Primeira Pessoa: “Ninguém está preparado para o treino dos Comandos”
Comando desde 2003, cumpriu missão no Afeganistão e deu formação a candidatos à força especial mais exigente do país. No dia em que o ministro da Defesa vai ao Parlamento, um testemunho de quem fez vida nos Comandos.
Testemunho de José Carlos da Silva Guerreiro
"Fiz as provas para os comandos em 2003. Tinham aberto dois cursos, um para oficiais e sargentos e outro para pessoal contratado e para quem ia fazer a recruta. Era esse o meu caso, tinha 18 ou 19 anos e queria ir para os comandos. Lembro-me bem como tudo começou.
Era Verão, fui à inspecção, fizeram-me exames aos olhos, à audição, mas nada de muito profundo. Viram que que estava apto e disseram que me podia ter voluntariado para qualquer força especial. Mas eu queria mesmo ir para os Comandos. O meu tio tinha sido condutor dos Comandos do Ultramar, e desde pequenino que me aliciavam as suas histórias. Queria servir o país daquela maneira e escolhi fazer parte da melhor tropa especial em Portugal.
Logo para entrar, era preciso cumprir provas físicas e de cisão. As físicas passavam por fazer 10 a 12 elevações de barra, 60 e tal abdominais e fazer quase três quilómetros em 12 minutos. As provas de cisão passavam por saltar muros e poços e subir a um pórtico com quase quatro metros de altura. E todos sabíamos que bastava falhar na última para ser automaticamente desqualificado.
Passei as provas de aptidão e fui para curso de Comandos. Apanhei o curso na passagem de ano de 2002 para 2003, uma altura em que chovia a montes. Estava no centésimo segundo curso, fui para o regimento nº1 na Carregueira. Éramos para cima de 200 instruendos e após a primeira prova ficámos com menos de 100. Foram desistindo cada vez mais, uns porque não aguentaram, outros porque acabaram no hospital.
Ninguém está fisicamente preparado para aquilo. Sempre fui fisicamente muito activo: nunca deixei as minhas corridas, treinava em ginásio desde os 16 anos e joguei futebol federado. Por mais que uma pessoa se tente preparar, o treino nos Comandos é sempre mais exigente do que imaginávamos.
Há muitos momentos difíceis tanto a nível físico como a nível psicológico e, como é óbvio, tive momentos em que passei dificuldades. Mas nunca pensei desistir. Lembro-me de uma prova de sobrevivência que consistia em passar 3 ou 4 dias sem comer. Apenas nos davam água, o essencial. Sem comida conseguimos sobreviver, sem água não. Só podíamos comer o que a natureza dava: cogumelos, bolotas, figos, medronhos, tudo o que havia naquela zona.
No curso, cumprimos vários obstáculos as pistas de cordas, tiro, salvamento de um camarada, montagens e desmontagens de armas e várias estafetas. Por fim, depois de estarmos cansados e todos encharcados em água, ainda nos temos de apresentar a um oficial com a farda impecável. Um comando tanto pode ser um leão como pode dar uma flor a uma senhora.
Sempre tentei ter uma ideia clara daquilo que estava a fazer. Quando me sentia perto do limite soltava o tal grito de guerra dos Comandos (Mama Sumae, Aqui estamos, prontos para o sacrifício) e o limite expandia-se. Achamos muitas vezes que estamos no limite físico, mas não … na verdade, estamos na ronha. Os instrutores vêem isso acontecer muitas vezes - ver uns encolhidos atrás dos que estão a dar o cabedal. São cerca de 33 instruendos para 2 ou 3 instrutores, e cada um conhece os seus homens. Não ao fim de dois dias, mas ao fim de 15 dias de treino já os conhecemos fisica e psicologicamente.
Nenhum instrutor deseja o mal aos instruendos. Durante o meu curso havia um rapaz de grande porte que passou as duas primeiras etapas, a recruta e o treino complementar. Já no curso, esse rapaz desmaiava sempre que fazia a primeira prova, que é das mais duras. À primeira vez, após ir à enfermaria e verificarem que está tudo bem, ele disse que queria continuar e os instrutores deixaram continuar. Ao segundo desmaio, os instrutores já não o deixaram continuar.
No Afeganistão
O curso fez toda a diferença, especialmente fora de Portugal. Vamos fazer exercícios com outras tropas, mesmo no estrangeiro, e somos vistos como os melhores. É sempre assim. Nós treinamos para sermos os melhores que há. Ponto.
Tive essa sensação no Afeganistão, na minha altura foram três ou quatro rapazes do exército e nós. Aquilo é um teatro de guerra, ou seja, há rebentamentos em muito sítio. Estamos sempre no terreno. Íamos e saiamos das torres de comando, passávamos da torre para Cabul, fazíamos patrulhas. É esgotante, mas se não tivéssemos tido o treino, tal como aqueles que foram para lá da tropa normal, não conseguiríamos aguentar. Fomos para o Afeganistão e foi complicado sim senhora, mas é mesmo assim.
Há um episódio no Afeganistão, em 2004 ou 2005, de que não me esqueço. Uma viatura que explodiu após o detonamento de uma mina, matando o primeiro sargento Roma Pereira e fazendo alguns feridos – o condutor, o rapaz da rádio partiu os dentes, o rapaz da arma pesada foi cuspido da viatura. Aconteceu uma vez e só tínhamos cinco meses de experiência em teatro de guerra. Acredito que, sem os Comandos, aquilo teria acontecido muito mais vezes. Porque não aconteceu? Estamos bem treinados.
Como formador
Ninguém chega a Comando sem cumprir o treino e um instrutor acaba por replicar aos instruendos a sua experiência. Eu dava apoio ao curso, quem dá a instrução são oficiais e sargentos. Cada um tinha o seu estilo de ensino, mas todos nós tínhamos em comum uma vontade enorme de encontrar os diamantes e de lapidá-los. Ali não há pena nem ódio, apenas queremos ensinar o que aprendemos, da melhor maneira possível. Têm de entender que é preciso puxar os limites, tal como nós fomos puxados, tal como os do ultramar foram puxados. Nem todos os que vão para lá conseguem, mas aquilo não é para todos. Só para quem pode.
Normalmente, logo após a primeira prova percebemos quem quer realmente ser Comando. É uma prova individual fisicamente complicada, de resistência, com tiro de combate que é avaliado assim como o espírito de equipa e de ajuda. Tudo faz parte da avaliação, aliás, o instruendo está 24 horas a ser avaliado. Na farda, na maneira de agir, na maneira de ajudar os colegas. Não basta ser bom fisicamente."
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