IREITOS HUMANOS
Destruição made in Brasil
País fabricou bombas que o governo do Sri Lanka usou em massacre condenado pela ONU. Munição nacional abastece quase metade das nações com conflitos étnicos e religiosos
Solano Nascimento
Especial para o Correio
No fim de 2008 e no primeiro semestre do ano passado, as Forças Armadas do Sri Lanka realizaram a ofensiva final e mais sangrenta contra os separatistas tâmeis do Norte do país, produzindo o que organizações internacionais consideraram uma das maiores crises humanitárias de 2009. Por conta do ataque, o governo do Sri Lanka foi acusado pela Organização das Nações Unidas (ONU) de cometer crime de guerra e violar direitos humanos. “Os aviões chegavam jogando bombas, e nós corríamos para os abrigos”, conta Karmenkam Thaviththra, uma adolescente franzina e tímida, de 14 anos, que morava em Kilinochchi, cidade semidestruída pelos bombardeios, e hoje vive em um acampamento para refugiados. “A gente caminhava entre os corpos, alguns sem mãos, outros sem cabeça.” O Brasil contribuiu para a tragédia.
Em janeiro do ano passado, 116 toneladas de bombas brasileiras foram vendidas para a Força Aérea do Sri Lanka. Feitas em aço forjado, carregadas de explosivos e com peso variando de pouco mais de 100kg até uma tonelada, essas bombas têm o poder de destruição ampliado pela presença de duas espoletas, o que garante duas explosões. Cruzamento feito pelo Correio entre dados oficiais das exportações e mapas mundiais de conflitos étnicos e religiosos mostra que a venda não foi uma exceção. Nos últimos 10 anos, o Brasil exportou, por U$ 17,8 milhões, um total de 777 toneladas de bombas, foguetes, mísseis e outros tipos de munição para países nos quais esses embates armados já mataram 1,3 milhão de pessoas.
Das 18 nações que no ano passado registraram os conflitos, sete são abastecidas por empresas brasileiras, que precisam de autorização do governo para fazer essas exportações. Questionado pela reportagem sobre o destino das bombas compradas do Brasil — no seu escritório num quartel de Colombo, capital do país —, o porta-voz das Forças Armadas do Sri Lanka é claro. “Não foi somente do Brasil, mas também de outros países que nos proveram com equipamentos, bombas”, diz o brigadeiro Udaya Nanayakkara. “Nós usamos contra os terroristas.”
Lados sanguinários
O conflito no Sri Lanka opôs o governo, representante dos interesses da maioria cingalesa — que equivale a 74% da população, majoritariamente budista —, e o grupo Tigres de Libertação do Tâmil Eelan (LTTE, na sigla em inglês), que defendia a criação de um estado autônomo no Norte do país para abrigar os 18% de tâmeis, quase todos hinduístas. A violência entre os dois grupos se agravou a partir de 1983, quando o LTTE emboscou e massacrou 13 soldados cingaleses, em Jaffna, no Norte. Como resposta, cingaleses do Sul saíram às ruas incendiando casas e assassinando centenas de tâmeis.
Os anos que se seguiram foram marcados por breves temporadas de cessar-fogo e longos períodos de enfrentamentos. Os dois lados usaram sequestros, torturas, execuções, desaparecimentos e perseguições como táticas de guerra. Corpos eram incinerados, jogados ao mar ou esquartejados em praça pública, para servirem como exemplo. Estima-se que entre 80 e 100 mil pessoas morreram por causa do embate. No livro Bandeiras Pálidas (Companhia das Letras), um romance baseado em fatos reais, o escritor Michael Ondaatje, nascido no Sri Lanka, escreveu: “A única esperança era que as partes em conflito terminassem por se destruir mutuamente”.
Não foi o que ocorreu. No fim de 2008, as Forças Armadas avançaram sobre cidades e vilarejos que eram total ou parcialmente controlados pelos separatistas. O governo ignorou apelos de países da Europa e de organismos internacionais por um cessar-fogo e no final de maio de 2009 anunciou a derrota do LTTE. Nesse momento, 250 mil pessoas estavam confinadas em campos de refugiados. O número equivale a 1,2% da população. É como se, no Brasil, todos os moradores do Acre, de Rondônia e de Roraima virassem refugiados. O porta-voz dos militares afirma que o governo fez questão de não causar vítimas civis na ofensiva. “Quando sabíamos que em alguma área havia civis, suspendíamos o fogo para eles saírem”, diz Nanayakkara. Não é o que indica uma incursão pelo Norte do país, mesmo meses depois do fim do conflito.
A cidade de Vavuniya, uma espécie de portal da região, permanece intocada, mas seus acessos são vigiados por centenas de soldados, a maioria deles protegidos por trincheiras. Ao seguir pela rodovia A-9, que corta o Norte do país, chega-se primeiro a uma barreira militar que exige autorização escrita de passagem, fornecida pelas Forças Armadas em Colombo. Cerca de 40km depois da barreira, começam a ser vistos os sinais dos bombardeios. Uma das raras igrejas cristãs da região perdeu o teto, casas tiveram aberturas e paredes destruídas nos ataques, muros foram derrubados.
Hospitais atingidos
É, no entanto, em Kilinochchi que aparecem as grandes marcas da ofensiva do governo. A cidade fica no meio do caminho entre Vavuniya e Jaffna, que no auge do movimento separatista chegou a funcionar como capital do estado autônomo. Cerca de 80% de todas as edificações de Kilinochchi mostram algum sinal dos bombardeios, e metade das moradias atingidas foi danificada a ponto de não poder mais ser habitada. Pequenos edifícios de dois andares ficaram sem a parte superior, e a caixa d’água da cidade foi derrubada e inutilizada. A cidade segue sob ocupação de militares, que tentam impedir visitantes de fotografarem os prédios destruídos.
O Hospital Geral de Kilinochchi improvisou instalações em uma escola de Ydayarkaddu para tratar dos feridos no confronto. As instalações foram bombardeadas no começo do ano passado. “Não deu tempo de tirar os doentes, e uns 50 morreram”, conta um morador da região, implorando, quase chorando, para não ser identificado, pois viu conhecidos sofrerem represálias por dar informações incômodas ao governo. O bombardeio matou também uma enfermeira e dois auxiliares. Pelo menos outros dois hospitais foram atacados na região, com dezenas de vítimas.
O nordeste do país, onde, como no norte, há predominância de tâmeis, também foi alvo da ofensiva. Nadrasa Sajithan, 14 anos, morador de Mullaithivu, aprendeu com traumas que tinha de se esconder durante os bombardeios. “Dois tios meus saíram do abrigo para ver a casa e a plantação de coco, e as bombas caíram sobre eles”, relata o adolescente.
A exemplo do governo, criticado por matar inocentes que não pertenciam ao grupo separatista, o LTTE também foi acusado pela Anistia Internacional, Human Rights Watch e ONU de crimes de guerra por usar moradores como escudos humanos. A ONU estima que mais de 7 mil civis tâmeis foram mortos na investida das Forças Armadas do Sri Lanka. Em um acampamento de refugiados nos arredores de Vavuniya, as irmãs Thamapalm Pushparani, Basaran Selvarani e Geeva Vijayarani contam que perderam os maridos e uma cunhada nos bombardeios. “A vida está difícil”, diz Pushparani. As três vendem farinha para alimentar os sete órfãos que as bombas produziram na família.
DIREITOS HUMANOS
Indústria releva conflitos
Lista de países importadores com embates armados quintuplicou no governo Lula. Se o Brasil não vender, outros venderão, diz o Itamaraty
Solano Nascimento
Especial para o Correio
Para as dimensões do setor bélico, a ETR Indústria Mecânica Aeroespacial é uma empresa pequena. Instalada em São José dos Campos (SP), tem três dezenas de funcionários e menos de meia dúzia de clientes fixos no exterior. Mesmo assim, exporta cerca de 70% do que produz, e só em uma venda de bombas para a Força Aérea do Sri Lanka, no ano passado, faturou de U$ 1,1 milhão. Rubens Jacintho, presidente da empresa, não procurou saber o destino que o governo cingalês deu às bombas. “Entregamos o produto conforme o especificado”, diz o empresário. “Não posso julgar o que um país vai fazer com ele.”
É o pensamento-padrão no setor. Ainda que hoje seja comum empresas de diversas áreas selecionarem fornecedores para evitar a compra de matéria-prima resultante de devastação florestal ou trabalho infantil, por exemplo, os exportadores de munição brasileira não cogitam filtrar o outro extremo da cadeia, os compradores. O superintendente Comercial da Indústria de Material Bélico do Brasil (Imbel) é claro ao dizer que a existência ou não de embates no país importador não é analisada. “Efetivamente nós não vemos esta questão de conflito interno ou externo”, afirma o coronel Haroldo Leite Ribeiro.
A empresa é a única estatal da lista de exportadores para países em conflito. Subordinada ao Ministério da Defesa e com sede em Brasília, vendeu em 2003 e 2005 munição de grosso calibre, destinada a destruir tanques, para a Indonésia. Naquela época, o governo indonésio enfrentava o Movimento Aceh Livre em um embate que produziu 12 mil mortos.
Também instalada em São José dos Campos e conhecida pela produção de foguetes para uso militar, a Avibras Indústria Aeroespacial exportou no começo da década para Angola — onde enfrentamentos com raízes econômicas, étnicas e religiosas mataram 1 milhão — e agora foi autorizada a negociar munições com a Índia. Por e-mail, Sami Hassuani, presidente da empresa, ressalta que o objetivo dos clientes internacionais é “dar segurança aos seus cidadãos para que possam desempenhar suas funções, manter a ordem e o progresso da nação.” A União comprou no começo do ano passado cerca de 25% das ações da Avibras para tentar evitar o fechamento da empresa, que passava por uma grave crise.
A Mectron Engenharia, Indústria e Comércio, também de São José dos Campos, abastece Israel e o Paquistão, um de seus grandes compradores de mísseis. Por meio de sua assessoria de comunicação, a empresa informa que não se pronuncia sobre o assunto.
Regras da ditadura
Com sede em Ribeirão Pires (SP), a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) é a maior exportadora de munição e vende para cerca de 40 países, entre os quais há seis com conflitos étnicos e religiosos. É o caso das Filipinas, país no qual enfrentamentos de conotação religiosa já produziram 97 mil mortes. “A gente segue a regra do governo, cem por cento”, afirma Andreas Kripzak, diretor de Exportações da CBC.
A regra do governo é a Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar (Pnemem), foi definida em 1974, durante o regime militar, e alterada em 1990, no governo de Fernando Collor de Mello. Em 2002, o Ministério da Defesa criou um grupo de trabalho para atualizar a política, o que não foi feito até hoje. O texto da política é claro sobre a intenção do Executivo de estimular as exportações e afirma que diplomatas e adidos militares brasileiros devem se esforçar para isso.
Na análise para liberação de exportações, o Ministério da Defesa é encarregado da avaliação técnica. O papel do Itamaraty está descrito no item 12: “Ao Ministério das Relações Exteriores compete pronunciar-se quanto à conveniência de cada operação de exportação de material de emprego militar do ponto de vista das relações exteriores do Brasil”. Essa avaliação leva em conta embargos da ONU, a situação interna e externa dos compradores e, no ano passado, gerou o veto a exportações para países como Sudão, Ruanda, Geórgia e República Democrática do Congo.
A existência de conflito armado, de natureza étnica e religiosa, não é um empecilho para a venda, confirma Norton Rapesta, diretor do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty. “Isso é analisado caso a caso”, afirma. “Vamos deixar de ser vestais, se o Brasil não vender, outro vai vender”. No caso do Sri Lanka, Rapesta lembra que a condenação da ONU foi posterior à ofensiva do importador das bombas brasileiras: “No momento em que você autoriza a venda, você não tem a informação ‘nós vamos comprar armas para dizimar civis’”.
Mandato petista
Ainda que a lista de países com enfrentamentos étnicos e religiosos não tenha variado muito, o total de clientes desse tipo abastecidos pelo Brasil cresceu na década. De 2000 a 2002, no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, em média um país com esses conflitos comprou munição brasileira a cada ano. No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2006, a média anual subiu para três países. Neste segundo mandato, já são cinco nações com embates abastecidas por ano. Em parte, isso reflete o crescimento nas exportações de munições de uma maneira geral, cuja média do último triênio equivale ao triplo da registrada ao final do governo de Fernando Henrique.
Apesar de terem crescido e serem importantes para algumas empresas, as vendas a países com conflitos étnicos e religiosos são ínfimas se analisadas dentro da balança comercial brasileira. No ano passado, do total de U$ 147,3 milhões de munições exportadas, apenas 2% saíram de nações com esses embates. E toda a munição brasileira vendida para outros países, pacificados ou não, equivale a menos de 0,1% das exportações nacionais.
Entregamos o produto conforme o especificado. Não posso julgar o que um país vai fazer com ele”
Rubens Jacintho, presidente da ETR Indústria Mecânica Aeroespacial, que exporta bombas para o Sri Lanka
Ocultação de dados
Os ministérios da Defesa e das Relações Exteriores não divulgam grande parte das informações relacionadas à exportação de munições. A pasta do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic), além de também sonegar dados, registra em tabelas disponíveis em seu portal a venda de bombas, mísseis, foguetes e outras munições como sendo de “cartuchos” para espingardas e carabinas de cano liso, armas com frequência associadas à caça e a clubes de tiros.
Procurado pela reportagem, o deputado Edson Duarte (PV-BA) fez quatro requerimentos de informações ao Mdic sobre exportação de munições. O ministério informou valores, países de destino e peso do material vendido — grande parte dos dados usados nesta reportagem —, mas não forneceu nomes de exportadores, de importadores nem o tipo de munição comercializada. Alegando sigilo de contratos, exportadores também se negam a dar informações sobre vendas de munição para outros países.
A assessoria de Comunicação do Mdic explicou que usa no portal a denominação “cartucho” para não revelar o tipo de munição exportada. A Defesa informou em nota que dados sobre vendas ao exterior de bombas, mísseis e foguetes “constituem informações de caráter reservado”, e o Itamaraty reiterou, por meio da assessoria de Imprensa, que detalhes dessas exportações não são públicos.
“Pode ser que não interesse ao comprador que se saiba de quem ele está comprando”, afirma Norton Rapesta, diretor do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty. As 19 páginas da Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar não têm nenhuma referência à necessidade de sigilo. (SN)
Negociação com o Irã
Em comunicado de 19 de outubro do ano passado, o Itamaraty autorizou a CBC a negociar a venda de munições para o Irã, presidido por Mahmoud Ahmadinejad, suspeito de tentar produzir ogivas atômicas. O Brasil é um dos maiores opositores à ideia de sanções comerciais ao Irã. A solicitação tinha sido feita pela CBC um mês antes, mas a venda é questionada até dentro da empresa. “Eu, particularmente, não exportaria um grama de nada para o Irã”, diz Gilberto Salm, consultor de Exportações da CBC. Ele ressalta estar dando sua opinião pessoal. Andreas Kripzak, diretor de Exportações, se limita a informar, por e-mail, que os pedidos de autorização da CBC “seguem estritamente” as regras do governo.
“Uma coisa é exportar munição de canhão, e outra, munição de emprego policial-militar”, justifica Norton Rapesta, diretor do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty. Ele garante que o Brasil só exporta para países “legitimamente e democraticamente constituídos”. Confrontado com a autorização dada também em 2009 para a CBC negociar munições com a Líbia, do ditador homicida Muammar Gaddafi, Rapesta reflete por alguns segundos. “O governo da Líbia é reconhecido internacionalmente”, diz. “Você acha que é só o Brasil que tem negócios com a Líbia?” (SN)