Acabei de postar meus comentários aqui e fui pra site da Revista Carta Capital (
http://www.cartacapital.com.br) Na entrevista de Celso Amorim, ví cristalizado, um pouco das impressões que tenho de muitos brasileiros, companheiros desse Forum, a respeito de política externa, patriotismo, signação sem contestação, etc. Vale a pena a leitural;
PELOS RESULTADOS
Mais ousada do que na era FHC, a política externa do governo sofre preconceito interno, diz o ministro Celso Amorim
Por Luiz Alberto Weber
Cinéfilo, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, refugia-se das intrigas brasilienses, que, muitas vezes, miram o Itamaraty, nas salas de cinema da cidade, onde, de boa vontade, desliga seu celular. Ex-presidente da Embrafilme nos estertores do regime militar, o chanceler teve mais êxito em inseminar nos filhos a paixão pelo cinema do que pela diplomacia. Assistiu mais recentemente aos filmes O Caminho das Nuvens e Olga – o primeiro dirigido por seu filho, Vicente; o último, editado pelo filho Pedro.
Diplomata desde 1965, Amorim avalia que nunca o Brasil se projetou tanto no cenário internacional, visibilidade que ele atribui ao capital político de Lula somada à missão do presidente de reunir líderes mundiais no combate à fome. Nesta entrevista a CartaCapital, o chanceler diz quais são as diferenças entre a política externa do governo do PT e de FHC, avalia o futuro da Alca, mostra-se surpreso com a cobertura de parte da mídia dos assuntos do Itamaraty, às vezes mais americanista do que os próprios americanos.
CartaCapital: O senhor acha que há certa má vontade dos formadores de opinião com a política externa do presidente Lula? Lembro que a visita de Lula, no fim do primeiro ano de governo, à Líbia foi atacada, mas, pouco depois, o encontro de líderes europeus com o presidente Khadafi foi louvado como grande momento da política internacional...
Celso Amorim: Eu prezo muito a liberdade de expressão. Fui presidente da Embrafilme durante o governo militar e perdi meu cargo porque apoiei a realização de filmes que criticavam práticas que haviam ocorrido naquele período. Mas acho que há uma visão – que não vou atribuir à má-fé de ninguém – que é de procurar achar que certas coisas os outros podem e nós não podemos, como se tivéssemos de pedir licença para cada gesto de política externa, para cada ação que nós tomamos. Esse exemplo da visita do presidente Lula aos países árabes foi um dos mais gritantes. Com poucas semanas de diferença, estiveram por lá o Aznar (José María Aznar, ex-primeiro-ministro espanhol) e o Tony Blair. E a cobertura foi totalmente diversa. Acho que isso, sinceramente, reflete uma visão equivocada e revela um aspecto importante, que é o desenvolvimento do que o presidente costuma dizer da auto-estima do brasileiro. E a auto-estima passa por aí, por ter atitudes independentes, dignas, abertas. Nosso intercâmbio com a Líbia, com a Síria e com os países árabes em geral aumentou muitíssimo depois da visita do presidente à região.
CC: Há certo preconceito?
CA: Vejo isso às vezes espalhado na população. Não sei se é a mídia que influencia a população ou é a população que influencia a mídia. Mas acho essa visão um pouco acanhada, de autoflagelação do brasileiro, de automesquinhamento, é totalmente infundada. Por exemplo, vários dirigentes norte-americanos, como o ex-secretário de Estado Collin Powell e a própria Condoleezza Rice, têm dito palavras positivas sobre o Brasil, sobre a política externa brasileira mais especificamente. Nós somos criticados pela política externa que os Estados Unidos elogiam. Quando o Robert Zoellick (representante de comércio dos Estados Unidos) precisa de um interlocutor na Organização Mundial do Comércio (OMC), ele procura o Brasil. Eles sabem que nós somos negociadores confiáveis, sérios, sabem que defendemos nossos interesses, mas sabem que podemos contribuir.
Com o secretário Collin Powell, eu mantive um diálogo excelente sobre muitos temas, entre eles Venezuela, por exemplo. Essa é a contradição. Quando fazemos determinada política, ela é criticada, quando grandes potências elogiam nossa política, isso é algo que passa ao largo. O que é curioso é que ela é criticada por antiamericanismo. Talvez não houvesse o hábito de ver o Brasil atuar de maneira tão forte na área internacional quanto no governo Lula.
CC: O senhor mencionou as relações com a Síria. Novamente, o Itamaraty foi criticado por recorrer à Síria, uma ditadura, para que interviesse no caso do engenheiro brasileiro (João José Vasconcellos) seqüestrado no Iraque desde 19 de janeiro.
CA: Falar com o presidente da Síria era uma das coisas mais eficazes que podiam ser feitas no alto nível político. É um pouco essa questão do “o que quer que você faça, você vai ter crítica”. Agora, o Brasil possui relações diplomáticas com a Síria e não tem de ficar querendo dar lições, nem impondo pela força – pela força muito menos – o sistema de governo a outros países. Não fazemos isso na região, não faremos isso fora da região.
“
Nossa política é criticada
por antiamericanismo, mas elogiada pelas grandes potências, pelos EUA”
CC: No que a política externa do governo Lula é diferente da adotada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
CA: Em primeiro lugar, a questão da fome é algo totalmente novo e isso tem repercussão nos mais variados campos. Na ONU, testemunhei, por ocasião da visita de Lula à Assembléia, uma pessoa de língua francesa pronunciar uma frase que qualquer dia vou colocar em um livro de memórias, porque falou de maneira carinhosa: o Brasil abraça o mundo. Então é um elemento que certamente não tinha na política do Fernando Henrique Cardoso. Também acho que atitudes como as que nos levaram ao G 20, não creio que houvesse, porque aquilo implicou riscos. Acho que a intensidade e a determinação com que são levadas adiante certas decisões são realmente coisas novas. Outro exemplo é a integração da América do Sul. Isso nos permitiu em dois anos ter um acordo que cria uma área de livre comércio sul-americana, além da parte da infra-estrutura. Isso implicou o quê? O presidente Lula recebeu todos os presidentes da América do Sul, foi a todos os países. A intensidade acaba afetando o conteúdo. O presidente Lula, agora com a viagem à Guiana e ao Suriname, completa todos os países da América do Sul.
CC: Não é mais uma etapa de integração retórica?
CA: Não. Acabei de receber o decreto que introduz na legislação brasileira o acordo entre o Mercosul e a Comunidade Andina. Isso é uma coisa histórica porque, com esse acordo, na realidade, você criou uma área de livre comércio sul-americana. Isso é um sonho. Hoje estamos trabalhando na América do Sul para criar uma base sólida para negociarmos melhor. Dentro e fora do continente. Então, ela não é abstrata, não é retórica. Agora, além disso, temos as obras de infra-estrutura. O Brasil está empenhado em muitas obras de infra-estrutura que beneficiam empresas brasileiras e beneficiam a integração ao mesmo tempo. Tudo é muito positivo e é muito real.
CC: A política externa brasileira sempre foi elogiada pelo pragmatismo, por antever e entender a configuração geopolítica do mundo. O Brasil, ao fazer tantas apostas simultâneas (África, Oriente Médio, América do Sul), não estaria deixando de concentrar suas fichas no bilhete certo?
CA: Os momentos de maior brilho da política externa brasileira no passado, indiscutivelmente, ocorreram justamente onde o Brasil procurou projetar no plano externo essa característica plural da sua própria cultura e da sua própria população. Para nós é bom que seja assim, um mundo multipolar é um mundo que favorece países como o nosso, e acho que temos atuado dentro desse quadro.
CC: Muitos criticam que essa ação global retira energia política, diplomática e econômica de um acordo que seria mais produtivo, em todos esses campos, com os Estados Unidos, no âmbito da Alca.
CA: Ninguém pode fazer um juízo definitivo sobre essas coisas. Política não é matemática. Mas na medida em que a matemática ajuda a política, todos os estudos feitos até hoje em relação ao acordo com a Alca, ou quase todos, mostram que ela pode trazer benefícios setoriais, mas não necessariamente para o conjunto da economia brasileira. Estudos recentes mostram que teríamos um déficit na nossa relação comercial com os EUA. Esses são os dados com os quais estamos trabalhando.
CC: Isso quer dizer que a Alca está sacramentada e enterrada?
CA: Nós temos de negociar uma Alca que seja favorável para nós, da mesma maneira que temos de negociar com a União Européia um acordo que nos seja favorável. A Alca, da maneira como estava desenhada antes, significava, primeiro, que nós não teríamos concessão alguma em agricultura, porque o comitê de agricultura nem sequer se reunia e progressivamente íamos fazendo concessões nas áreas mais sensíveis para nós, que eram as áreas de serviço, de propriedade intelectual, de investimentos. Nessas áreas, todos os temas sensíveis estavam caminhando e, na área que nos interessava, que era a agricultura, não caminhava. Não caminhava porque os americanos alegavam que subsídios agrícolas eles só iriam tratar na OMC, mas queriam tratar na Alca os temas de interesse deles. Quando se fala, por exemplo, que é por causa das patentes que a Alca não está avançando, não é por causa disso. Eu já fiz essa pergunta ao Zoellick. Perguntei a ele: vamos supor, para saber onde estamos pisando, se por acaso aceitássemos uma visão de patentes como os Estados Unidos desejam, isso faria com que o mercado de produtos agrícolas se abrisse para nós e as tarifas caíssem a zero? Ele respondeu com a franqueza que tem. Para nós, a Alca é uma negociação com os Estados Unidos, com os outros países ou temos acordo ou estamos negociando, de modo que não temos nenhuma dificuldade em ter acordos com outros países.
CC: Os EUA estão celebrando acordos bilaterais na América Latina. O Brasil pode vir a celebrar um acordo comercial assim?
CA: Não, não. Bilateral só com o Mercosul. Quatro mais um. Bilateral porque são dois lados. Fora do Mercosul, não. O Mercosul é algo muito precioso que deve ser mantido. Ele já chegou a absorver quase 18% das nossas exportações. Caiu um pouco e agora voltou a subir muito, batendo até recorde em termos absolutos.
CC: A impressão que se tem é que o Mercosul está pelas tabelas por causa das várias exigências feitas pela Argentina...
CA: É uma questão de compreender o que é estratégico e o que é tático. Acho que o governo e, a rigor, a mídia, já que ela exerce uma grande influência, teriam de olhar para o conjunto. Quando estive na última reunião do Mercosul, uma reunião importantíssima, que avançou em áreas sensíveis, como a eliminação da dupla cobrança da tarifa externa comum, o avanço mais concreto em termos de união aduaneira que nós fizemos nos últimos anos, e acordos com a Índia e a África do Sul, havia tudo isso e a única pergunta – até por isso que digo que é algo impregnado na população – foi: “Poxa, vocês estão fazendo um bom trabalho, mas os argentinos dão um trabalho...” Eu disse: “Tenho trabalho com os argentinos, mas tenho trabalho também com setores da nossa mídia”. As coisas têm de ser vistas em um conjunto. E o conjunto é esse: nossas exportações com a Argentina – claro, houve uma crise –, mas aumentaram 90% em um ano e no ano seguinte 70%. Um recorde. Progressivamente, nos setores onde havia problemas estão sendo feitos acordos, isso já aconteceu no passado em outros setores – siderúrgico, químico… Agora, se você me pergunta: é bom que haja restrições ao comércio? Não. Estou defendendo? Não. Agora, nós temos de ter a compreensão de quais são as soluções para o problema.
CC: Como está a candidatura brasileira à presidência da OMC?
CA: A questão da OMC está lançada. O Brasil tem um candidato. O sentido da apresentação da nossa candidatura na OMC é político. Nem o embaixador Seixas Corrêa nem o Brasil aspiravam a esse cargo, mas criou-se uma situação política em que se tornou importante pelo próprio papel que o Brasil e o G 20 desempenharam nessa verdadeira revolução que houve nos processos negociadores da OMC. As negociações deixaram de se processar fundamentalmente entre o presidente de uma comissão ou de um conselho e os grandes países – porque era o que ocorria, depois você só poderia chegar lá e mudar uma vírgula. O fato de a renegociação, do acordo-quadro, como ocorreu em Cancún e Genebra, ter sido feita com a participação efetiva dos principais interlocutores foi algo que só ocorreu por causa do G 20. E o G 20 não teria existido se não tivéssemos já antes uma política de integração da América do Sul que tenha despertado confiança, uma política de aproximação intensa com a Índia, com a China, com a África do Sul, todos esses fatos estão ligados e eles não existem isoladamente. Nós ganharíamos muito mais com uma boa conclusão da Rodada de Doha (negociação para acessos a mercados e redução de subsídios), o ganho a médio e longo prazo do Brasil, inclusive para os setores que gostariam de ter um acordo rápido com a Alca, seria muito maior na OMC, porque é lá que estamos brigando pelo fim dos subsídios.
CC: Não vai acabar em impasse como nas outras etapas?
CA: É uma batalha e eu não quero cantar vitória antes do tempo. Talvez não consigamos tudo o que queremos, mas hoje em dia a questão, por exemplo, da eliminação do subsídio da exportação é ponto pacífico. Se não ocorrer, não tem a Rodada, acaba tudo. Não acredito que isso vai ocorrer. E o que vai resultar de uma negociação que permita redução efetiva de subsídios é muito mais do que pode resultar dessas outras negociações.
CC: Inventaram muitos inimigos para o senhor no governo, entre eles o assessor especial de Lula para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia...
CA: Olha, eu até hoje não sei quem indicou meu nome para o presidente Lula, mas uma das pessoas deve ter sido ele. Como, então, posso ter o Marco Aurélio como inimigo? (risos)
CC: E na Fazenda, onde alguns acreditam que um acordo com os americanos é melhor do que insistir em outras regiões?
CA: Eu tenho um excelente entendimento com o ministro Palocci. Para falar a verdade, o que pensam as burocracias não me interessa. Nem a dele, nem a minha. Nunca tivemos nenhum desacordo nas reuniões feitas no Palácio do Planalto.
CC: O Brasil ficou diferente aos olhos do mundo?
CA: Olha, quando é que tivemos dois primeiros-ministros da Espanha em um espaço de oito meses no Brasil? Veio o Aznar, mudou o governo, aí veio o Zapatero (José Luis Rodríguez Zapatero). E por aí vai. Os contatos que temos tido com os Estados Unidos, com o Reino Unido, e até em outras áreas, como o apoio que vários países têm dado à candidatura do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança, tudo isso reflete uma percepção do que o país representa. O presidente Lula está convidado para a reunião do G 8 em julho. É pouco isso? Agora, resulta do processo da consolidação democrática e de muita coisa boa que aconteceu no passado. Tudo isso em um quadro onde a relação com os países desenvolvidos tem sido cultivada de maneira muito especial. Mas resulta, também, de um grande empenho de termos relações internacionais amplas, justamente no sentido de reforçar essa multipolaridade que é saudável para nós e para o mundo.