidade é impressionte. O próprio tráfico tem preocupação com isso. No caso do viciado que vem de fora para comprar droga, o traficante estabelece as normas disciplinares. Proíbe que ele cheire ou fume no meio da rua (no livro, Alvito revela a existência de um ''Cheiródromo'' em Acari) e até quanto tempo ele pode ficar na favela. Mas o morador não. É mais complicado. O morador fica o tempo todo olhando a boca-de-fumo, vendo onde os caras malocam as coisas. Ouvi muitas histórias em Acari sobre estas pessoas. Gente que se aproveitava das entradas da polícia na favela para roubar as drogas que os traficantes escondiam. É claro que depois eram assassinados pelos traficantes. Sem discussão.
O uso de drogas hoje é maior do que o consumo de álcool nas comunidades carentes?
Depende da geração. Na turma que hoje está com 40/50 anos o grande problema ainda é o alcoolismo. Nas igrejas evangélicas é assim: as mulheres desta idade vão lá porque têm um marido alcoólatra ou um filho viciado em drogas. Já as mulheres de 30 é meio a meio. O marido pode ser viciado ou alcoólatra. Às vezes, os dois vícios caminham juntos.
O que leva os jovens a trabalharem para o tráfico? É o desemprego, a miséria?
Não dá para fazer a associação miséria/criminalidade. Senão a India seria o país com maior índice de criminalidade no mundo. E não é. Senão o Nordeste, que é mais miserável que Rio e São Paulo, seria mais violento. E não é. Quando este jovem escolhe o rumo que vai dar na vida, ele tem opções. As opções hoje estão muito restritas, o mercado de trabalho está mais fechado, mais exigente. Antes não precisava ter segundo grau para conseguir alguma coisa. Hoje precisa e o diploma não te garante mais nada. Na favela isto é impressionante. A primeira geração que se instalou em Acari viveu uma ascensão social. Ele passou do barraco de madeira para a casa de alvenaria de dois andares. Mas a geração seguinte não avançou muito. Tirando um ou outro caso a ascensão social do pobre está barrada. O sujeito bancou o filho no segundo grau, no curso de inglês, esperando que ele conseguisse uma profissão melhor. Mas o filho hoje está carregando caixote no Ceasa. E o que é pior, o filho nunca teve a expectativa de ser carregador no Ceasa. Ele esperava mais. Isso para ele é descer na vida, ao contrário do pai, que tem orgulho do que conseguiu carregando caixote.
Estudar pra quê? Estudando na escola pública, ele sabe que não vai passar para faculdade pública. Quando consegue passar, entra para carreiras menos disputadas. Vai ser assistente social, porque já é negro, favelado, então vai trabalhar com negro e favelado. Por que um morador de favela não pode ser físico nuclear ou médico? O campo de possibilidades é mínimo. Não é a miséria que leva ao tráfico. Em contato com estas expectativas insatisfeitas, o adolescente vê um outro mundo com chance de ganhar dinheiro. Traficante gosta de lasanha, gosta de pizza. Traficante gosta de uísque. Não bebe cerveja. Por que? Ele gosta de coisas que a classe média gosta. Como aquela mãe que conta no livro que tem um filho que trabalhava no tráfico. Ela diz ''até os filhos dele são metidos. São diferentes dos meus outros netos. Só comem biscoito recheado''. Mesmo entre os biscoitos há uma divisão. A sociedade brasileira é hierárquica. De repente, você tem um jovem com uma explosão de testosterona com aquela coisa de se sentir imortal, querendo inverter o sistema hierárquico em que ele é mandado. Você dá uma oportunidade para ele ganhar dinheiro, ele vai, ele entra para o tráfico. Mas os que vão são minoria. A maioria rala, sofre e se submete.
No livro, o senhor diz que o Comando Vermelho e o Terceiro Comando existem mais nos discursos da polícia e nas reportagens do jornal, do que na realidade da favela. O tráfico não é então tão organizado quanto se imagina?
Esta divisão existe na cadeia e existe principalmente como divisão simbólica, na construção da identidade dos meninos. Em escolas hoje no Rio o recreio tem que ser dividido. Os meninos que são de favela do Comando Vermelho e os que são de favela do Terceiro Comando não se misturam. Os meninos estão acostumados a esse universo dividido, maniqueísta. Do ponto de vista simbólico é assim. Agora do ponto de vista de estruturação, dos traficantes serem organizados efetivamente é uma piada. É para não se ver o que está acima deles. O que existe de fato é um conjunto de alianças que o chefe do tráfico de uma área faz com o chefe de uma outra área. São alianças localizadas, não existe um comando que determina as ações de todas as favelas filiadas.
O senhor destaca no livro a importância da religião dentro de Acari. Por que as igrejas evangélicas de um modo geral, e as pentecostais em particular, conseguiram se firmar com toda força em Acari e nas outras favelas cariocas?
Estas religiões são de salvação individual. O indivíduo dá o testemunho, ele vai se batizar, se converter, se transformar, renascer. As pessoas passam também a dispor de uma alavanca para entender o mundo em que vivem. Como analisar um mundo em que se corta a cabeça dos inimigos? Um mundo onde as pessoas são esquartejadas, colocadas dentro de um saco e jogadas para o porco comer? Como é que você vai explicar o significado do terror, do indizível, daquilo que você não consegue imaginar e que você vê ali na sua frente? As pessoas convivem com o mal absoluto. E aí entram essas religões. Elas fazem uma oposição entre o bem e o mal. Os moradores têm cotidianamente a exemplificação do mal. O mal é o crime, a droga, a arma. E aí a igreja acrescenta: o mal é a macumba, é o feitiço, são os espíritos, são os Exus. Está muito difícil praticar o candomblé nas favelas hoje em dia. De início, quando o tráfico se implantou, as religiões afro-brasileiras eram hegemônicas e tinham uma força muito grande. Então os chefes do tráfico também eram das religiões afro-brasileiras. Porque ela é a mais democrática que tem. Na festa do candomblé, a porta fica aberta. Ninguém precisa se converter, nem acreditar, nem pagar o dízimo. As igrejas pentecostais colocam as religiões afro-brasileiras na conta do mal. Dizem que o traficante que matou, que estuprou, que cortou a cabeça, estava possuído por Exu. Este mesmo traficante quando se converte, diz isso: ''Não fui eu. Eu era apenas um instrumento do demônio, do diabo''. Aí ele renasce. O morador da favela identifica logo o traficante, que mata, que rouba, que destrói. Ele olha para a droga, que é motivo de morte, de destruição, de desestruturação familiar - a droga acaba sendo chamada de diabo ralado.
E por que o tráfico não impede a entrada destas igrejas na favela?
Porque como esse pensamento já se tornou hegemônico, o próprio tráfico se vê como um mal. Ele não nega que ele seja o mal. Aí ele assume e anuncia que ele não é só o mal. Ele é o terror. Aí ele tem que ser mais maligno do que o outro para levar mais pânico, mais medo, e vencer o inimigo. É a violência absoluta.
A maioria da população de Acari frequenta as igrejas evangélicas?
Não fiz nenhum trabalho estatístico. Mas em Acari são cerca de 40 mil pessoas. Existem lá 37 templos religiosos, sendo que 31 são evangélicos. Dá uma média de 1 200 pessoas por templo. E destes centros evangélicos, 80% são pentecostais. A religião que domina as conversas em Acari é a pentecostal. Do ponto de vista individual, este mecanismo é muito poderoso para reconstituir um significado do mundo. A religião ajuda a reconstruir o mundo que está diante de você. E o mundo é um garoto de 14 anos matando outro garoto de 14 anos. É o filho de 13 anos batendo no próprio pai. É um chefe de 18 anos tendo não sei quantas meninas. É a droga rolando solta. É o marido que volta em casa bêbado e espanca a mulher. É o desemprego. É a escola e o hospital que não fucionam. Enfim, é o caos absoluto. Mas você não consegue viver no caos absoluto, do ponto de vista simbólico. Quando o mundo não faz mais sentido, você enlouquece. Quando você percebe que não tem saída, você entra para a religião. Ela te dá um sistema simbólico que é muito
apropriado para a situação que você está vivendo. O do candomblé é muito mais complexo de entender. Para o indivíduo, a fé é uma coisa belíssima. Individualmente faz bem. Mas para o coletivo não. O convertido se isola. Ele não pode beber, não pode ir a festas. Depois não podem nem jogar futebol com quem não é da religião, que eles chamam de ímpios. Porque se o ímpio faz uma falta mais dura é porque ele é um agente do mal que está te testando. Ele vai se isolando e passando a conviver só com quem é da igreja.
A favela tem o estereótipo de ser um lugar caótico e violento. É só preconceito?
O que é característico da favela não é a violência. É a sociabilidade, é a amizade. É este vínculo pessoal, o calor humano. Isto é marcante. A violência é uma visitante indesejada e que está presente em toda a sociedade brasileira. A favela tem uma ética comportamental que não existe no resto da cidade. Etiqueta na favela é importante. Mulher casada só pode ser chamada de ''dona''. Todo mundo fala bom dia, boa tarde, boa noite. As pessoas precisam desta relação para sobreviver. A vizinha precisa da outra para tomar conta do filho enquanto vai trabalhar. O outro precisa do vizinho para fazer um serviço de pedreiro. E assim por diante. Há outros estereótipos errados. A própria idéia de favela é uma mentira. O contexto de cada favela muda tanto que praticamente a única coisa que une as favelas é o preconceito que os moradores do asfalto têm em relação às favelas. Elas são completamente diferentes entre si. É claro que existem algumas coisas semelhantes: os moradores não tem título de propriedade, eles são todos pobres. Mas não é aquele negócio de que você viu uma favela e já conhece todas. Só é assim quando você lida com estereótipos. Cada uma tem uma dinâmica, uma riqueza. Aquilo que se acusa a favela, de ser violenta, suja, irracional, mas marcada por uma alegria excessiva, é um resumo do que se acha do negro. É a mesma visão. O negro é sujo, violento, é alegre, está sempre sorrindo, gosta de festa. O estereótipo é o mesmo.
O que estas comunidades, como Acari, precisam para se tornar lugares melhores para os seus moradores?
O grande problema da favela hoje está no asfalto. É a sociedade inteira achar que a favela é um problema. Ela não é um problema. Ela foi uma solução que a população pobre encontrou para sobreviver. A favela cheira mal porque o lixeiro não passa lá para recolher o lixo. Não é como no asfalto que a Comlurb passa três vezes por semana pela rua. Não há ajuda nenhuma de infraestrutura urbana, e aí se diz que as ruas são caóticas.
Então a chegada do favela-bairro é boa para estas comunidades?
O morador de favela geralmente quer que chegue o favela-bairro porque ele fica feliz com qualquer coisa que ele possa ganhar. Mas a gente tem que perceber o seguinte: 80% da urbanização das favelas foi feita pelos próprios moradores. Isso é fundamental. Se isso fosse contado economicamente, imagina quanto valeria? Acari era inabitável. Era um pântano. Foi devidamente aterrado e aplainado e se tornou área habitável. Os moradores colocaram um sistema de água. Colocaram um sistema de luz, muito antes da Light entrar. A favela tem esta imagem de coisa atrasada. Mas não é verdade. Ela é antenada. Outro dia, lá em Acari, vi um bar: o Internet Beer Show. Não tem computador, mas tem o nome. O cara sabe que internet está na moda. Tem aula de aeróbica na favela. Favelado é um cara progressista. Ele é ligadão nas novidades. Ele compra o tênis da última moda, é bem verdade que o dele é o falsificado, mas ele sabe o que a Zona Sul está usando. O favela-bairro é visto como um benefício, mas ele não resolve o problema da favela porque não existe um problema arquitetônico naquele espaço. O problema é a inserção na sociedade destas pessoas que vivem em favelas. O favela-bairro aproveita o que os moradores já fizeram, coloca uma rampinha, bota a placa. Mas e o problema do emprego, da capacitação da juventude? E o problema da escola, do hospital, do tráfico? O favela-bairro tem um outro problema a médio e longo prazo. A prefeitura urbaniza, melhora a aparência. A casa valoriza. Mas se o morador continua na mesma pindaíba, uma classe média empobrecida pode querer ir morar lá, pode querer comprar a casa. Se o morador da favela está numa situação difícil, porque ele continua sem chances de emprego, ele vende a casa e vai construir um barraco lá em outro lugar. Aí é uma remoção branca. E tem outro problema. Se legalizar tudo na favela, der o título de propriedade, o Estado vai querer cobrar imposto. Vai querer regularizar a situação do comércio, exigir alvará. Então todo este projeto favela-bairro, além dos dividendos políticos, também é uma forma de a médio prazo começar a cobrança de impostos. Se os moradores de favela jamais foram incorporados como cidadãos, eles vão ser incorporados como contribuintes.
Acari foi marcado também pelo projeto Fábrica da Esperança, do pastor evangélico Caio Fábio. O projeto ficou desacreditado depois que polícia encontrou cocaína escondida no prédio. A Fábrica da Esperança era boa para os moradores?
Eu não conheci a Fábrica. Só posso dizer que ela não tinha nenhum enraizamento comunitário. Ela atendia as pessoas de Acari, mas todo o seu staff era de fora. As psicólogas que trabalhavam lá vieram me perguntar como é que eu fazia para entrar na favela porque elas nunca tinham entrado.
O Sr.passou três anos frequentando Acari e hoje mantém amigos por lá. Esta convivência com a favela mudou a sua vida de alguma forma?
Muito. Eu era ateu convicto. Achava religião uma coisa estúpida, alienada, fruto da ignorância. Mas vi que a religião é apenas uma forma de pensar o mundo. Rezar o pai nosso não significa que você acredite exatamente naquelas palavras. O mais importante na religião é a prática. É a demonstração de que você é humilde suficiente para pedir ajuda, para não se sentir todo-poderoso. Eu agora abraço todos os deuses. Os deuses gregos, os deuses do candomblé, o deus dos evangélicos, que é o deus da Dona Marlene, a matriarca de uma família que eu conheci lá e que acabei me tornando amigo. Aprendi mais coisas na favela. Aprendi que a sinceridade lá é fundamental. Ao contrário do mundo acadêmico que é hipócrita, cínico, político, na favela o que conta é manter a palavra. O principal patrimônio de quem vive na favela é a honestidade, o caráter.
Os negritos são de minha autoria.
ABANDONO E PRECONCEITO SÃO ESTIGMAS DAS FAVELAS.
Domingo, 19 de Agosto de 2001
O historiador Marcos Alvito trocou anos de estudo sobre Grécia pelas três favelas siamesas que compõem Acari, na Av. Brasil. Disso resultou sua tese de doutorado e um livro (As cores de Acari) que ilumina o fenômeno da favelização no Rio de Janeiro. A aventura mudou a visão que tinha sobre a pobreza e a violência que atordoam a cidade.
Entrevista / MARCOS ALVITO
por MÁRCIA VIEIRA e Jonas Cunha
Mulheres de Atenas e Mulheres de Atenas e Esparta. Este seria o tema de tese de doutorado em antropologia de Marcos Alvito, 40 anos, historiador carioca de rosto anguloso, fascinado por versos de Homero. Das ''estratégias de apropriação do corpo feminino'' na Grécia para o feijão de dona Marlene em Acari, favelão plano nos confins da Avenida Brasil, foi um enorme salto. Da harmonia para o caos. Da sabedoria oracular para Xangô, a quem hoje reverencia sempre que chega em casa. É o protetor das pedreiras e seu apartamento no Jardim Botânico dá de cara para uma. Também trocou horas de leitura pela pelada regada a cerveja nos fins de semana na favela onde leva o filho de sete anos e joga no ataque, na banheira, para compensar seus escassos recursos.
A aventura em que Alvito se lançou resultou no livro ''As cores de Acari - Uma Favela Carioca'', lançado pela Editora da Fundação Getúlio Vargas, que renova e atualiza em grande estilo os estudos sobre a favelização no Rio de Janeiro. A experiência não lhe rendeu apenas amizades entre os 40 mil habitantes de Acari - ''criei laços fortes com os moradores; continuo indo lá'' - mas uma compreensão mais aguda do que são as mais de 600 favelas onde vivem um milhão de cariocas. Em Acari, viu de perto a brutalidade da polícia, a crueldade dos traficantes, fervor evangélico, jovens mães viciadas em cocaína, mas também raros exemplos de sociabilidade, além de estratégias de sobrevivência de quem já se acostumou com a orfandade do poder público e cada vez tem menos oportunidades de melhorar de vida só trabalhando. ''Um ambiente de injustiça e abandono facilita a penetração de esquemas criminosos onde jovens são usados como mão de obra barata'', diz. ''O tráfico é neoliberal, vai onde tem mão de obra mais barata''.
Vista na intimidade a favela derruba suas lendas. Ali funciona o varejo da droga para alimentar o viciado da Zona Sul. Meia verdade. Cada vez mais os pobres estão se viciando em cocaína, numa proporção alarmante, depõe Alvito. Favelado não gosta de polícia, prefere os traficantes. Falso. Acari viveu dias de esplendor com uma ocupação da polícia civil. A educação é a única saída para se melhorar de vida. Outra meia verdade. Favelados fazem um imenso esforço para educar os filhos, mas mesmo com segundo grau eles não encontram emprego decente e acabam, como os pais, caixeiros na Ceasa. Não há simplificação que ajude a entender a complexidade da favela.
A vida de Alvito mudou completamente. Hoje dá aulas de História da Sexualidade. Aprendeu a tocar pandeiro. Anda até freqüentando shows de samba. Nesta entrevista para o Jornal do Brasil falou sobre o mundo das favelas, um fenômeno inexorável da vida carioca, para dizer que só é possível entendê-las, como são, jogando fora a pesada carga de preconceitos e estereótipos que desviam a atenção dos problemas reais.
Esta semana discutiu-se muito a atuação da polícia no combate ao tráfico de drogas nas favelas cariocas. Os moradores das favelas preferem a ocupação policial à presença do tráfico?
Claro. Mas existem vários tipos de ocupação policial. A ocupação feita em Acari, em 1996, foi uma ocupação de exceção. Foi a polícia civil, na gestão do Hélio Luz (Chefe da Polícia Civil), com ordens claras de ocupar a favela respeitando os moradores. Os policiais estavam ali para desmantelar o tráfico. Sem tocar na comunidade. E nos poucos meses em que a polícia civil ficou lá, pacificamente, o tráfico acabou. Mesmo. Em dois, três meses, os policiais conseguiram achar mais armas e drogas do que a polícia militar, que entrava três vezes por dia em Acari, durante 10 anos. Os traficantes foram embora. Quem era aviãozinho, quem era endolador, quem não era conhecido pela polícia ficou ali, procurou outro emprego, mudou de vida. O resto fugiu. A polícia desmontou também a possibilidade do tráfico voltar. Os moradores me diziam que a favela estava uma maravilha, que a polícia estava respeitando todo mundo. E isto é muito importante. Os moradores diziam que enquanto a polícia civil estivesse lá, agindo corretamente, não havia condição moral para o tráfico voltar. A favela estava melhor sem ele. Os moradores têm idéia de justiça e reciprocidade muito forte. Se a polícia respeita os moradores, eles também respeitam a polícia. E aí eles não dão apoio para nenhum traficante. Pode ser um menino que eles viram crescer. Os moradores diziam na época: ''a favela está maravilhosa, está uma uva, a polícia deveria ficar aqui um milhão de anos.''
O que aconteceu quando a polícia civil foi embora?
Entrou a polícia militar. No início, eram policiais de batalhões diferentes. Portanto não dava para o traficante saber qual policial aceitava propina. Ficava difícil o acerto, o esquema da corrupção. Depois houve a entrada do batalhão de choque. Os soldados usaram Acari para treinar. Ficavam correndo pela favela de fuzil na mão, com crianças brincando na rua. Eu ficava alucinado vendo aquilo. E depois finalmente veio o 9° Batalhão da Polícia Militar. Aí todo mundo se arrepiou e os moradores prenunciaram que o tráfico ia voltar. A violência é irmã da corrupção e a corrupção é a irmã do tráfico. A linguagem da violência é a linguagem do tráfico. Quando ficou apenas o posto policial comunitário, com um número muito menor de policiais, de um único batalhão, que já tinha todo um acerto com os traficantes. Aí é óbvio que o tráfico voltou. Voltou em outras modalidades, menos ostensivo. Mas voltou.
O primeiro passo para acabar com o tráfico no Rio é ocupar as favelas nos moldes que a Polícia Civil fez em Acari?
Não, isto não é solução. Primeiro porque não tem tropa policial suficiente para ocupar todas as comunidades. Não há homens preparados para fazer este tipo de ocupação feita pela polícia civil de desmantelamento e de inteligência. E quando você ocupa uma série de favelas, as facções correm para outras. O tráfico é rápido, móvel, adaptável. Portanto não é nessa esfera do varejinho que vai se conseguir combater o tráfico. Hoje em Acari tem tráfico de drogas e corrupção policial. Onde tem corrupção tem morte porque se o traficante não paga a polícia mata. É o que o Caio Ferraz (sociólogo que dirigiu a Casa da Paz em Vigário Geral) chamava de chacina à prestação. Todo mundo se choca quando morrem 21 pessoas de uma só vez, mas na verdade toda semana morre um, dois, três. E não se acaba com o poder do tráfico de uma hora para outra. A turma que tem 15 anos já nasceu na favela com a percepção de que a autoridade máxima ali é o líder do tráfico. Portanto, mesmo no momento em que a polícia tinha desmantelado o tráfico em Acari, pairava ainda nas mentes e nos corpos dos moradores o medo da volta do tráfico. Eles estavam o tempo todo pensando na possibilidade de um dia o tráfico voltar. Um dia quem não agisse corretamente teria que prestar contas. E isso é uma verdade. Portanto não são momentos de presença policial que vão apagar esta certeza. A população pobre jamais teve segurança. Ela sempre esteve abandonada à própria sorte tendo que criar seus mecanismos de sobrevivência.
Como se poderia atacar o tráfico, eliminá-lo de vez das favelas?
Para resolver a violência, tem que pensar em resolver o problema da injustiça. Tem que pensar em resolver o problema do desemprego, do preconceito racial, da desigualdade ao acesso à educação, à assistência médica. Um ambiente de injustiça, de abandono facilita a penetração de esquemas criminosos, que usam estes jovens como mão-de-obra barata. O tráfico é neoliberal. Ele vai onde tem mão-de-obra mais barata, de fácil reposição. Onde tem jovem de 15 anos disposto a arriscar a própria vida em troca daquele dinheiro, ele se instala. O dia em que a classe média empobrecer o suficiente para aceitar este dinheiro, ele também vai empregar gente de classe média. É possível desmantelar o tráfico indo ao Fórum. Quem são esses advogados que defendem os traficantes? Tem que investigar daí pra cima.
Este poder que o tráfico tem na favela se estende às associações de moradores? Até que ponto o tráfico domina estas associações nas favelas cariocas?
Em cada favela há uma relação diferente. O que pesa nesta diferença é a relação da favela com o restante da sociedade. Ela é determinante na possibilidade da associação de moradores construir alianças que permitam a ela contrabalançar o poder do tráfico. Isso aconteceu em Vigário Geral, depois da chacina de 21 pessoas que chamou atenção de todo mundo para a favela. E acontece na Mangueira, por causa da visibilidade da escola de samba. Nesta favelas fica mais fácil para a associação de moradores construir uma relação diferente com o tráfico. Acari nunca teve nada disso. Fica muito longe da Zona Sul, lá no fundo da Avenida Brasil. Em Acari não vai ninguém. O líder comunitário fica sem aliança possível. Mas mesmo em Acari houve uma resistência ao tráfico por parte da associação de moradores. Teve até um presidente que chegou a criar uma cela dentro da sede da associação para prender traficante e entregar para a polícia. É claro que depois ele teve que sair fugido para não morrer. Em Acari existem várias associações. Umas mais outras menos ligadas ao tráfico. Em uma delas a influência do tráfico era tão grande que a sede foi construída pelo Cy (ex-chefe do tráfico, já morto). Era uma baita duma sede, com dois andares.
Nestes seis anos frequentando Acari e outras favelas, o Sr. percebe um aumento do número de pessoas pobres consumindo drogas?
Em todos os lugares que fui isso me chamou muito atenção. Tinha muita esta idéia de que a favela é o lugar do varejo e que a classe média e os ricos é que consomem a droga. Infelizmente não é verdade. Eu vi coisas assustadoras. Mãe entrando com filho de 12 anos na boca-de-fumo. Mãe carregando filho recém-nascido para consumir droga. Tudo gente pobre. Vi grupos de senhores de 50 anos cheirando cocaína numa birosca. O problema da droga e da dependência química dentro das comunidades pobres é muito mais amplo do que a gente pode avaliar. A quantidade de dependentes químicos em favela hoje é enorme. Em Parada de Lucas eu via entrar uma multidão, tinha até trocador de ônibus. É claro que tinha gente que ia revender, mas a quantidade é impressionte. O próprio tráfico tem preocupação com isso. No caso do viciado que vem de fora para comprar droga, o traficante estabelece as normas disciplinares. Proíbe que ele cheire ou fume no meio da rua (no livro, Alvito revela a existência de um ''Cheiródromo'' em Acari) e até quanto tempo ele pode ficar na favela. Mas o morador não. É mais complicado. O morador fica o tempo todo olhando a boca-de-fumo, vendo onde os caras malocam as coisas. Ouvi muitas histórias em Acari sobre estas pessoas. Gente que se aproveitava das entradas da polícia na favela para roubar as drogas que os traficantes escondiam. É claro que depois eram assassinados pelos traficantes. Sem discussão.
O uso de drogas hoje é maior do que o consumo de álcool nas comunidades carentes?
Depende da geração. Na turma que hoje está com 40/50 anos o grande problema ainda é o alcoolismo. Nas igrejas evangélicas é assim: as mulheres desta idade vão lá porque têm um marido alcoólatra ou um filho viciado em drogas. Já as mulheres de 30 é meio a meio. O marido pode ser viciado ou alcoólatra. Às vezes, os dois vícios caminham juntos.
O que leva os jovens a trabalharem para o tráfico? É o desemprego, a miséria?
Não dá para fazer a associação miséria/criminalidade. Senão a India seria o país com maior índice de criminalidade no mundo. E não é. Senão o Nordeste, que é mais miserável que Rio e São Paulo, seria mais violento. E não é. Quando este jovem escolhe o rumo que vai dar na vida, ele tem opções. As opções hoje estão muito restritas, o mercado de trabalho está mais fechado, mais exigente. Antes não precisava ter segundo grau para conseguir alguma coisa. Hoje precisa e o diploma não te garante mais nada. Na favela isto é impressionante. A primeira geração que se instalou em Acari viveu uma ascensão social. Ele passou do barraco de madeira para a casa de alvenaria de dois andares. Mas a geração seguinte não avançou muito. Tirando um ou outro caso a ascensão social do pobre está barrada. O sujeito bancou o filho no segundo grau, no curso de inglês, esperando que ele conseguisse uma profissão melhor. Mas o filho hoje está carregando caixote no Ceasa. E o que é pior, o filho nunca teve a expectativa de ser carregador no Ceasa. Ele esperava mais. Isso para ele é descer na vida, ao contrário do pai, que tem orgulho do que conseguiu carregando caixote.
Estudar pra quê? Estudando na escola pública, ele sabe que não vai passar para faculdade pública. Quando consegue passar, entra para carreiras menos disputadas. Vai ser assistente social, porque já é negro, favelado, então vai trabalhar com negro e favelado. Por que um morador de favela não pode ser físico nuclear ou médico? O campo de possibilidades é mínimo. Não é a miséria que leva ao tráfico. Em contato com estas expectativas insatisfeitas, o adolescente vê um outro mundo com chance de ganhar dinheiro. Traficante gosta de lasanha, gosta de pizza. Traficante gosta de uísque. Não bebe cerveja. Por que? Ele gosta de coisas que a classe média gosta. Como aquela mãe que conta no livro que tem um filho que trabalhava no tráfico. Ela diz ''até os filhos dele são metidos. São diferentes dos meus outros netos. Só comem biscoito recheado''. Mesmo entre os biscoitos há uma divisão. A sociedade brasileira é hierárquica. De repente, você tem um jovem com uma explosão de testosterona com aquela coisa de se sentir imortal, querendo inverter o sistema hierárquico em que ele é mandado. Você dá uma oportunidade para ele ganhar dinheiro, ele vai, ele entra para o tráfico. Mas os que vão são minoria. A maioria rala, sofre e se submete.
No livro, o senhor diz que o Comando Vermelho e o Terceiro Comando existem mais nos discursos da polícia e nas reportagens do jornal, do que na realidade da favela. O tráfico não é então tão organizado quanto se imagina?
Esta divisão existe na cadeia e existe principalmente como divisão simbólica, na construção da identidade dos meninos. Em escolas hoje no Rio o recreio tem que ser dividido. Os meninos que são de favela do Comando Vermelho e os que são de favela do Terceiro Comando não se misturam. Os meninos estão acostumados a esse universo dividido, maniqueísta. Do ponto de vista simbólico é assim. Agora do ponto de vista de estruturação, dos traficantes serem organizados efetivamente é uma piada. É para não se ver o que está acima deles. O que existe de fato é um conjunto de alianças que o chefe do tráfico de uma área faz com o chefe de uma outra área. São alianças localizadas, não existe um comando que determina as ações de todas as favelas filiadas.
O senhor destaca no livro a importância da religião dentro de Acari. Por que as igrejas evangélicas de um modo geral, e as pentecostais em particular, conseguiram se firmar com toda força em Acari e nas outras favelas cariocas?
Estas religiões são de salvação individual. O indivíduo dá o testemunho, ele vai se batizar, se converter, se transformar, renascer. As pessoas passam também a dispor de uma alavanca para entender o mundo em que vivem. Como analisar um mundo em que se corta a cabeça dos inimigos? Um mundo onde as pessoas são esquartejadas, colocadas dentro de um saco e jogadas para o porco comer? Como é que você vai explicar o significado do terror, do indizível, daquilo que você não consegue imaginar e que você vê ali na sua frente? As pessoas convivem com o mal absoluto. E aí entram essas religões. Elas fazem uma oposição entre o bem e o mal. Os moradores têm cotidianamente a exemplificação do mal. O mal é o crime, a droga, a arma. E aí a igreja acrescenta: o mal é a macumba, é o feitiço, são os espíritos, são os Exus. Está muito difícil praticar o candomblé nas favelas hoje em dia. De início, quando o tráfico se implantou, as religiões afro-brasileiras eram hegemônicas e tinham uma força muito grande. Então os chefes do tráfico também eram das religiões afro-brasileiras. Porque ela é a mais democrática que tem. Na festa do candomblé, a porta fica aberta. Ninguém precisa se converter, nem acreditar, nem pagar o dízimo. As igrejas pentecostais colocam as religiões afro-brasileiras na conta do mal. Dizem que o traficante que matou, que estuprou, que cortou a cabeça, estava possuído por Exu. Este mesmo traficante quando se converte, diz isso: ''Não fui eu. Eu era apenas um instrumento do demônio, do diabo''. Aí ele renasce. O morador da favela identifica logo o traficante, que mata, que rouba, que destrói. Ele olha para a droga, que é motivo de morte, de destruição, de desestruturação familiar - a droga acaba sendo chamada de diabo ralado.
E por que o tráfico não impede a entrada destas igrejas na favela?
Porque como esse pensamento já se tornou hegemônico, o próprio tráfico se vê como um mal. Ele não nega que ele seja o mal. Aí ele assume e anuncia que ele não é só o mal. Ele é o terror. Aí ele tem que ser mais maligno do que o outro para levar mais pânico, mais medo, e vencer o inimigo. É a violência absoluta.
A maioria da população de Acari frequenta as igrejas evangélicas?
Não fiz nenhum trabalho estatístico. Mas em Acari são cerca de 40 mil pessoas. Existem lá 37 templos religiosos, sendo que 31 são evangélicos. Dá uma média de 1 200 pessoas por templo. E destes centros evangélicos, 80% são pentecostais. A religião que domina as conversas em Acari é a pentecostal. Do ponto de vista individual, este mecanismo é muito poderoso para reconstituir um significado do mundo. A religião ajuda a reconstruir o mundo que está diante de você. E o mundo é um garoto de 14 anos matando outro garoto de 14 anos. É o filho de 13 anos batendo no próprio pai. É um chefe de 18 anos tendo não sei quantas meninas. É a droga rolando solta. É o marido que volta em casa bêbado e espanca a mulher. É o desemprego. É a escola e o hospital que não fucionam. Enfim, é o caos absoluto. Mas você não consegue viver no caos absoluto, do ponto de vista simbólico. Quando o mundo não faz mais sentido, você enlouquece. Quando você percebe que não tem saída, você entra para a religião. Ela te dá um sistema simbólico que é muito
apropriado para a situação que você está vivendo. O do candomblé é muito mais complexo de entender. Para o indivíduo, a fé é uma coisa belíssima. Individualmente faz bem. Mas para o coletivo não. O convertido se isola. Ele não pode beber, não pode ir a festas. Depois não podem nem jogar futebol com quem não é da religião, que eles chamam de ímpios. Porque se o ímpio faz uma falta mais dura é porque ele é um agente do mal que está te testando. Ele vai se isolando e passando a conviver só com quem é da igreja.
A favela tem o estereótipo de ser um lugar caótico e violento. É só preconceito?
O que é característico da favela não é a violência. É a sociabilidade, é a amizade. É este vínculo pessoal, o calor humano. Isto é marcante. A violência é uma visitante indesejada e que está presente em toda a sociedade brasileira. A favela tem uma ética comportamental que não existe no resto da cidade. Etiqueta na favela é importante. Mulher casada só pode ser chamada de ''dona''. Todo mundo fala bom dia, boa tarde, boa noite. As pessoas precisam desta relação para sobreviver. A vizinha precisa da outra para tomar conta do filho enquanto vai trabalhar. O outro precisa do vizinho para fazer um serviço de pedreiro. E assim por diante. Há outros estereótipos errados. A própria idéia de favela é uma mentira. O contexto de cada favela muda tanto que praticamente a única coisa que une as favelas é o preconceito que os moradores do asfalto têm em relação às favelas. Elas são completamente diferentes entre si. É claro que existem algumas coisas semelhantes: os moradores não tem título de propriedade, eles são todos pobres. Mas não é aquele negócio de que você viu uma favela e já conhece todas. Só é assim quando você lida com estereótipos. Cada uma tem uma dinâmica, uma riqueza. Aquilo que se acusa a favela, de ser violenta, suja, irracional, mas marcada por uma alegria excessiva, é um resumo do que se acha do negro. É a mesma visão. O negro é sujo, violento, é alegre, está sempre sorrindo, gosta de festa. O estereótipo é o mesmo.
O que estas comunidades, como Acari, precisam para se tornar lugares melhores para os seus moradores?
O grande problema da favela hoje está no asfalto. É a sociedade inteira achar que a favela é um problema. Ela não é um problema. Ela foi uma solução que a população pobre encontrou para sobreviver. A favela cheira mal porque o lixeiro não passa lá para recolher o lixo. Não é como no asfalto que a Comlurb passa três vezes por semana pela rua. Não há ajuda nenhuma de infraestrutura urbana, e aí se diz que as ruas são caóticas.
Então a chegada do favela-bairro é boa para estas comunidades?
O morador de favela geralmente quer que chegue o favela-bairro porque ele fica feliz com qualquer coisa que ele possa ganhar. Mas a gente tem que perceber o seguinte: 80% da urbanização das favelas foi feita pelos próprios moradores. Isso é fundamental. Se isso fosse contado economicamente, imagina quanto valeria? Acari era inabitável. Era um pântano. Foi devidamente aterrado e aplainado e se tornou área habitável. Os moradores colocaram um sistema de água. Colocaram um sistema de luz, muito antes da Light entrar. A favela tem esta imagem de coisa atrasada. Mas não é verdade. Ela é antenada. Outro dia, lá em Acari, vi um bar: o Internet Beer Show. Não tem computador, mas tem o nome. O cara sabe que internet está na moda. Tem aula de aeróbica na favela. Favelado é um cara progressista. Ele é ligadão nas novidades. Ele compra o tênis da última moda, é bem verdade que o dele é o falsificado, mas ele sabe o que a Zona Sul está usando. O favela-bairro é visto como um benefício, mas ele não resolve o problema da favela porque não existe um problema arquitetônico naquele espaço. O problema é a inserção na sociedade destas pessoas que vivem em favelas. O favela-bairro aproveita o que os moradores já fizeram, coloca uma rampinha, bota a placa. Mas e o problema do emprego, da capacitação da juventude? E o problema da escola, do hospital, do tráfico? O favela-bairro tem um outro problema a médio e longo prazo. A prefeitura urbaniza, melhora a aparência. A casa valoriza. Mas se o morador continua na mesma pindaíba, uma classe média empobrecida pode querer ir morar lá, pode querer comprar a casa. Se o morador da favela está numa situação difícil, porque ele continua sem chances de emprego, ele vende a casa e vai construir um barraco lá em outro lugar. Aí é uma remoção branca. E tem outro problema. Se legalizar tudo na favela, der o título de propriedade, o Estado vai querer cobrar imposto. Vai querer regularizar a situação do comércio, exigir alvará. Então todo este projeto favela-bairro, além dos dividendos políticos, também é uma forma de a médio prazo começar a cobrança de impostos. Se os moradores de favela jamais foram incorporados como cidadãos, eles vão ser incorporados como contribuintes.
Acari foi marcado também pelo projeto Fábrica da Esperança, do pastor evangélico Caio Fábio. O projeto ficou desacreditado depois que polícia encontrou cocaína escondida no prédio. A Fábrica da Esperança era boa para os moradores?
Eu não conheci a Fábrica. Só posso dizer que ela não tinha nenhum enraizamento comunitário. Ela atendia as pessoas de Acari, mas todo o seu staff era de fora. As psicólogas que trabalhavam lá vieram me perguntar como é que eu fazia para entrar na favela porque elas nunca tinham entrado.
O Sr.passou três anos frequentando Acari e hoje mantém amigos por lá. Esta convivência com a favela mudou a sua vida de alguma forma?
Muito. Eu era ateu convicto. Achava religião uma coisa estúpida, alienada, fruto da ignorância. Mas vi que a religião é apenas uma forma de pensar o mundo. Rezar o pai nosso não significa que você acredite exatamente naquelas palavras. O mais importante na religião é a prática. É a demonstração de que você é humilde suficiente para pedir ajuda, para não se sentir todo-poderoso. Eu agora abraço todos os deuses. Os deuses gregos, os deuses do candomblé, o deus dos evangélicos, que é o deus da Dona Marlene, a matriarca de uma família que eu conheci lá e que acabei me tornando amigo. Aprendi mais coisas na favela. Aprendi que a sinceridade lá é fundamental. Ao contrário do mundo acadêmico que é hipócrita, cínico, político, na favela o que conta é manter a palavra. O principal patrimônio de quem vive na favela é a honestidade, o caráter.