Com a palavra, Pablo Capilé
Principal nome do Fora do Eixo, produtor cultural fala sobre a as acusações que a rede de coletivos vem sofrendo
Fonte:
http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/ ... 9-1.696503
SILVANA MASCAGNA
Desde que um dos seus fundadores participou do “Roda Viva”, na semana passada, o Fora do Eixo está na berlinda. Inúmeras acusações sobre o funcionamento da rede de circulação de coletivos, criada há dez anos e que tem no produtor cultural Pablo Capilé o seu principal nome, surgiram nas redes sociais. O não-pagamento de cachês para artistas é talvez a principal delas. Mas há outras, que surgem todos os dias de músicos, cineastas, produtores culturais, de várias partes do país, que trabalharam com o Fora do Eixo.
Para falar sobre a repercussão negativa provocada por sua aparição no “Roda Viva” – juntamente com Bruno Torturra, principal nome do Mídia Ninja – Pablo Capilé conversou, por telefone, com o Magazine, na última sexta-feira. Naquele dia, ele disse que o Fora do Eixo estava preparando “uma avaliação geral, uma avaliação crítica” sobre sua atuação, o que aconteceu na última segunda-feira via Facebook.
Para a reportagem, Capilé falou sobre vários assuntos, se alterou algumas vezes e até pediu desculpas por estar na defensiva, mas não conseguiu apontar possíveis falhas da rede de coletivos. Leia a entrevista na íntegra.
O que você tem a dizer sobre as denúncias que surgiram depois da sua aparição no “Roda Viva”?
Tem muita gente falando, debatendo, tem gente pró, contra. É um projeto radical, ousado, não tem muitos precedentes. Não dá pra fazer uma análise em cima de sua régua de perfeição, mas do que ele é de fato. Não existe uma rede como o Fora do Eixo. Caixas coletivas, casas coletivas, tudo isso é uma novidade. É preciso fazer uma avaliação do que foi feito, o que precisa melhorar, onde a gente errou, onde a gente acertou.
Qual é o principal defeito do Fora do Eixo?
Tudo tem muito defeito e muita virtude. Não conseguiria dizer uma falha específica. Posso falar várias. Precisamos avançar na organização da circulação dos artistas, que precisam estar cada vez melhores. Na verdade, todas as coisas podem melhorar. Precisamos estar abertos para continuar melhorando. O Fora do Eixo é um grande laboratório, abre muitas portas e é debatido por muita gente. Poucos projetos são tão debatidos quanto o Fora do Eixo. É uma construção colaborativa, e por isso, está sempre aberta pra continuar avançando. Quanto aos festivais, por exemplo, precisamos melhorar suas estruturas, arrumar recursos para investir na melhoria do atendimento tanto aos artistas, quanto às pessoas que estão envolvidas nele. Precisamos fortalecer suas relações em rede, os debates que acontecem em torno deles.
O Fora do Eixo na música, mais do que organizar a circulação, distribuição e produção de conteúdo, mostrou que era possível dar visibilidade para uma música fora do eixo do Rio, São Paulo, BH, Porto Alegre e Pernambuco. Bandas de Cuiabá, do Acre, do Amapá apareceram. Ele foi fundamental para fortalecer a articulação de circulação em rede, fortalecer os debates de políticas públicas para a música. É um agente importante da Rede Música Brasil, é ativo em muitos debates sobre o novo artista. Criminalizar o Fora do Eixo não é problema para o Fora do Eixo, mas pra música independente. Ao mesmo tempo, enquanto o Fora do Eixo avançou pra fazer outras coisas, diminuíram os debates sobre música, as pessoas têm se encontrado menos. Associações que surgiram em contraposição ao Fora do Eixo não têm conseguido funcionar, não têm conseguido dar conta de se conectar com os festivais.
E sobre o não-pagamento dos cachês aos artistas?
Não adianta falar que o Fora do Eixo não paga cachê. O problema do cachê no Brasil é de distribuição de renda. Você tem festival que acontece no Amapá, que só as passagens aéreas de Belo Horizonte para o Amapá custam de R$ 10 mil a R$ 12 mil. Você prefere que o cara do Amapá não faça? Ele pode não fazer ou pode dizer pro artista que paga só as passagens e o artista pode ter uma experiência de tocar para o público do Amapá. So que o cara do Amapá não mete uma faca e diz pro artista: “Você tem que vir”. Tem gente que acredita que é bacana ir pra lá. Se a gente não analisar o mapa do Brasil, não tem como comparar BH com Boa Vista. As passagens são mais baratas (para BH), remunerar é menos difícil.
Mas o Fora do Eixo não surgiu para ser diferente do que acontece normalmente? O que você está dizendo é que o Fora do Eixo segue a ordem natural do mercado, então.
Eu falei que é mais difícil pagar cachê nesses lugares, onde tem menos investimento na cultura, tem público menor, poder aquisitivo menor, as passagens são mais caras. A gente defende a remuneração dos artistas, a maioria é remunerada. Ele recebe quando vai pra esses lugares. Mas às vezes, o cara que está fazendo o festival não consegue os recursos, então ele diz pro artista: “Você topa vir só pelas passagens?” A gente paga a maioria dos artistas. Tem um mito que não paga, isso é mentira.
Mas quando o Bruno Torturra fala no “Roda Viva” que não recebe nada para trabalhar no Mídia Ninja, fica a impressão que vocês defendem que as pessoas trabalhem de graça.
O Bruno fez uma opção de vida. Quanto tempo tem o Mídia Ninja? Qual iniciativa você consegue remunerar os profissionais com tão pouco tempo? Ele está investindo numa plataforma que ele acredita que vai sobreviver dela. Dentro desse processo de construção, a médio prazo, as pessoas vão ser remuneradas por isso. Ninguém vai querer viver num caixa coletivo, a gente não defende que o mundo seja um caixa coletivo. Essa é uma alternativa e ela é viável. Todo mundo que vive numa casa coletiva (do Fora do Eixo), não vive com nada. Se você for numa casa coletiva do Fora do Eixo, vai ver como funciona. As pessoas têm o que elas precisam. Eu sou um deles. Eu vivo numa casa coletiva. Não vivo num apartamento com salário de R$ 10 mil e pago minhas contas, enquanto as pessoas estão sendo escravizadas na Casa Fora do Eixo. Eu estou junto, eu sou uma dessas pessoas.
Como você vive? Como funciona o Cubo Card? Você falou no “Roda Viva” que o Fora do Eixo movimenta de R$ 3 milhões a R$ 5 milhões, não foi isso?
É uma conta também que cobram de nós e não cobram de mais ninguém, essa é uma coisa que é impressionante. Nós temos que abrir conta pública, nós temos que falar de onde vem o recurso. Ninguém é cobrado como a gente, a gente é cobrado como se fosse o Estado, a gente não é o Estado.
Este é o preço que vocês pagam quando estão propondo o novo. O velho a gente já sabe como é.
Isso não é argumento.
O que eu quero dizer é que vocês deveriam mostrar as contas a princípio.
Mas a gente mostra. Eu não conheço um projeto mais transparente que o Fora do Eixo.
Mas há várias acusações contra vocês.
As pessoas estão acusando porque a gente mora em casas coletivas, porque a gente criou uma rede de festivais no Brasil inteiro, porque somos uma nova forma de ativismo, porque a gente lançou o Mídia Ninja, que é uma nova forma de comunicação. A gente abre muito a porta e muita gente dá pitaco. Não quero dizer que a gente está certo.
Então, explica, como funciona a circulação do dinheiro e o que é o Cubo Card?
Tem uma série de pessoas envolvidas na rede. Elas moram dentro das casas do Fora do Eixo. O que seria a remuneração das pessoas é o card. A gente está investindo o tempo todo, juntos, naquilo, investindo nossa força de trabalho. Isso é uma parte significativa do nosso financiamento. A gente acredita nisso, a gente está junto nisso, vive disso 24 horas. É parecido com uma pessoa que vive no campo, planta aquilo que come etc.
Como isso se transforma em roupa, comida, pasta de dente...
A junção dessas pessoas gera uma série de serviços. A gente tem designer, transmissão ao vivo, palestras, trabalho de mídia, serviços que em alguns casos são remunerados. A gente pode fazer esses serviços, por exemplo, para uma revista nova, um coletivo parceiro que não está integrado na rede... Política, técnica e financeiramente, a gente avalia se quer pegar aquele serviço ou não. Se eu der uma palestra e tiver um cachê de R$ 8.000, esse dinheiro vai para o caixa coletivo. O cubo card é uma moeda complementar, que são esses serviços. O design tem valor x, a transmissão ao vivo tem valor y, organizar um festival tem outro valor. Quando são parceiros, a gente não cobra em espécie, faz o card circular. Se tem um coletivo de Manaus que precisa de design e um coletivo de Santa Maria que precisa de uma produção de festival, eles trocam serviços em card. Outro exemplo, a Rede Ação Grito precisa de um serviço de comunicação, como a gente é parceiro, a gente investe cards nele. Depois, esses cards são sistematizados e, quando a gente precisar, eles investem em nós.
Quem criou esse sistema?
Em cima das dificuldades, a gente teve que criar alternativas. Não tinha dinheiro e a gente precisava sistematizar as coisas que a gente estava fazendo, aí surgiu a ideia de criar uma moeda lá em Cuiabá, que foi o cubo card.
Você vive na Casa Fora do Eixo de São Paulo?
Eu vivo mambembe, mas passo mais tempo na de São Paulo.
Quanto você cobra para fazer palestra?
Depende, na maioria das vezes, faço de graça. Faço de graça para parceiro: uma cidade pequena, uma universidade, por exemplo. Em grande eventos, aí é cobrado, mas varia, depende de quanto de recurso que esse evento tem, pode ser de R$ 500 a R$ 10 mil.
Quando você fundou o Fora do Eixo, tinha ideia de que ele ia se transformar nessa coisa grandiosa?
Não, assim como não tenho ideia de como daqui três anos vai estar. Sabia que tinha muito potencial.
Bruno disse que está deprimido com toda essa repercussão. Você também está deprimido?
Não, tem uma parte do debate que o nível é muito baixo. O cara falar do meu beiço, falar do trabalho escravo, de roubo. Isso não é debate, é inquisição.
E quando é que o debate é importante para vocês?
Na hora que fala de financiamento público pra cultura, de práticas colaborativas, nova forma de fazer comunicação, novas formas de circulação de artistas, remuneração de forma séria. Tudo isso é levantada de bola pra dar mais clareza pra o que de fato acontece.
E a parte da remuneração. Essa parte interessa ao debate?
Se fosse debatido da forma que é, como exceção, o debate ficava mais rico. Mas tentando colocar isso como regra, diminui o nível do debate. Não é uma regra que a gente não remunera as pessoas. Exceções podem acontecer com a escala que a gente trabalha.
Qual é essa escala?
De milhares de artistas. Só de Grito rock são 300, e mais 120 festivais da Rede Brasil de Festivais. Não consigo dimensionar, mas certamente 30 mil artistas já circularam pelo Brasil graças ao Fora do Eixo.
E desses, você sabe quantos não foram pagos?
Não tenho como te precisar quantos não foram pagos. É distribuído, o Fora do Eixo não tem um sistema onde todo mundo joga as coisas para um lugar único. O cara do Amapá está fazendo a parada dele, o do Acre, o do Tocantins. O que nós tentamos fazer é sistematizar essas informações, pra que elas fiquem claras pra todo mundo. Não dá pra ter pra você ter informação de quantas pessoas receberam e quantos não receberam. O que sei é que a maioria absoluta sai satisfeita com as condições que foram oferecidas.
Malu Aires, responsável pela organização do BH Indie Music, disse para o UOL que, depois de se recusar a organizar seu festival junto com o Fora do Eixo, vocês organizaram o Transborda para concorrer com o evento dela, com datas e atrações semelhantes. Por conta disso, ela diz que não consegue mais fazer O BH Indie.
Eu não consigo acreditar que a existência de mais um festival em BH atrapalhe a cena de BH. Não sei como o surgimento do Transborda pode ter acabado com o BH Indie. Se esse festival envolvesse um milhão de pessoas, todo fim de semana e tivesse todos os recursos públicos e privados, eu até acho que a gente pudesse debater, mas um festival que acontece uma vez no ano, durante três dias, inviabilizar o festival dela, se essa é a critica, isso diz muito mais de um problema dela do que do Transborda.
Mas disputar com o Transborda, promovido pelo Fora do Eixo, significa disputar com o tubarão, tamanha a força de vocês.
Tubarão não, não é uma boa analogia.
As pessoas dizem, por exemplo, que vocês são os reis dos editais.
Como com todo mundo falando, com gente reclamando, como não levantaram material sério a respeito disso, através da lei de transparência, tribunal de contas, fiscalização de prestação de conta pra Cultura? A gente não é rei de edital.
Mas vocês aprovam projetos com mais facilidade.
A gente não tem aprovação assim tão grande a ponto de comprometer os processos de outras pessoas. Essa crítica não cabe. Que a gente sabe escrever projeto é óbvio que a gente sabe. Mas muito longe de monopolizar a verba pública do Brasil. Sabe qual é o barato disso ai? O caixa coletivo faz as pessoas acreditarem que tem muito mais grana do que tem, na verdade. Como a gente consegue transformar um em dez, as pessoas acham que são milhões de reais que estão sendo investidos, mas não são. São centenas de pessoas vivendo disso o tempo inteiro, é diferente das pessoas que trabalham das 8h às 18h. Cumpre uma meta e vai embora. Outra coisa é quem está vivendo disso.
E o montante de R$ 3 milhões a R$ 5 milhões que você falou no “Roda Viva” que o Fora do Eixo movimenta?
É um numero estimado, em cima de um estudo que nós estamos tentando fazer, com esses coletivos distribuídos no Brasil inteiro. O coletivo Palafita do Amapá faz o festival deles, o Quebra Mar. Vamos supor que esse festival movimentou R$ 150 mil. Então a gente vai somando. Vou te dar um exemplo melhor, o Grito Rock acontece em 300 cidades. Aí a gente chuta por baixo que cada cidade custou 10 mil, em reais e em card. Só o Grito Rock daria R$ 3 milhões, aí fazemos as contas do que foi em card e do que foi em reais.Vamos supor que fosse 1,7 milhão em reais e 1,3 milhão em card. Só que isso não está numa conta única, mas na soma de investimento de cada um. Não é um caixa único que gerencia R$ 5 milhões. Não existe um Fora do Eixo. O Fora do Eixo é a soma desses coletivos. Toda grana pública é investida toda no festival, não é repassado nada pra ninguém.
E sobre as acusações da cineasta Beatriz Seigner, que diz que vocês não pagaram cachê?
Ela não coloca o valor. Todo dinheiro que ela fala do calote não chega a mil reais. Se teve equívoco, não estou falando que não teve, não era de R$ 20 mil. Se brincar, torna até mais agravante a gente ter demorado pra pagar.
E sobre o músico Daniel Peixoto, que diz que vocês erraram ao registrarem uma música.
Ele não tinha filiação em nenhuma entidade arrecadadora. Pra você estar cadastrado no Ecad, você precisa estar numa entidade arrecadadora. A gente ia distribuir o CD dele, e a gente precisava registrar de alguma forma. Aí a gente propôs registrar a partir de um coletivo, que já estava cadastrado, o Independentes ou Marte, lá de São Carlos, e os caras fizeram o registro errado no mesmo ISMC da banda Aeromoças e Tenistas Russas. Ele alega que a gente ficou com esse dinheiro, mas quando acontece esse tipo de erro, o dinheiro fica retido no Ecad. Quando o Daniel se legalizar, esse dinheiro volta para o Daniel. Não teve má fé, teve erro.
E sobre a venda de discos, que ele diz que não houve repasse.
Na distribuição, o buraco é mais em baixo. Quase não existem mais selos que conseguem fazer repasse de venda de discos no Brasil inteiro. É uma logística muito complicada. Durante algum tempo, a gente se disponibilizou a fazer isso a partir de uma central, de receber CDs, na Fora do Eixo Discos, e distribuir. Uma parte gratuita e outra vendida e repassando pro artista. Uma parte da venda de discos vendida do Daniel não foi repassada por erro também. Mas não é regra, é exceção. Por causa de uma dificuldade logística, a gente tentou e a gente percebeu que ia trazer mais problema do que solução. A gente não faz mais isso. A gente disponibiliza o contato do coletivo e cada artista manda diretamente.
Você tem orgulho de ser um dos fundadores do Fora do Eixo?
Tenho. Acho o máximo, mas acho que tem erro e tem acerto.
Quais foram os erros?
Acho que não dá pra analisar esse processo colaborativo como o céu. Porque se não, você vai achar o inferno sempre. Um monte de gente junta, ser humano, que está no dia a dia fazendo a parada, às vezes acerta e erra. Não é um monte de super homem. O mesmo ser humano que está dentro da sua casa está numa Casa Fora do Eixo.
Você acha que mais erraram do que acertaram com o Daniel Peixoto, por exemplo?
Teve acerto e erro. Ele tocou pra muita gente, graças ao Fora do Eixo. A banda dele foi uma das primeiras que levei pra Cuiabá. Ele vai, inclusive, tocar na Feira da Música de Fortaleza, que a gente faz.
E com a Beatriz Seigner, onde foi que vocês erraram?
Erramos em não diagnosticar que as expectativas que ela tinha com relação àquilo não seriam atendidas pela plataforma que a gente oferecia.
E das coisas que ela fala a seu respeito?
Mentira deslavada, não procede, é fantasioso.