Vou discordar de alguns pontos, César. E tenho que discordar, pois são pontos-chave para o entendimento do atual estágio do conflito na Síria.César escreveu:Olá Bolovo,Bolovo escreveu: César,
A Guerra Civil na Síria seguiu o mesmo roteiro da queda de Gaddafi: influenciado pela "Primavera Árabe", surgiram revoltas populares nas grandes cidades, depois uma repressão violenta e eventual escalada para um conflito civil (até certo ponto incentivada por agentes externos). Depois disso, bastaria uma intervenção ocidental e Assad seria deposto, assim como foi com o Gaddafi com na Líbia, com o Saddam no Iraque. Finalmente um pouco democracia para os sírios e toda aquela história romantizada que conhecemos. Mas sabemos o que aconteceu com a Líbia, que era um país governado por uma ditadura socialista, porém o país com o mais alto IDH da África e, depois de sua "libertação", se tornou um país destruído, em eterna guerra civil (que vai de 2011 até hoje), divido ao meio por um governo em Tripoli e outro em Benghazi, sem contar que hoje é uma terra de terroristas wahhabistas (que não existiam por lá antes) e exportadora de refugiados para a Europa. Ou seja, boa parte do mundo percebeu que a intervenção ocidental na Líbia, que permitiu a queda de Gaddafi, trouxe consequências bastante negativas para o mundo em geral. A Líbia de antes era melhor do que a atual. Tanto que o termo "Primavera Árabe" mudou para "Inverno Árabe". E temeram que o mesmo ocorresse com a Síria. Em 2011, as vésperas de uma intervenção ocidental na Síria, começaram a surgir tais imagens pela internet:
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O governo americano sofreu muita resistência, baixa aceitação popular num ataque as tropas de Assad. Diferente do que aconteceu com o Iraque e a Líbia, perderam o "timming" para realizar a sua "Syria Freedom". Mas isso foi em 2011! 2011!!! O Estado Islâmico entrou na Síria apenas em 2013, devido o vácuo de poder deixado pela confusão da guerra civil (estranhamente as posses 'rebeldes' caíram facilmente para o ISIS). Porém, isso não mudou o objetivo geral que é derrubar Assad. Até hoje isso é claro e cristalino, é só ver as declarações dos presidenciáveis, dos senadores, dos altos membros do poder americano e perceberá isso. A própria Hillary fala em no-fly zone até hoje. Assad continua sendo um problema, igual ao ISIS, só que Assad está desde 2011 e o ISIS surgiu em 2013. Diferente da retorica européia, que já aceita um Assad no poder, para conter o ISIS, afinal sofrem efeitos diretos com a guerra: terrorismo e refugiados.
Com a intervenção russa, derrubar Assad se tornou irreal, porém enfraquece-lo ainda é possível. Um Assad forte não é interessante aos americanos. Para isso, é só picotar a Síria em diversos países menores: uma país curdo, um país sunita etc. Além disso, os principais aliados ocidentais no Oriente Médio, em especial Arabia Saudita e Qatar, são um dos principais financiadores do terrorismo wahhabi, entre eles grupos da Frente Islâmica, Al Nusra e o próprio ISIS. E os americanos fazem vista grossa para tudo isso. O maior inimigo do terrorismo sunita wahhabi é, de longe, a população xiita, pois são muçulmanos 'errados', são kafirs. Isso explica, em parte, o empenho do Irã (que é o grande representante xiita no mundo) no conflito no Iraque e na Síria. E também a dedicação do Hezbollah, pois a queda de Assad para um grupo sunita representaria o fim do Líbano. Esse é o grande dilema americano. Combater o ISIS fortalece a posição de Assad, Hezbollah, Rússia e Irã no Oriente Médio. Se os americanos quisessem realmente derrotar o ISIS e os grupos islâmicos na Síria, fariam o mesmo que fazem no Iraque, no Afeganistão, nas Filipinas etc: apoiaria, armaria e daria carta branca para o governo local. O problema é que, no caso da Síria, o governo local é Assad. Se os americanos não querem mais, alias, não podem mais derrubar Assad, por outro lado fazem de tudo para não ajuda-lo.
Muito obrigado pela resposta. Foi muito boa.
Queria, não necessariamente discordar, mas tecer alguns comentários. É certo que uma intervenção na Síria teve alguma resistência interna, mas lá por 2011 ainda não havia como saber que a Líbia se tornaria o fracasso que efetivamente se tornou. Não acredito que a mera oposição interna justificasse essa não intervenção, até por que, à época, o Assad estava descendo o chumbo em uma oposição largamente pacífica e secular nos primeiros meses, p que gerou pedidos de intervenção bastante intensos sim.
Porém, na Síria, os grupos armados de oposição não estavam unificados. Não controlavam nenhum território a partir do qual se organizarem (ao contrário da Líbia), sem liderança. Finalmente, para a Síria os EUA não tinham nenhuma autorização da ONU para essa missão, uma vez que Moscou viu que a operação na Líbia apenas foi um pretexto para mudança de regime. Por fim, já nos primeiros meses estava claro que elementos jihadistas estavam começando a operar com a oposição (em grande parte, culpa do próprio Assad, que libertou das prisões centenas e centenas de jihadistas, e gerou a própria profecia dele que a a oposição era um bando de terroristas). Em suma, as condições eram diferentes, e o medo de Washington de armas caírem nas mãos de Jihadistas era muitíssimo mais forte que na Líbia, onde estes grupos estavam, inicialmente, largamente ausentes.
Mas, bem, 2011 passou, e lá por 2013 (acho) ocorreram os ataques químicos. A tal linha vermelha foi cruzada, mas nessa altura não havia ninguém para assumir o país caso Assad caísse. A oposição estava ainda mais islamizada e radicalizada. À época, não haviam russos para impedir nada. Assad não caiu meramente porque Washington sabia que não havia ninguém pra colocar no lugar, e permanece assim até hoje. A grande contradição dessa política é que, para Washington, Assad deveria cair, mas os tais moderados que assumiriam seu lugar não existem. Desta feita, fica-se como está. Nesse ponto que discordo de você que diz que para os EUA Assad deve cair de qualquer forma. Isso já teria acontecido em 2013 ou 2014 se quisessem, com oposição interna ou não.
Os russos, por outro lado, ao menos têm claros quem são seus aliados e quem são seus inimigos. Os americanos são inimigos tanto de Assad quanto daqueles que ele combate, não tem com quem jogar. Só sobraram os curdos, mas estes tem agendas próprias. Logo isso gera uma política externa ambígua, pois não tem meta atingível. Outra curiosidade é essa ajuda aos rebeldes em Aleppo e Idlib. Não sei o quanto dessa ajuda vem da Arábia Saudita e Turquia, ou se existe ajuda direta vinda dos Estados Unidos.
Por fim, para os americanos, certamente é muito pior um cenário de queda de Assad e tomada de poder pelo ISIS que a queda do ISIS e permanência de Assad. Apesar de toda a sua retórica, Assad não é um inimigo sério dos EUA. Atrapalha mais indiretamente, ao permitir bases russas na costa, e também apenas serve de apoio aos inimigos reais de Israel, que são o Hezbollah e eventualmente o Irã. O ISIS, ao contrário, é um inimigo direto, que já realizou atentados medonhos nos EUA e na Europa, e na média com radicalismo bastante superior a todos os demais grupos islamitas.
Uma Síria tomada, mesmo que em parte, pelo ISIS, nada mais é que um novo Afeganistão, a dar guarida a grupos que queiram realizar atentados no Ocidente. Na verdade é até pior que o Afeganistão, pois os talebãs não estavam envolvidos na preparação destes atentados. Já o ISIS, direciona grande parte dos recursos de seu 'estado' para tais ações. Os EUA podem viver com o Assad, ainda que não queiram, mas não com o ISIS.
Quanto a picotar o país, novamente, eles podem até defender isso, mas o único candidato que existe para isso são os curdos, e a Turquia não permitiria tal estado. Talvez os rebeldes do sul da Síria, mais moderados, pudessem tentar algo nesse sentido. Mas até o momento nenhum destes grupos do Sul declarou interesse em declarar independência. Já os do norte do país, são todos islamizados, duvido muito que os EUA reconheceriam como estado um norte da Síria comandado pela Al Nusra. Todos esses grupos do norte declararam querer fundar um Califado, e que eu saiba os americanos nunca apoiaram isso em nenhuma medida.
Bem, de resto concordo com você. Muito boa sua análise. Se falei bobagem, pode discordar.
Abraços!
César
Como já disse, as revoltas na Síria vieram do embalo da primavera árabe que se espalhou por todo norte da África e Oriente Médio. Quase todas começaram pacificas e logo em seguida se tornaram violentas, inclusive em países bastante ocidentalizados como o Egito. Não ao ponto se tornar uma guerra civil aberta, mas se tornaram violentas e a primavera se tornou um inverno. Assad reprimiu violentamente esses protestos? Não tenho dúvida, assim como aconteceu em todos os países árabes, seja na Líbia, no Egito, no Bahrain, no Qatar etc. Mas, curiosamente, pedidos de intervenção só surgem com os países "do mal", como Líbia e Síria.
O desejo de intervenção ocidental em 2011 veio como consequência do "sucesso" que foi a queda de Gaddafi na Líbia. Como Assad não é burro, viu que o dele estava na reta (afinal quem era ele perto do Gaddafi?), fez algumas concessões, como libertar prisioneiros políticos, ainda em 2011. Sim, Assad soltou vários prisioneiros, mas isso tinha o objetivo de acalmar as revoltas e não de inflama-la. Ela fez parte de uma anistia geral que foi muito bem recebida pelos potências ocidentais e oposicionistas, como mostra a matéria do Washington Post (https://www.washingtonpost.com/world/sy ... story.html):
On Saturday, at least 260 prisoners were released from the Sednaya military prison in Damascus, Rihawi said, adding that 14 were members of Syria’s Kurdish minority and the rest were Islamists. In Daraa and Sanamein, residents buried their dead.
“It’s a good start,” Rihawi (Abd el-Karim Rihawi, the head of the Syrian Human Rights League) said.
Um dos soltos foi Haitham al-Maleh, manifestante dos direitos humanos, um moderado, fato que contesta o argumento que "Assad soltou prisioneiros para inflamar a oposição". Por outro lado, um dos prisioneiros de Sednaya era Zahran Alloush, que após solto era considerado como um dos "moderados", entrou no Free Syrian Army, porém logo fundou a Jaysh al-Islam, um dos principais componentes da Frente Islâmica, movimento salafista que tem como objetivo uma Síria islâmica, como mostra matéria do The Independent (http://www.independent.co.uk/news/world ... 62618.html). Morreu em 2015, mas o legado ficou. Quando Assad disse que "a oposição é um bando de terroristas", não é um desejo, uma profecia, mas sim uma constatação. Ele foi obrigado a soltar esses prisioneiros, houve pressão internacional para isso, mas não esperava que eles se tornassem tão extremistas. Eles ficaram radicais dentro das prisões (seja por tortura ou o que for).
Oras, muito conveniente eu dizer isso, não? Pois livra o Assad praticamente de qualquer culpa. Mas o mesmo ocorreu com os próprios americanos. O atual líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi, foi preso pelos americanos em 2004, ficou em custódia em Camp Bucca no Iraque, mas foi solto por ser um "prisioneiro comum" como mostra matéria do New York Times (http://www.nytimes.com/2014/08/11/world ... .html?_r=0). Será que os americanos queriam inflamar a revolta iraquiana sunita libertando al-Baghdadi? Será que era o desejo dos americanos fundar o Estado Islâmico? Claro que não. O mesmo pode se dizer de Assad quando soltou os prisioneiros em 2011. Ninguém imaginava as consequências disso.
O desejo de intervenção voltou em 2013 após os ataques químicos de Ghouta, porém, até hoje ninguém diz com certeza quem foram os responsáveis por esses ataques. A ONU pelo menos não acusa ninguém. Há as versões, mas todas são controversas, não dá para dizer com certeza se foi um lado ou se foi o outro. Por esse motivo, e pelo histórico do que ser tornou a Líbia, um velho oeste ao sul da Europa, a intervenção não aconteceu. Porém, isso me remete a o que está acontecendo hoje em Aleppo. Estamos talvez no desfecho final de uma das batalhas mais importantes da guerra, diria que é a "Batalha de Stalingrado" desse guerra. O regime sírio finalmente conseguiu fechar as duas entradas de Aleppo oriental e percebeu que ultimamente estamos sendo bombardeados com fotos de crianças sírias? Primeiro foi aquele garotinho (http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37116942) e agora são crianças usando oxigênio (https://globoplay.globo.com/v/5287794/). Após cinco anos de guerra, bombardeiros diários, os sírios e russos começaram a atingir crianças justamente agora? Agora que estão finalmente ganhando em Aleppo, o regime sírio realiza outro ataque químico (http://noticias.uol.com.br/ultimas-noti ... aleppo.htm)? Me desculpe, mas isso pra mim só tem um motivo: preparar a opinião pública, principalmente a ocidental, de como Assad é terrível, autoritário. Não irão conseguir uma intervenção, mas no máximo um cessar-fogo (http://oglobo.globo.com/mundo/obama-put ... a-20052655), o que levaria a Aleppo não cair. Pois se Aleppo cai, Assad controlaria todas as grandes cidades da Síria, exceto Raqqa, que é a cidade capital do Estado Islâmico. Não existiria mais "oposição", seria Assad e Estado Islâmico e o mundo ocidental seria obrigado a escolher Assad.
Quando digo que o objetivo americano não é [apenas] derrotar o Estado Islâmico, mas sim enfraquecer Assad, eu lhe pergunto: porque os americanos não apoiam as ofensivas sírias contra o Estado Islâmico ou contra a al Nusra? Porque apoiam somente aqueles que, eventualmente, se tornarão uma pedra no sapato de Assad, como o FSA e os curdos? Se os americanos apoiam os curdos, porque estão deixando os mesmos apanharem agora dos seus aliados turcos e FSA no norte de Síria? Porque continuam fornecendo armas para grupos que eventualmente caem para o lado extremista? Como mísseis TOW pararam nas mãos da al Nusra? Como uma arma como a M240L, que existe apenas no Exército Americano, para nas mãos da al Nusra (http://armamentresearch.com/us-m240l-gp ... -in-syria/)? A questão é essa, os americanos não ajudam de maneira nenhuma Assad, que é, sem dúvidas, o único com capacidade de enfrentar o Estado Islâmico. O que fazem é, de fato, atrapalhar muito, mas muito o Assad, que gasta uma recursos escassos para derrotar a tal oposição (que anda de mão dada com a al Nusa) em diversas fronts de batalha, o que não lhe dá muito tempo para enfrentar o Estado Islâmico (que está em maior parte no leste do país, um deserto, bem menos populoso).
A estratégia americana é, ainda, enfraquecer Assad, implantar um regime "aliado", seja lá qual (curdos num parte, FSA em outra, turcomanos em outra etc), e enfrentar em posterior o Estado Islâmico. Quando falo em picotar a Síria, não precisa ser da maneira clássica, não é necessário pegar um cartografo e desenhar novas fronteiras no Oriente Médio, mas é fato que a Síria já é um país divido. Os curdos ainda não tem um país de jure, mas um de facto. Assad não pisa nunca mais no que é hoje a atual Rojava, o curdistão sírio, assim como Saddam não pisou mais no curdistão iraquiano após a Guerra do Golfo. E Assad já aceita isso, não tenho dúvidas e, como disse, a chave dessa guerra está em Aleppo. Caindo Aleppo, acaba a oposição, pois não irão controlar mais nenhuma grande cidade. De um lado irá existir Assad e curdos e de outro o Estado Islâmico. E todos serão obrigados a escolher Assad. Por isso o mesmo investe tanto contra os tais rebeldes, por isso os americanos fazem vista grossa a atual intervenção turca (que pra mim é uma anexação) no norte de Síria, que está expulsando os curdos do oeste do Rio Eufrates, com a alegação de combater o Estado Islâmico. Todos estão correndo contra o tempo.