Visita de premiê leva relação China-América Latina a fase 'sem volta'
João Fellet
Da BBC Brasil em Washington
20/05/201506h07
Os acordos fechados durante a visita do premiê chinês, Li Keqiang, à América Latina nesta semana elevam a um novo patamar a presença da China na região e reduzem o poder dos Estados Unidos para influenciar políticas em países latino-americanos, segundo analistas ouvidos pela BBC Brasil.
Li iniciou na segunda-feira um giro de oito dias pelo Brasil, Colômbia, Peru e Chile. Nesta terça, após reunião com a presidente Dilma Rousseff em Brasília, os dois líderes fecharam 37 acordos em várias áreas, entre as quais infraestrutura, energia e mineração. Segundo o governo brasileiro, os acertos envolvem gastos de mais de US$ 53 bilhões (R$ 160 bilhões).
O principal investimento anunciado é uma ferrovia que ligará a região Centro-Oeste ao Pacífico, atravessando o Peru. A obra facilitaria a venda de produtos brasileiros para a China, hoje feita a partir de portos no Atlântico, mas deve enfrentar a resistência de ambientalistas e grupos indígenas por cruzar um longo trecho da Floresta Amazônica.
Outro acordo firmado entre a Caixa Econômica e o Banco Industrial e Comercial da China criará um fundo de US$ 50 bilhões (R$ 152 bilhões) para financiar projetos de infraestrutura no Brasil, cerca de cinco vezes o valor da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.
Espera-se que Li anuncie novos investimentos até o fim de sua viagem, no dia 26. Em janeiro, o presidente chinês, Xi Jinping, autoridade máxima do país, disse que Pequim investiria US$ 250 bilhões (R$ 759 bilhões) na América Latina na próxima década.
Além de ampliar a influência de Pequim na região, analistas avaliam que as ações também buscam amortecer os efeitos da desaceleração da economia chinesa, que força suas empresas a buscar lucros no exterior.
Ofensiva de imagem
Para Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, a China tenta com a visita "desfazer o argumento de que vem para explorar o continente e criar uma relação de dependência" com países latino-americanos.
Uma das principais críticas à China na América Latina é a assimetria em suas trocas comerciais com a região. Os chineses compram principalmente matérias-primas de países latino-americanas, mas lhes vendem produtos industrializados, com maior valor agregado.
Ao diversificar seus laços com países latino-americanos para além do comércio e investir em áreas como infraestrutura, diz Stuenkel, a China reforça o discurso de que não busca apenas o benefício próprio na relação, mas integrar a América Latina à economia global.
"São acões que vão tornar a China um ator político e econômico na região por muitas décadas, e depois disso será impossível cortá-la da equação".
Para Stephen Mothe, analista da Euromonitor International baseado no Rio de Janeiro, a crescente participação chinesa na América Latina reduz a influência dos Estados Unidos na região.
Ele diz que, ao passar a contar com financiamentos de bancos estatais chineses, os países latino-americanos se tornam menos dependentes de organizações mundiais que operam na órbita de Washington, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
"Os Estados Unidos passam a ter menos alavancagem para pressionar esses países a adotar as políticas que eles queiram", afirma Mothe, que morou na China por quatro anos.
Margaret Myers, diretora do programa de China e América Latina do Inter-American Dialogue, em Washington, diz que os chineses oferecem à América Latina e outras regiões um modelo alternativo aos financiamentos dos Estados Unidos e de órgãos mundiais tradicionais.
Nos últimos anos, muitos países emergentes têm recorrido a empréstimos chineses em vez de se engajar em lentas e complexas negociações com bancos multilaterais e países desenvolvidos, que costumam fazer uma série de exigências para liberar seus recursos.
Já críticos ao modelo chinês dizem que os empréstimos de Pequim são mais sujeitos a desvios e ignoram boas práticas ambientais e trabalhistas.
A oferta global de crédito chinês deverá aumentar ainda mais nos próximos anos, quando começarem a operar o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), que a China gerenciará com seus parceiros nos Brics (Brasil, Índia, Rússia e África do Sul), e o Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento (BAII), capitaneado por Pequim.
Flexibilidade ideológica
Analistas destacam outro aspecto da visita do premiê chinês. Em seu giro, ele deixará de lado aliados mais próximos de Pequim, como Venezuela, Argentina, Cuba e Nicarágua, e viajará a países com governos considerados mais moderados e identificados com os Estados Unidos.
Para Stuenkel, da FGV, a decisão busca mostrar que a China "consegue trabalhar com todos os lados" no continente.
Jaseon Marczak, vice-diretor do Adrienne Arsht Latin America Center do Atlantic Council, em Washington, lembra que três dos quatro países visitados por Li (Chile, Colômbia e Peru) integram a Aliança do Pacífico, bloco econômico lançado em 2012 e focado no comércio com a Ásia.
Os três países também integram as discussões para a criação da Parceria Trans-Pacífica (PTT), inciativa econômica liderada pelos Estados Unidos e que exclui a China. Para Marczak, ao visitar Colômbia, Chile e Peru, o premiê chinês fortalece a posição de Pequim nesses países e no Pacífico latino-americano, contrapondo-se a eventuais riscos da PTT aos interesses chineses.
Mothe, da Euromonitor International, diz que os movimentos de Pequin na América Latina também são uma resposta às ações americanas na vizinhança chinesa. "É como se eles dissessem: se vocês não respeitarem o nosso quintal, não respeitaremos o seu".
Já Stuenkel, da FGV, avalia que a China por ora não tem interesse em desafiar os Estados Unidos e fará de tudo para evitar confrontos com Washington, já que teria muito a perder com um conflito.
E como os Estados Unidos têm reagido às ações mais recentes de Pequim na América Latina?
Para Myers, do Inter-American Dialogue, a expansão do modelo chinês de financiamentos e o possível enfraquecimento das organizações multilaterais arquitetadas por Washington preocupam autoridades americanas.
Por ora, no entanto, ela considera que a reação do governo americano às ações chinesas na América Latina tem sido discreta.
Um dos poucos pontos de atrito é a construção do Canal da Nicarágua, maior obra de engenharia do mundo, financiada por um empresário chinês.
A obra está em fase inicial e pretende ligar o Atlântico ao Pacífico, tornando-se uma alternativa ao Canal do Panamá. Autoridades americanas afirmaram que falta transparência à obra e cobraram o governo nicaraguense a sanar preocupações com questões ambientais e fundiárias.
Mas de maneira geral, diz Mayers, "o que ouvimos do Departamento de Estado (americano) é que o que é bom para a América Latina é bom para todo o hemisfério".
Para Marczak, do Atlantic Council, as ações chinesas na América Latina não ameaçam os interesses dos Estados Unidos diretamente. "É importante que a América Latina diversifique sua economia e se desenvolva, e os investimentos chineses podem ajudá-la a chegar lá".
O problema, diz ele, "é como esses investimentos serão feitos, o quão transparentes serão e se serão bons para as pessoas que deles precisam".
"Nos últimos anos a América Latina teve importantes avanços em transparência e democracia em resposta a demandas populares, e seria preocupante se os acordos com os chineses fizessem a região retroceder nesses campos."
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