Revista Brasileiros
MARINHA
Entre céu e mar
Eduardo Hollanda
Brasileiros acompanha uma das mais tradicionais operações navais multinacionais realizada nas Américas, a Unitas Gold, envolvendo 27 navios de oito países. Idealizada nos anos 1950, em plena Guerra Fria, começou a ser realizada no início da década seguinte, como parte da estratégia dos Estados Unidos para proteger o continente dos submarinos soviéticos e garantir o alinhamento dos demais países americanos à sua política externa. Hoje os “alvos” são outros e incluem o combate ao terrorismo e a uma das ameças à navegação moderna: a velha pirataria.
Manhã do dia 23 de abril na Base Naval de Mayport, na Flórida, na foz do rio St. John, divisa entre a Flórida e a Geórgia. Um a um, 18 navios das marinhas dos Estados Unidos, Alemanha, Peru, México, Colômbia, Chile, Canadá e Brasil desatracam dos vários cais da base norte-americana e rumam para o Oceano Atlântico, através do estreito canal de saída do porto. Vai começar uma das mais tradicionais operações navais multinacionais das Américas, a Unitas Gold, que completa 50 anos de existência. A bordo da fragata brasileira Constituição, um veterano, mas ainda muito eficiente navio de guerra brasileiro, que começou a operar em 1978, a reportagem da revista Brasileiros vai, durante 12 dias, acompanhar todo tipo de manobras navais, envolvendo nada menos que 27 navios e submarinos de todos os tipos. O roteiro inclui desde o tiro real, com canhões e mísseis, e vários tipos de alvos – aéreos, rebocados no mar e até o afundamento de um destróier norte-americano desativado há alguns anos –, até manobras coordenadas entre os navios, incluindo, evidentemente, o necessário reabastecimento de combustível em alto mar. A guerra antissubmarina também está no programa e os navios de superfície vão encarar quatro adversários perigosos, os submarinos convencionais Tikuna, do Brasil, e Corner Brook, do Canadá, além dos nucleares Newport News e Norfolk, dos EUA, em exercícios de ataque e defesa, valendo tudo. A parte final da Unitas será uma simulação de guerra entre dois países fictícios, um favorável ao Ocidente (semelhante ao Iraque) e outro inimigo, estimulador do terrorismo, entre outras atividades hostis (com todo o jeito do Irã), com alguns navios da frota atuando como “inimigos”. Essa batalha, que vai se desenvolver nos três últimos dias de manobras, não terá tiro real, mas procura ficar o mais próximo possível da realidade. O primeiro dia é quase todo destinado a uma manobra entre 18 navios, que terão de navegar, em formação de três fileiras, a 200 metros uns dos outros. Uma operação lenta – afinal, fazer manobras com 18 navios de tamanhos diferentes, pertencentes a marinhas tão diversas, é uma tarefa difícil.
A coordenação da operação é realizada pelo Mesa Verde, o mais moderno navio da Marinha dos EUA, da chamada classe San Antonio, a primeira projetada com tecnologia especialmente desenvolvida para as necessidades do século XXI. Além de um navio de comando, o Mesa Verde pode ser usado para o transporte de tropas, operações de desembarque e tem capacidade stealth, de se tornar invisível aos radares, apesar de seus mais de 200 metros de comprimento. Terminada a parte, digamos, mais festiva, começa o trabalho para valer. A frota se divide em dois grupos com nove navios cada, que deverão cumprir as missões de um alentado caderno de atividades até o dia 4 de maio, quando haverá o regresso a Mayport. Os exercícios começam já na noite do dia 23 e prosseguem madrugada adentro. Afinal de contas, se as manobras são para simular operações de guerra naval, não há diferença entre dia e noite. Isso faz com que o regime de turnos seja extremamente apertado – na Constituição, a tripulação se divide em três grupos, que se revezam de quatro em quatro horas. Em suma, tem sempre gente trabalhando e cumprindo missões de combate.
Os dois jornalistas a bordo, o da Brasileiros e o do Alide, site com sede no Rio de Janeiro especializado na cobertura de temas militares, cumprem a mesma rotina, acompanhando todas as manobras e seguindo o ritmo de trabalho da tripulação, dormindo quando é possível.
Já que a ideia é treinar os navios e as tripulações em situações de guerra, o tiro real começa logo no dia 24, contra um alvo aéreo rebocado por um Learjet. Navegando em linha, cada navio tem sua oportunidade de tentar acertar o alvo, que passa em alta velocidade.
Como canhões e mísseis são controlados por radar e os responsáveis pelo tiro estão monitorando tudo em telas de computador, dentro do Centro de Operações de Combate (COC), vive-se uma situação quase surreal. Enquanto no convés o canhão dispara, ensurdecedor como nos velhos filmes de combates navais, no COC tudo acontece nos monitores e nas imagens de TV. Apenas o tremor e o barulho (ligeiramente menor) lembram a todos que não se trata de um tipo de videogame e sim de armamento de verdade.
Os exercícios de tiro real – contra alvos rebocados no ar, uma espécie de avião não-tripulado, e contra alvos rebocados no mar – prosseguem por mais dois dias. Os ouvidos já mantêm um zumbido constante, por causa do barulho dos canhões, que disparam até de noite. Na Constituição o clima é de comemoração, pois o navio brasileiro teve um dos mais elevados índices de acerto nos tiros.
Responsável direto pela façanha, o capitão-de-corveta Pablo Moreira Porchera, de 33 anos, oficial encarregado do armamento e do controle dos canhões da Constituição, garante que o segredo da precisão do tiro começa antes de o navio ir ao mar. “Com a fragata ainda nas docas do Rio de Janeiro, fizemos todo o ciclo de alinhamento dos radares, dos sensores e dos canhões. Como os radares de direção de tiro têm câmeras fixas, é preciso um ajuste perfeito para que o tubo do canhão e a câmera do radar enxerguem o mesmo ponto”, afirma. Depois dessa fase, a fragata testou se tudo estava certo em exercícios de tiro real nas Ilhas dos Alcatrazes, no litoral norte paulista, seguindo, então, para os Estados Unidos. “Tínhamos confiança no trabalho técnico feito e no treinamento do pessoal. E deu certo”, comemora o comandante Pablo.
No dia 26, é hora dos exercícios de ataque e defesa contra os submarinos. São três, o Tikuna, o Corner Brook e o Newport News, prontos para deixar a frota de superfície preocupada. Durante cinco horas, os navios, divididos em dois grupos de nove, usam as técnicas mais avançadas e os equipamentos mais modernos para tentar detectar o inimigo submarino. Tudo em vão.
O Tikuna, de projeto alemão, mas construído no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, comandado pelo capitão-de-fragata Nelson da Rosa,
se dá ao luxo de penetrar na formação circular dos navios, mergulhando a 250 metros de profundidade, por baixo da fragata chilena Almirante Blanco .
Os submarinos do Canadá e dos EUA também conseguem escapar das buscas sem serem detectados. No dia 28, volta-se ao tiro real, agora contra um navio de guerra americano desativado, o destróier Connolly. É uma festa. Navegando em linha, fragatas e destróieres se sucedem, dando tiros de canhão e lançando mísseis. Novamente a Constituição – que, apesar de seus 31 anos e depois de uma extensa modernização, se mostra um navio do século XXI – tem um índice de acerto excepcional. Atingido pelas balas de vários navios e pelos mísseis de destróieres dos EUA e de uma fragata alemã, o Connolly resiste e só vai ao fundo depois de bombardeado por aviões americanos.
A fase final das manobras, sempre realizadas a mais de 200 milhas do litoral dos EUA, em condições de mar excepcionais, é uma simulação de uma crise internacional. Tem de tudo na simulação. Ameaças terroristas por parte do país inimigo, bloqueio naval imposto pelas forças de uma coalizão multinacional, iminência de ataques navais, desembarque de tropas de fuzileiros navais e, finalmente, a guerra total, com troca de tiros virtuais entre os navios do país inimigo e os da coalizão. A Constituição, por exemplo, se envolve em uma ferrenha batalha naval com um dos navios inimigos – um moderno destróier da classe Arleigh Burke, a linha de frente da Marinha norte-americana, mas simulando ser um navio menos poderoso – e, no final, mesmo atingida, é declarada vencedora, pois causou danos maiores ao oponente.
A bordo, se comemora que os tiros foram virtuais. No final, as forças da coalizão e do país partidário do Ocidente vencem a guerra contra o inimigo mais fraco.
Para o capitão-de-mar-e-guerra Jefferson Salomão Pires, que chefiou o Estado Maior embarcado na Constituição, a própria presença de um grupo de oficiais a bordo da fragata para desempenhar, em rodízio com outros navios, o comando das operações da Unitas foi um dos pontos positivos da atuação brasileira. “Isso permitiu que o comandante da fragata pudesse se concentrar na operação do seu navio. E o desempenho excepcional nos exercícios de tiro real e nas manobras de combate efetuadas com precisão refletiram essa opção feita pela Marinha”, afirma. O comandante Jefferson destaca ainda a importância dos exercícios específicos de combate à pirataria, terrorismo e tráfico, com a simulação de abordagem por equipes especiais a navios suspeitos. “As chamadas manobras de crise são pouco praticadas no Brasil e, desse modo, nossa presença na Unitas Gold ficou valorizada”, afirma.
No dia seguinte, depois de tantos combates e exercícios, o regresso a Mayport. Mas antes, para concluir, uma parada naval, diante da praia de Pontevedra, em Jacksonville, na Flórida, com a participação de mais de 20 navios, comemora o sucesso da Unitas Gold. Os jornalistas voltam para casa. A Constituição, comandada pelo capitão-de-fragata Marcos Sertã, um carioca torcedor fanático do Fluminense, ainda iria participar de manobras na Colômbia, antes do regresso ao Brasil, depois de mais de dois meses no mar. O comandante da fragata, capitão-de-fragata Marcos Sertã, creditou o bom desempenho de seu navio ao treinamento e dedicação da tripulação. “O equipamento moderno sozinho não basta, é preciso ter pessoal capacitado, treinado e motivado para fazer bom uso da tecnologia”, afirma.
Essa dedicação da tripulação foi posta à prova quando o navio, depois de 70 dias em missão no mar, que incluiu, além da Unitas Gold, manobras navais no Caribe, junto com a Marinha colombiana, foi enviado no dia 4 de junho do porto de Salvador (última escala antes do regresso ao Rio de Janeiro) para participar das operações de busca e resgate das vítimas e dos destroços do Airbus da Air France que se acidentou no Oceano Atlântico. “O pessoal estava cansado, depois de mais de dois meses operando no mar, em manobras exigentes. Mas a nova missão que nos foi designada serviu como motivação extra. Foi muito importante para mostrar à sociedade a importância da Marinha”, afirma Sertã. O resultado foi a fragata ter completado mais 17 dias de mar, até finalmente chegar ao Rio no dia 21 de junho, depois de 89 dias fora de sua base.