Os 15 dias de brigas políticas que selaram o desfecho trágico na Itália
Instruções conflitantes dadas pelas autoridades à população foram determinantes para a explosão de casos de Covid-19 no país, escreve professora da UFMG
A primeira pergunta que surge ao olharmos para a Itália é por que a situação evoluiu de forma tão dramática naquele país em relação às demais economias europeias e o que podemos aprender com erros e acertos italianos para conter a crise no Brasil e na América Latina.
Quando a OMS reportou os primeiros dois casos confirmados da Covid-19 na Itália, em 31 de janeiro, já havia seis casos confirmados na França, cinco na Alemanha e um na Finlândia, todos classificados como “importados”, ou seja, contraídos no exterior. Duas semanas depois, a Itália continuava com número estável de casos confirmados (3), enquanto a Alemanha (16), a França (11) e o Reino Unido (9) lideravam os casos na Europa, todos importados. Em 16 de fevereiro, foi registrada a primeira morte na Europa, de um turista chinês em Paris.
A situação na Itália se alterou drasticamente na segunda quinzena de fevereiro. Em 1º de março, a Itália já registrava 1.128 casos confirmados e 29 mortes frente a 100 casos confirmados e duas mortes na França, 57 casos na Alemanha, 45 na Espanha e 23 no Reino Unido, todos já com transmissão local do vírus. Desde então, a Itália viu os casos e as mortes dispararem, superando o número de mortos registrados na China.
O divisor de águas da crise italiana está no Relatório de Situação nº 34, publicado pela OMS, em 23 de fevereiro. É a partir dessa data que a Itália assume a liderança de casos na Europa, criando uma trajetória peculiar e dramática de saúde pública. Não faltou quem apontasse culpados. As falhas elencadas foram desde erros no protocolo hospitalar nos cuidados do paciente número 1 à letargia do governo em iniciar medidas de isolamento social e testes em massa da população.
O mais curioso é que a Itália foi o primeiro país europeu a tomar medidas mais severas na contenção, muito antes do Relatório 34. Em 31 de janeiro, o governo do primeiro-ministro Giuseppe Conte, sem partido, suspendeu voos oriundos da China, Hong Kong, Macau e Taiwan. Logo depois, quatro governadores do norte da Itália, todos do partido de extrema direita Liga, pediram quarentena para estudantes que voltaram da China. Apesar das críticas de Conte, a medida foi posteriormente endossada pelo Comitê Italiano da Covid-19 por meio de comunicação oficial. Ao mesmo tempo, o governo central acendeu o alerta no país, com assinatura da primeira portaria de emergência reforçando controle nas áreas portuárias e retorno de cidadãos à Itália.
Nos demais países, as medidas iniciais foram bem mais tímidas que as italianas. Na Alemanha, França e Espanha, apesar dos números de infectados aumentarem diariamente, as primeiras iniciativas foram recomendações para redução de viagens à China e ações de apoio e monitoramento dos viajantes retornando de lá. Ações de contenção tiveram início apenas no final do mês, posterior ao agravamento do quadro italiano. O Reino Unido demorou ainda mais para iniciar qualquer mobilização, com o primeiro anúncio de medidas de distanciamento social feito pelo primeiro-ministro, Boris Johnson, na última sexta-feira, 20 de março.
Três elementos têm-se mostrado fundamentais para diferenciar os países na resposta à crise provocada pelo coronavírus: 1) as atitudes das autoridades públicas diante das incertezas trazidas pelo novo vírus; 2) a capacidade do governo para implementar medidas de prevenção; 3) a estrutura e competência dos sistemas públicos de saúde para atender os pacientes.
Foram as duas semanas que alteraram o curso da história do coronavírus na Itália e no mundo. Quinze dias em que autoridades em diferentes níveis de governo passaram informações contraditórias para a população, confundiram distanciamento social com exclusão e tentaram aproveitar da crise para seus propósitos políticos.
Após o governo central ter criado, em 23 de fevereiro, um cordão sanitário em torno de 11 cidades da região da Lombardia, a mais afetada, determinando as primeiras medidas de distanciamento social, Matteo Salvini, juntamente com a prefeitura de Milão, passou a defender a reabertura de restaurantes e museus. Uma campanha chegou a ser lançada com o título Milão não para, em clara contestação ao decreto central. Foram 15 dias de instruções conflitantes dadas pelo governo central de Conte e os estaduais, liderados por Salvini, antes que a Itália entrasse em completo lockdown, em 8 de março.
O caso italiano indica que a forma como as autoridades e a sociedade reagem diante de um cenário de incertezas é determinante para o desenrolar da crise. Foram as duas semanas que alteraram o curso da história do coronavírus na Itália e no mundo. Quinze dias em que autoridades em diferentes níveis de governo passaram informações contraditórias para a população, confundiram distanciamento social com exclusão e tentaram aproveitar da crise para seus propósitos políticos. Essas atitudes podem ter ofuscado os esforços do governo central no gerenciamento da crise desde os primeiros dias, colocando em xeque a própria competência do sistema de saúde das regiões afetadas.
O Brasil começou a seguir trajetória parecida, com a polarização criada na última semana entre o presidente Bolsonaro, subestimando a epidemia, e governadores e prefeitos da região Sudeste, implementando medidas severas de contenção. Em entrevista à Record, realizada no último domingo, dia 22, Bolsonaro voltou a politizar o debate, acusando os governadores e a mídia de enganar a população sobre a gravidade da situação do coronavírus, criticando as estratégias adotadas pelos estados e municípios. A falta de coordenação na construção de uma estratégia nacional pode nos levar a repetir o colapso italiano.
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