O que acontece com os médicos brasileiros?
Por Emir Sader.
Talvez nós todos nos tivéssemos deixado levar por uma imagem imaculada do médico. Afinal, essa pessoa que tem o poder de nos curar das doenças, de minimizar nossas dores, de estender vidas, deve ter um dom que está acima das contradições terrenas.
A própria imagem da figura com avental branco, que nos receita – de forma sempre ilegível, talvez para confirmar que são de outro planeta, de outra índole – remédios que só nos fazem bem, pode nos ter induzido ao erro. Quem se dedica – mesmo se muito bem remunerado – a cuidar de quem está doente, de quem sofre, só pode ter valores humanistas, ser um ser solidário. Aprendemos que a profissão de medico é sacrificada, que ele tem que estar disponível, a qualquer hora, a deixar tudo de lado, mesmo um almoço dominical com a família, para correr atender casos de emergência, ao simples toque de um telefone.
Uma profissão como essa só poderá ser exercida por seres generosos, solidários, humanistas, dispostos a todo tipo de sacrifício. Essa a imagem a que fomos acostumados.
De repente, quando o Brasil faz a lista dos lugares em que são necessários médicos e consulta que médicos brasileiros estão dispostos a ir onde mais são necessários, onde mais há doenças e carência de atendimento, poucos, muito poucos, se dispõem a aceitar. As razoes alegadas são muitas: falta de condições ótimas de atendimento nesses locais, salários insuficientes, entre outras.
Mas onde estão esses médicos, formados, em sua grande maioria, em universidades públicas, gratuitas, que oferecem os melhores cursos de medicina do Brasil? O mapa da localização desses médicos, formados com recursos públicos, é totalmente contrastante com onde estão as necessidades de atendimento da população. Eles estão situados onde há uma clientela de maior poder aquisitivo, que pode pagar caro, muito caro às vezes, pelas consultas, pelos remédios e pelos tratamentos recomendados.
Isto é, o Estado brasileiro forma médicos, com recursos públicos, arrecadados pelos impostos da população cuja maioria não consegue ver seus filhos chegar às universidades, para que eles não devolvam à sociedade, através de serviços públicos, pelo menos parte do que se gastou com sua formação. Esta é usada para que se acumule somas de recursos apropriados privadamente, sem correspondência, nem com o que a sociedade gastou com sua formação, nem com as necessidades da maioria da população.
Então o governo se viu obrigado a trazer médicos de fora do Brasil – a maioria, de Cuba – pelo programa Mais Médicos para assumirem os postos que os médicos brasileiros rejeitaram. Resultado da recusa da grande maioria dos médicos brasileiros de atender as necessidades da grande maioria dos brasileiros.
A situação incômoda para essa maioria de médicos brasileiros os levou a reações que desnudaram a verdadeira imagem da maioria dos médicos brasileiros. Numa atitude elitista, corporativa, tentaram, primeiro impedir que os médicos cubanos viessem. Depois, tentaram constrangê-los, para que não assumissem as funções que vieram.
Saíram às ruas para, vergonhosamente, reivindicar seu monopólio de exercer a profissão, a cuja dignidade demonstraram não estarem à altura. Houve afirmações indecentes dos que defenderam essas posições – como a de uma jornalista, que disse que: “As médicas cubanas se parecem a empregadas domesticas”, numa expressão de discriminação, de racismo e de elitismo indigna de um ser humano. A não ser que ele estivesse querendo dizer que uma pessoa que no Brasil seria empregada domestica, em Cuba consegue ser médica! Feliz o país em que os médicos têm a cara do povo e não a cara de elites desvinculadas do povo!
Esses médicos acharam que, como têm autoridade profissional sobre seus pacientes, iriam ter força para convencê-los a não votar na Dilma – não se sabe com que argumentos que pudessem ser aceitos por um brasileiro comum. Fracassaram. Não conseguiram esse efeito político e, derrotados, nunca mais tiveram coragem de fazer manifestações nas ruas. Enquanto que o apoio ao programa Mais Médicos foi rapidamente se aproximando a 90% da população, conforme o trabalho dos médicos em municípios que nunca tinham tido atendimento medico local, foi mostrando seus resultados. Os brasileiros foram se encantando cada vez mais com os médicos cubanos, tanto por sua experiência profissional para, mesmo em condições de precariedade de atendimento, cumprir suas funções, como também pelo espirito de solidariedade e de sacrifício com que atendem a todos.
As cenas escandalosas reveladas de Faculdades de Medicina da USP – que podem perfeitamente ocorrer em outras similares – vieram complementar a nova imagem que o Brasil descobriu como a verdadeira personalidade da grande maioria dos médicos. Estupros, violências de toda ordem contra mulheres, atitudes machistas vergonhosas das próprias autoridades das Faculdades, vieram revelar qual o lugar onde estão se formando a maioria dos médicos brasileiros, esses mesmos que tiveram essa atitude elitista contra os médicos cubanos.
O Brasil precisa mudar o tipo de ser humano que se dedica à medicina. Mesmo com dificuldades, a política de cotas começa a formar novas gerações de médicos, eles mesmos originários dos setores populares da sociedade, com compromisso com as necessidades dessa população. Que terão que fazer plantões nos SUS, que terão que se deslocar para onde a população brasileira precisa.
Ai estaremos formando médicos que correspondam àquela imagem que tínhamos dos médicos – de dedicação, sacrifício, solidariedade, humanismo – de atuar para diminuir a dor e as doenças dos outros.
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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.