Olimpíada da dor .
ROGER COHEN – THE NEW YORK TIMES – É COLUNISTA E ESCRITOR
Ainda existe em grande parte da Europa uma disputa sobre quem foi o autor do pior genocídio: Hitler ou Stalin
O conflito entre os “dois genocídios” em que os crimes de Stalin são comparados aos de Hitler espalha-se por grande parte da Europa e, volta e meia, uma rajada dos ventos do passado vem atiçá-lo.
Semanas atrás, lembramos o 70.º aniversário da adoção dos planos de aniquilação dos judeus pelos nazistas em Wannsee. De fato, um passado traiçoeiro segue oculto sob a calma superfície da Europa. A memória rodopia descontrolada nas partes do continente que o historiador americano Timothy Snyder chama de “bloodlands”, os matadouros da Lituânia à Ucrânia que Hitler e Stalin criaram para satisfazer seus caprichos assassinos.
Para assinalar o aniversário de Wannsee, mais de 70 membros do Parlamento Europeu, entre eles 8 lituanos, assinaram uma declaração contestando as “tentativas de ofuscar o Holocausto diminuindo sua peculiaridade, considerando-o igual, semelhante ou equivalente ao comunismo”. Também rejeitaram as iniciativas para dar uma nova redação aos livros de escola europeus, “a fim de refletirem o conceito de ‘duplo genocídio’”.
Tudo isso foi demais para o chanceler lituano, Audronius Azubalis, conservador, que tachou os signatários social-democratas lituanos de “patéticos”. Sua porta-voz declarou que a única diferença entre Hitler e Stalin era o tamanho de seus bigodes. Ela afirmou que, em termos jurídicos, os crimes por eles cometidos são “exatamente os mesmos”: genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
A ira de Azubalis refletiu o rancor dos países do antigo império soviético que estão convencidos de que, nos EUA e na Europa Ocidental, a matança dos judeus por obra de Hitler está amplamente documentada e gravada nas mentes dos cidadãos, enquanto os crimes horrendos de Stalin – antes, durante e depois da 2.ª Guerra – chamam bem menos a atenção. Onde está, eles perguntam, o museu que lembra o terror de Stalin nos EUA?
A Declaração de Praga, de 2008, assinada por várias personalidades ilustres – entre elas Vaclav Havel, que morreu recentemente -, tentou corrigir essa situação insistindo que os crimes comunistas “devem estar gravados em todas as mentes europeias na mesma proporção” dos crimes nazistas. O documento pedia a instituição do dia 23 de agosto (a data do pacto entre Hitler e Stalin de 1939) como “um dia de lembrança” das vítimas do nazismo e do comunismo, assim como a Europa “lembra as vítimas do Holocausto no dia 27 de janeiro”.
Estamos testemunhando o que Antony Polonsky, professor de estudos do Holocausto na Universidade Brandeis, chama de “a olimpíada da dor”. Como o Oriente Médio nos ensina, são jogos perigosos.
Na época da Conferência de Wannsee, a maioria dos mais de 200 mil judeus da Lituânia já havia sido massacrada com a ajuda solícita de unidades de polícia lituanas e de outras forças. As matanças costumavam ocorrer diante de valas escavadas nas florestas. As câmaras de gás foram um meio para aliviar o estresse emocional dos assassinos então já sobrecarregados.
A história da Lituânia depois da dominação soviética incluiu na época sinceras, embora incertas, tentativas de lidar com uma questão espinhosa: será que os lituanos foram principalmente os autores (dos crimes nazistas contra os judeus) ou as vítimas (dos crimes nazistas contra a nação)? Fiz tal pergunta ao primeiro-ministro lituano, Andrius Kubilius, numa entrevista. Ele respondeu que as observações de Azubalis foram mal-entendidas e “está absolutamente claro que os crimes do Holocausto foram crimes excepcionais, terríveis”, acrescentando que foi “muito doloroso e vergonhoso” assumir que “alguns lituanos tivessem tomado parte nisso”.
Kubilius prosseguiu: “É óbvio que os crimes de Stalin também foram horríveis e dolorosos, embora não possam ser comparados aos do nazismo”, citando a estimativa de Snyder de que 14 milhões de pessoas teriam sido assassinadas entre Berlim e Moscou nos 12 anos em que Hitler e Stalin estiveram no poder. “Muitos deles eram judeus, mas também havia muitos outros grupos”, disse Kubilius.
Compensação. O premiê acusou a Rússia de ter contraído uma “síndrome pós-imperialista” que a deixou cega aos crimes de Moscou.
Questionado sobre se a Rússia deveria pagar à Lituânia para reparar os crimes, ele mencionou a Alemanha depois da guerra, que “compreendeu as suas responsabilidades”. Indagado sobre se seria bom um pedido formal de desculpas da Rússia, ele disse: “Certamente, não só por nós, mas pela Rússia também”. Segundo ele, encarar o passado é uma verdadeira prova de fogo para a Rússia.
No campo minado da História, gostaria de destacar os sete pontos seguintes. Primeiro, o governo Kubilius esforçou-se sinceramente para tratar do envolvimento lituano no Holocausto, aprovando uma lei, no ano passado, que oferecia mais de US$ 50 milhões de indenização, entre várias outras medidas. Em segundo lugar, os esforços são inadequados: o Museu das Vítimas do Genocídio de Vilna, que dedica a maior parte de seu espaço aos crimes soviéticos contra a valorosa resistência lituana, reflete amplamente um psiquismo nacional ainda distorcido.
Em terceiro, a avaliação ocidental dos crimes soviéticos é ridícula (talvez porque Stalin se tornou um aliado dos EUA ao derrotar o nazismo) e deveria ser aprofundada. Quarto, a Declaração de Praga e outras tentativas de equiparar os crimes nazistas aos soviéticos são descabidas: a ideologia nazista que levou ao fuzilamento de mulheres e crianças em valas e depois criou Auschwitz foi única em sua malignidade assassina.
Quinto, alguns crimes soviéticos podem ser enquadrados na definição de genocídio da ONU: “Atos cometidos com o objetivo de destruir, completa ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal”. Mas o termo “genocídio” corre o risco de perder seu significado e sua profundidade em razão do seu uso excessivo.
Sexto, está mais do que na hora de os russos prestarem conta pelos crimes soviéticos. Sétimo, levar os países do Báltico a fazer parte da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi um ato de genialidade diplomática que impediu que a devastação da memória cobrasse um novo derramamento de sangue. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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