Após Fukushima, amadorismo marca limpeza nuclear em vila no Japão
Empresas que construíram usinas agora lucram com a limpeza, apesar de seu conhecimento sobre descontaminação ser um aprendizado diário
The New York Times | 21/02/2012 07:01
À medida que 500 trabalhadores vestidos com roupas protetoras e máscaras se espalhavam para descontaminar a vila de Iitate, no Japão, que fica a 32 km de distância dos reatores de Fukushima Daiichi, a confusão era evidente.
"Será que devemos cavar 5 centímetros ou 10 centímetros de profundidade?", um supervisor perguntou a seus colegas, apontando para um pedaço de terra radioativa que deveria ser retirada do local.
Foto: NYT
Trabalhadores limpam escola durante um esforço experimental na vila de Iitate, no Japão
Ele então fez um gesto apontando para o outro lado da praça da aldeia em direção ao centro comunitário. "Esse centro não precisava ter sido demolido? Vamos descontaminá-lo ou não?"
Um diarista que trabalhava limpando janelas em uma escola abandonada perto do local estava chocado com o trabalho da sua equipe de homens vestidos com macacões anti-contaminação. "Somos todos amadores", disse. "Ninguém realmente sabe como limpar a radiação."
Pode até ser que ninguém saiba realmente muito bem como agir nessa situação. Mas isso não impediu o governo japonês de começar a distribuir uma verba inicial de US$ 13 bilhões em contratos destinados a reabilitar mais de 20 mil km² da região mais exposta à precipitação radioativa. O objetivo principal é permitir que 80 mil habitantes ou mais que foram deslocados possam retornar a suas casas perto do local do desastre nuclear de março passado, incluindo os 6,5 mil moradores de Iitate.
Porém não se sabe se os métodos de limpeza serão eficazes ou não.
Mais perturbador para os críticos do programa de descontaminação é o fato de que o governo concedeu os primeiros contratos a três grandes empresas do setor de construção civil - empresas que não têm nenhuma experiência na limpeza de radiação, mas que lucraram enormemente com a industria da energia nuclear do Japão.
Foram essas mesmas três empresas que ajudaram a construir 45 das 54 usinas nucleares do Japão - incluindo os prédios dos reatores e outras construções da usina de Fukushima Daiichi que não conseguiram resistir ao tsunami - de acordo com dados do Centro de Informações Nucleares do Cidadão, um grupo de vigilância.
Uma delas, a Corporação Taisei, está administrando o consórcio que enviou os trabalhadores que estão agora vagando em torno de Iitate em suas roupas protetoras. Consórcios liderados pela Taisei e as outras das duas grandes empresas - Obayashi e Kajima – foram contratados pelo governo para os primeiros 12 projetos-pilotos de descontaminação, totalizando cerca de US$ 93 milhões.
"É uma farsa", disse Kiyoshi Sakurai, um crítico da indústria nuclear e ex-pesquisador de uma das precursoras da Agência de Energia Atômica do Japão, que está supervisionando essa fase da descontaminação. "A descontaminação está se tornando uma grande oportunidade de negócio."
Os contratos de limpeza, segundo Sakurai e outros críticos, fazem parte dos laços que dizem existir há muito tempo entre a indústria nuclear e o governo. "A indústria nuclear japonesa é administrada de uma maneira na qual quanto mais você fracassar, mais dinheiro irá receber", disse Sakurai.
A Agência Japonesa de Energia Atômica afirmou que as grandes construtoras não serão necessariamente as únicas a receber a maior parte do trabalho que ainda está por vir, que será administrado pelo Ministério do Meio Ambiente. Funcionários da empresa, no entanto, indicaram que esperam continuar sendo os principais provedores dos serviços para o governo.
"Estamos adquirindo cada vez mais conhecimento à medida que nós trabalhamos", disse Fumiyasu Hirai, porta-voz da Taisei. "É um processo de tentativa e erro, mas estamos bem equipados para o trabalho."
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Trabalhador da Taisei, uma das empresas de construção contratada para a limpeza, usa toalha de papel para descontaminar escola
Kajima e Obayashi disseram que não poderiam comentar sobre os projetos que estão em andamento. Um oficial do Ministério do Meio Ambiente, Katsumasa Seimaru, disse que as grandes construtoras estão mais bem equipadas para reunir os recursos humanos necessários, supervisionar projetos de grande escala como a descontaminação de estradas e montanhas, proteger adequadamente e monitorar a exposição a radiação entre os trabalhadores que participam da limpeza.
"Se você já lidou com questões nucleares ou não, não chega a ser tão importante quanto o que você pode fazer para ajudar na limpeza", disse Seimaru.
Outras empresas de construção estão se esforçando para entrar em ação. No final de janeiro, a Corporação Maeda, outra empreiteira, ganhou um contrato de limpeza que foi concedido pelo Ministério do Meio Ambiente.
A Maeda se ofereceu para assumir o cargo por menos da metade dos custos esperados, uma manobra para tentar participar desse mercado que acabou gerando reclamações de outros licitantes, inclusive da Taisei.
No início de fevereiro, uma cidade fora da zona de exclusão, Minamisoma, disse que também iria alocar cerca de US$ 525 milhões para projetos de descontaminação para grupos liderados por empreiteras nacionais.
Quaisquer que sejam as controvérsias, não há dúvida de que o Japão tenta realizar uma tarefa crucial. Esses projetos destinam-se a ir muito além da limpeza parcial que aconteceu após o desastre de 1986 em Chernobyl, na Ucrânia, que deixou um raio de quase 30 km ao redor da usina, mesmo quase um quarto de século depois, em grande parte isolado por perigo de radiação.
Mas não existe um consenso sobre quais os métodos de limpeza podem ser mais eficazes para o Japão. Partículas radioativas são facilmente transportadas pelo vento e pela chuva e poderiam recontaminar vilas e cidades, mesmo após uma equipe de limpeza ter feito seu trabalho, explicam os especialistas.
"Não existem especialistas em descontaminação e não há nenhum motivo pelo qual o Estado deveria pagar uma grande quantia de dinheiro para as grandes empresas de construção", disse Yoichi Tao, professor de física na Universidade de Kogakuin que está ajudando a ensinar aos moradores do vilarejo como realizar testes de descontaminação por conta própria. Ele também vem monitorando a eficácia dos projetos de descontaminação da agência de energia.
Embora as grandes empresas tenham recebido os principais contratos, até agora a limpeza na prática - essencialmente uma tarefa simples, porém tediosa - está sendo realizada por empresas terceirizadas e sub-contratadas, que por sua vez dependem de trabalhadores temporários não treinados para fazer o trabalho mais duro do processo de descontaminação.
Essa estrutura em camadas, em que as taxas são desviadas e os salários diminuem conforme chega-se ao escalão mais baixo da pirâmide de trabalho, segue o padrão familiar das indústrias nucleares e das construtoras do Japão.
No projeto de Iitate, a maioria dos operários vem de outro lugar. O auto-intitulado amador que estava limpando as janelas da escola, que se identificou apenas como Shibata, disse que trabalhava em uma indústria automobilística e que residia a cerca de 257 km de distância ao leste de Tóquio, na cidade de Chiba. Ele disse que soube que havia "trabalho com uma remuneração decente e não muito perigoso" em Fukushima.
Shibata disse que estava trabalhando em dois turnos de quatro horas por dia e estava alojado em um spa-resort local. Embora ele e outros trabalhadores tenham se recusado a discutir seus salários, os meios de comunicação locais relataram que o pagamento pelo trabalho de descontaminação pode chegar a
cerca de US$ 325 por dia. Ele concedeu entrevista enquanto limpava uma janela com um pedaço de papel toalha.
"Uma passada de toalha por vez, ou as partículas radioativas podem se espalhar", disse ele. "Na verdade não conseguimos ver a radiação."
De fato. Um projeto de limpeza semelhante que ocorreu no centro comunitário de Iitate no ano passado sob os auspícios do governo local não foi capaz em reduzir a radiação para níveis seguros.
Os projetos-pilotos liderados pela Taisei e os outras empresas já apresentaram alguns problemas. O governo, por exemplo, não conseguiu antecipar a relutância das comunidades em armazenar toneladas de terra retirada dos campos e das regiões contaminadas.
Alguns críticos, entretanto, argumentaram que empresas e governos locais poderiam realizar a limpeza por muito menos dinheiro e com isso criar mais empregos locais.
Alguns moradores de Iitate acabaram pedindo a ajuda de especialistas das universidades para lidar com o assunto sem ajuda de mais ninguém. Seus experimentos, segundo eles, sugerem que a descontaminação deve começar nas montanhas e nas florestas, que cobrem três quartos da área.
"Mesmo que limpem nossas casas, a radiação vai vir para baixo das montanhas e recontaminar tudo", disse Muneo Kanno, um agricultor de 60 anos de idade. Como muitos outros moradores de Iitate, ele ficou na aldeia por mais de um mês após o desastre, sem saber que as particulas radioativas tinham atingido Iitate.
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Trabalhadores em um ponto de coleta durante um esforço experimental de decontaminação em Iitate, Japão
Kanno fugiu do vilarejo em maio, mas volta nos finais de semana para experimentar diferentes métodos de descontaminação. Recentemente, ele levou Tao, o físico visitante da universidade, para uma montanha próxima para testar a eficácia da remoção de folhas mortas do chão para reduzir os níveis de radiação.
Não existe nenhum financiamento público para seu trabalho, que é normalmente mantido através de doações e dos esforços dos próprios moradores. Em uma manhã recente, cerca de uma dezena de voluntários, alguns com quase 70 anos de idade, escalaram uma montanha de neve para varrer folhas mortas e colocá-las dentro de sacos de tecido, vestindo apenas roupas normais e máscaras cirúrgicas.
"Conhecemos a terra aqui muito melhor do que as empresas de construção ", disse Kanno. "Estamos com medo que esse dinheiro esteja simplesmente sendo gasto à toa."
Por Hiroko Tabuchi
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