Vida, morte e ressurreição do corsário ATLANTIS
O navio nazista que permaneceu dois anos sem atracar destruiu dezenas de embarcações dos Aliados
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista usou navios corsários para deter e dificultar o comércio marítimo dos Aliados. Modestos cargueiros, habilmente dissimulados para ocultar armas poderosas, essas embarcações, saídas diretamente da epopéia da pirataria caribenha dos séculos XVII e XVIII, viveram uma guerra aventurosa e rocambolesca, para terminar quase sempre no fundo do oceano, naufragados pelos tiros dos canhões inimigos. Entre todos, o que deu mais certo agüentou ileso quase dois anos no mar, afundando ou capturando 22 navios de carga.
Tudo começou no final de 1939, quando o Goldenfels, cargueiro de 155 metros de comprimento e 7.860 toneladas, de propriedade da companhia Bremser Hansa Line, entrou nos estaleiros A. G. de Bremen. A embarcação era praticamente nova: fora lançada três anos antes. Passou, contudo, 98 dias ali. Os “reparos”, realizados em indevassável segredo, eram de um gênero muito específico: era possível agora alongar ou diminuir, a chaminé, e uma segunda, fictícia e desmontável, fora instalada a bordo; tetos, também desmontáveis, vieram acrescentar-se às superestruturas do convés; os mastros e os condutos aéreos tornaram-se telescópicos. O Goldenfels ganhou uma silhueta completamente transformada: podia escapar de uma eventual identificação pelo inimigo. Na amurada desse agradável cargueiro, portinholas ali instaladas abriam-se, deixando à vista um possante armamento. No total, eram seis canhões de 150 mm e um de 75 mm, dois canhões semi-automáticos de 37 mm, quatro metralhadoras e dois lança-torpedos.
Um hidroavião com as asas recolhidas, também armado de metralhadoras, escondia-se sob um dos inocentes painéis do porão. No interior, tanques de combustível foram acrescentados para proporcionar a máxima autonomia e espaços arranjados para receber grande quantidade de prisioneiros. Pois um corsário, se quer ser eficaz, deve poder permanecer muito tempo no mar, sem precisar de escalas, e não ser apreendido.
O comandante Bernhard Rogge, que recebeu o comando do navio, por ele batizado Atlantis, sabia-o perfeitamente: marinheiro experimentado, iatista bem conhecido no meio internacional das regatas do pré-guerra, antigo comandante de navio-escola à vela, nada ignorava das narrativas de seus antepassados. A Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial, já havia utilizado navios mercantes como corsários. Com certo êxito, aliás, afora o grave problema dos muitos prisioneiros que precisavam desembarcar em algum lugar, comprometendo gravemente as possibilidades de sobrevivência nos mares, pois, cedo ou tarde, terminavam identificando os navios que os tinham capturado. Dessa vez, o comandante Rogge estava firmemente decidido a corrigir o tropeço. Mas foi esse, malgrado todas as suas precauções, o calcanhar-de-aquiles que derrubou o invencível corsário depois de um longuíssimo e proveitoso cruzeiro.
O Atlantis deixou seu ancoradouro no Elba e tomou rumo norte em 31 de março de 1940. Ninguém a bordo podia saber quando reveria a terra firme, se é que esse dia chegaria. O primeiro perigo que precisaram enfrentar não era dos menores: deviam contornar as linhas britânicas e francesas, navegando mais ao norte. Tudo correu bem, com a ajuda da sorte e do mau tempo, que castigou os controles inimigos, e o Atlantis, insinuando-se cuidadosamente entre as geleiras e a Groenlândia, em oito dias conseguiu desembocar no Atlântico.
Os navios comerciais logo puderam ser avistados. Rogge, porém, para grande desapontamento da tripulação, cuidou de evitá-los. Para ter a esperança de durar, o corsário só deve atracar com conhecimento de causa e com as melhores garantias de fuga. Logo, porém, uma mensagem de rádio do almirantado ordenava ao Atlantis dirigir-se para o Atlântico sul. A intenção era desorientar e provocar inquietação na linha Freetown – Cidade do Cabo. Esse foi seu primeiro teatro de operações.
Atravessaram o Equador em 22 de abril. Pouco depois, fizeram parada na calmaria da zona intertropical para consertar os estragos provocados pelo gelo do oceano Ártico na pintura do casco do navio. O Atlantis, que navegava travestido de um cruzador auxiliar russo e temia ter sido localizado no Atlântico norte, transformava-se em cargueiro japonês, o Kasii Maru. As cores dessa embarcação, de fato existente, foram usadas para repintá-lo e os homens de menor estatura, mandados para o convés, trajaram-se de modo semelhante ao dos marinheiros japoneses. Em caso de encontro com um navio de guerra inglês, era preciso confundi-lo.
Logo, uma fumaça foi avistada no horizonte. O Atlantis, aliás, o Kasii Maru, aproximou-se prudentemente. Reconheceu o City of Exeter, um transatlântico britânico, ao que tudo indica com grande número de passageiros a bordo. O comandante Rogge preferiu não atacar. O que faria com todos esses prisioneiros? Mas, no dia seguinte, outra embarcação foi avistada. Era um cargueiro inglês de 6.200 toneladas, o Scientist. Manobrando com delicadeza, a embarcação alemã conseguiu tomar uma rota de colisão sem se fazer notar. E, quando a proa do inimigo estava ao alcance dos sinais e dos canhões, o comandante Rogge desfraldou o pavilhão ornado da cruz gamada nazista. Infelizmente, o inglês tentou o caminho da fuga, assinalando sua posição, e em três minutos estava em chamas. Botes foram lançados à água para resgatar os 77 membros da tripulação e um destacamento de captura embarcou no Scientist para examinar a carga, enquanto era tempo, e recuperar na sala de mapas os documentos que porventura pudessem interessar. Com efeito, preciosas informações sobre os movimentos dos navios britânicos foram recolhidas. Pouco depois, cargas de dinamite levavam o Scientist ao naufrágio. Dois feridos, resultado do ataque, foram operados e tratados pelo médico do Atlantis. Um deles, gravemente atingido, morreu no dia seguinte.
Naquele 3 de maio de 1940, o corsário efetuara sua primeira presa. Naquele início de campanha, o Scientist não era esperado em Freetown antes de 10 de maio. Até lá, ninguém se inquietaria e o inimigo não tinha por que nutrir suspeita.
O Atlantis, com todas as portinholas fechadas, inocente cargueiro, então rumou para o cabo da Boa Esperança, onde tentaria colocar minas. Deu uma grande volta pelo sul para retornar pelo leste. Quem desconfiaria de um navio de carga japonês chegando, como era de se esperar, do oceano Índico? O tráfego, intenso nesta zona, era estritamente vigiado pelos ingleses, mas o Kasii Maru conseguiu, assim mesmo, submergir 90 minas magnéticas. Desferido o golpe, navegou a todo vapor ao extremo sul, para esperar, ao abrigo das solidões desoladoras dos ventos no paralelo 40, que os redemoinhos provocados por esses primeiros ataques bruscos se acalmassem. Soube, em 15 de maio, pela rádio inglesa, que minas haviam destruído alguns navios no cabo da Boa Esperança, daí para a frente assinalado como zona de perigo. Mas ouviu também que ele próprio fora localizado e sua posição assinalada.
Então, marujos, às trinchas e aos pincéis! Saía o Kasii Maru e entrava o cargueiro holandês Abbekerk. Enorme e admirável era a tenacidade da tripulação, que conseguiu repintar em alguns poucos dias, sob vagalhões terríveis e o frio intenso, um navio de carga de 146 metros de comprimento. Foi, portanto, o Abbekerk que capturou no dia 10 de junho, ao largo da ilha Maurício, o norueguês Tirranna. A expedição continuava no oceano Índico. Em meados de novembro de 1940, 13 navios haviam sido capturados ou afundados. Outro, carregado de prisioneiros, foi enviado para a costa da Somália, controlada pelos italianos. Mas, depois de oito meses no mar, sempre à espera de um ataque, o navio e a tripulação do corsário estavam exaustos. O comandante Rogge buscou uma ilha deserta para fazer repousar seus homens e reparar seu navio. Encontrou o arquipélago dos Kerguelen, onde atracaram em 15 de novembro. O Natal seria festejado em terra!
Entre as focas, os albatrozes e os elefantes marinhos, na paisagem desolada, batida constantemente pelos ventos violentos dessas ilhas muito austrais, o Atlantis encontrou um bom refúgio, mas ao preço de um encalhe que poderia ter-lhe custado muito. Ali ficou por três semanas e, em 10 de janeiro de 1941, sua silhueta profundamente remodelada, retomou a caçada, rumo ao norte. Naufragou ainda alguns navios de carga e capturou dois outros ao largo de Moçambique, e depois navegou discretamente em direção ao Atlântico, descendo ao extremo sul. No princípio de abril, voltava à mesma zona onde, quase um ano antes, afundara sua primeira presa. Dizem que não se deve jamais retornar ao local do crime e, de fato, o Zam-Zam, transporte de tropas ostentando a bandeira egípcia que o Atlantis atacou no dia 17 de abril, foi o responsável por sua derrocada.
A bordo do Zam-Zam havia grande número de passageiros americanos. Convinha, pois, livrar-se deles o mais rápido possível e com os melhores respeitos, pois os Estados Unidos não tinham entrado na guerra. O comandante Rogge lembrou-se do Lusitânia. Rapidamente transferidos para o Dresden, outro corsário alemão que navegava por aquelas paragens, esses prisioneiros foram desembarcados sem maiores incidentes em Saint-Jean-de-Luz a 21 de maio. Entre eles, porém, viajava um fotógrafo da revista Life, que conseguiu, apesar de todo o controle, conservar os negativos das fotos que fizera do corsário. A partir de então, o destino do Atlantis estava selado. Comunicada a todos os navios e aviões ingleses, a foto não deixava à embarcação muitas possibilidades de fuga. Mesmo assim, o cruzador ainda naufragou quatro cargueiros nessa zona, antes de manejar rumo ao Pacífico pela Austrália.
O Atlantis, contando com a novidade de sua presença ali, esperava continuar impunemente sua guerra corsária. Já estava há 15 meses no mar. Seu comandante possuía uma determinação inquebrantável, mas chegara a hora dos balanços e dos questionamentos, que não atentavam, diga-se, contra seu elevado senso de dever. Leiamos seu diário de bordo: “A tática da guerra corsária foi modificada, devido à desconfiança cada vez maior das embarcações mercantis e sua obediência mais estrita às instruções dadas pelo almirantado britânico. Foi preciso renunciar aos ataques diurnos, aos sinais de ordem de parar, ao tiro de advertência, na mais bela tradição da Primeira Guerra Mundial. Os prisioneiros e os sobreviventes foram tratados como gostaríamos nós mesmos que fôssemos, se estivéssemos em seu lugar, isto é, tentamos fazer seu infortúnio suportável. Os feridos receberam imediatamente todos os cuidados médicos que reclamava seu estado”.
No dia 16 de junho de 1941, o Atlantis bateu o recorde de duração no mar. O 500o dia do cruzeiro foi festejado tão suntuosamente quanto o permitiam os módicos recursos a bordo, nas proximidades das ilhas Crozet, no oceano Índico. Chegado ao Pacífico, enorme extensão marítima, o Atlantis pôde constatar, desolado, que a caça aos navios de comércio mostrava-se aqui muito mais difícil. Onde encontrá-los em meio a essa imensidão quando, ao mesmo tempo, era necessário manter-se prudentemente fora do alcance das bases de aviação? Assim, não conseguiria mais que um navio de carga de 4.793 toneladas a acrescentar a seus troféus, o Silvaplana, capturado em 10 de setembro de 1941. Logo, a fadiga física e psicológica da tripulação era extrema e o estado geral dos motores, apesar de inúmeras revisões efetuadas em alto-mar, era preocupante.
Depois de uma escala no atol de Vana-Vana, no arquipélago dos Tuamotou, o comandante Rogge tomou a decisão de voltar à Europa. Operaria até 19 de outubro no Pacífico, passando depois pelo Atlântico sul para chegar à França por volta do dia 20 de dezembro. Natal em casa! Seria um belo programa para reanimar a equipe. Isso se não existissem as fotos de Scherman, o repórter da revista Life.
O Atlantis chegou sem maiores dificuldades ao Atlântico sul dobrando o cabo Horn. Mas soube, pelo rádio, que o navio de abastecimento dos submarinos alemães operando nessa zona fora afundado pelos ingleses. O comandante Rogge ofereceu-se, então, para substituí-lo.
Depois de um primeiro contato com o U 68 – o mesmo submarino que o acompanhara quando de sua partida da Alemanha –, o Atlantis tomou rumo norte para outro encontro. Na madrugada do dia 22 de novembro, avistou um submarino a 350 milhas ao noroeste da ilha da Ascensão.
O tempo era bom, o mar, calmo e as operações de abastecimento foram levadas a ótimo termo. Mas o comandante Rogge não estava nada tranqüilo. Sentia-se muito vulnerável como substituto do navio provedor. Subitamente, o vigia, instalado no topo do mastro do Atlantis, lançou o grito de aviso: “A 20º a bombordo, um navio de três chaminés!” Três chaminés... Não era bom sinal. Seria um encouraçado inglês? Mas eis que um avião sobrevoou, alto e de longe, o Atlantis e o submarino a ele acoplado. Dessa vez, era mesmo o combate. O submarino mergulhou imediatamente.
O comandante Rogge sentiu que a sorte, sempre a seu lado durante mais de 100 mil milhas de rota, o estava abandonando. Logo, o rádio recebeu mensagens “S.S.S.” emitidas pelo avião: ele os avistara. Depois, escutaram-no identificar o corsário, cuja aparência reconhecera graças às fotos de Scherman. Tudo se passou muito rápido: eram 8h17 quando o encouraçado ordenou ao Atlantis que se identificasse. O comandante Rogge tentou lográ-lo, mentir, ganhar tempo, fugir. Para azar, um motor estava em reparos, o que não permitia uma velocidade superior a dez nós. Às 9h37, mantendo-se prudentemente a uma distância de 16.500 metros – fora do alcance dos canhões do Atlantis –, o Devonshire abriu fogo. O comandante Rogge tentou ainda lançar uma cortina de fumaça, mas o Devonshire, que podia navegar a 26 nós, não o abandonou. Um segundo sobrevôo do avião identificou formalmente o Atlantis. Então, às 9h53, uma nova salva de canhões de 204 mm do navio de guerra britânico atingiu mortalmente o corsário, que naufragou às 10h16 enquanto sua tripulação tomava o que restava de botes e de chalupas. Para eles, dessa vez a aventura militar chegara ao fim. Mas a aventura da sobrevivência apenas começava.
Em razão da presença do submarino alemão, o Devonshire não socorreu os sobreviventes. Penaram vários dias no mar, antes de serem resgatados pelo corsário alemão Python. Mas, para piorar as coisas, este foi por sua vez afundado pelo cruzador inglês Dorsetshire em 1o de dezembro, ao largo das ilhas de Cabo Verde, quando fazia o transbordo dos sobreviventes. Finalmente, os quatro submarinos italianos chamados em socorro conduziram a tripulação do Atlantis a Saint-Nazaire, onde aportaram, sucessivamente, entre os dias 24 e 29 de dezembro de 1941.
Bernhard Rogge reuniu seus marinheiros uma última vez. O instante era solene e eles irmanaram-se em um serviço religioso para agradecer a Deus tê-los trazido vivos a sua pátria. Mantiveram-se 655 dias no mar, capturaram ou naufragaram 22 navios, um total de 144.500 toneladas de peso bruto.
Em 1o de janeiro de 1942, a tripulação do Atlantis partia para Berlim. O que foi, provavelmente, a última operação corsária da história acabava de ter um fim.