O antiamericanismo como ideologia
Não raro, terminamos uma graduação, fazemos mestrado e doutorado,
e continuamos desinformados, achando que a nação mais poderosa
do planeta é formada por uma sociedade inculta
Paulo Ghiraldelli Jr
é filósofo
http://www.ghiraldelli.pro.brA noção de ideologia que as esquerdas marxistas usavam, ao menos antes de Antonio Gramsci, não era a de “concepção de mundo”. Havia toda uma explicação da mercadoria, do fetichismo e da reificação, aliás, muito interessante, que estava na base do que seria a ideologia em nossa sociedade. Mas, no frigir dos ovos, a noção de ideologia era a de “falsa consciência”.
Ideologia, no limite, era o que nublava a visão de todos. Pois bem, se assim é, acho que podemos utilizar tal noção, com algum jogo de cintura, para o antiamericanismo que alimenta alguns cérebros de escolarizados no Brasil.
O escolarizado tem a chance de ver muito mais da cultura americana do que aquilo que ele quer ver ou é ensinado a ver por intelectuais que, por razões diversas – inclusive comerciais –, não querem sair de seus dogmatismos. Mas ele não vê. E se vê, diz que não vê.
Quando um moço ou uma moça de 17 ou 18 anos entra no curso de ciências sociais ou de filosofia, por exemplo, da USP, ele já ganhou um bocado de idéias antiamericanas no cursinho, e é o que possui para “encontrar sua turma” na Universidade estatal.
O professor do cursinho que destila algum antiamericanismo assim age pela razão de que é um modo de, estando em uma estrutura um pouco endurecida, ter a sensação de que pode exercer um mínimo de rebeldia.
Na Universidade, diante de uma mudança brusca de ambiente e de projetos de vida, o estudante jovem tem facilidade de assimilar os discursos que se aproximam daquilo que ele ouviu dos “professores críticos do cursinho” ou do “colégio”.
Então, o discurso antiamericanista o “integra” no ambiente universitário – ele não se sente um “deslocado” ou, como se dizia no passado, um “alienado”.
Além disso, ele pensa, por exemplo, coisas assim: “mas se aquela professora, tão erudita, fala mal dos EUA, ela deve estar certa.” E daí para diante, adeus ao pensamento verdadeiramente crítico.
Ele vai seguir a tal professora erudita. Ele tem o conforto de que ela não é do PSTU, que ele condena, pois são “malucos”, mas ele acredita que ela também sairia na rua com uma faixa “Queremos o Exército Brasileiro Fora do Haiti” (do PSTU) ou coisas assim.
Mas nem todos são antiamericanos por razões desse tipo. Há razões que se não são mais sofisticadas, ao menos são um pouco mais complexas.
Alguns não enxergam outra coisa por razões de ressentimento. Afinal, é duro ver que se é subdesenvolvido e que o desenvolvido, aquele que está acima de nós e que gostaríamos de tomar como espelho, comete crimes tão bárbaros quanto os nossos.
Gostaríamos de ver os EUA como um Império do Bem, como ele se apresenta nos filmes em que os americanos derrotam os nazistas. Não gostaríamos de ver os EUA como um país que faz algo que nós, os subdesenvolvidos, fazemos.
Por exemplo, gostaríamos que o Vietnã não tivesse sido o espelho do que fizemos com o Paraguai, naquela guerra em que nossos soldados mataram crianças, estupraram meninas e atiraram em velhos. Mas é. Então, ficamos tristes. Pois podemos nos perdoar, pois afinal nós somos incultos e subdesenvolvidos, mas não podemos perdoar os que são e dizem ser mais desenvolvidos que nós.
Há até um mecanismo psicológico de defesa, para ainda encontrar salvação. Os EUA fizeram o Vietnã e agora não estão sabendo lidar com o Iraque; então, pensamos assim: são desenvolvidos tecnologicamente, não são desenvolvidos “mentalmente”.
A filosofia, as artes e a cultura em geral ficam para a Europa, segundo esse nosso pensamento reconfortante. Assim, todas as vezes que alguém mostra que para a guerra no Afeganistão e para a invasão do Iraque todos os países ricos contribuíram, inclusive com tropas, fingimos que não escutamos isso, que não é verdade.
Pois os americanos precisam ser os culpados e tem de ser maus e, para tal, para serem maus, tem de ser burros – é assim que os ideologizados pensam. Colocam a Europa no pedestal da cultura e, então, não aceitam que ela seja tão responsável quantos os EUA pelo que ocorre no Iraque.
Há um tipo de iluminismo de “baixo clero” em quem advoga isso, que o faz associar a cultura espiritual à bondade e a tecnologia à maldade. Isso nos ajuda a nos manter antiamericanos.
É claro que isso tudo é ideológico na base, pois o maior engodo, nesse caso, é associar os EUA a um país sem cultura erudita ou em segundo plano frente aos europeus. E mais ideológico ainda é achar que todos esses erros que levam, por exemplo, para a guerra, tenha a ver com “os americanos”, como se todos os estadunidenses concordassem com o governo que possuem atualmente.
O caso do Vietnã ainda é um elemento que explica muita coisa. Ao menos para a minha geração, que ainda possui alguns cabeças duras antiamericanos, o tema do Vietnã deveria ter ensinado algo. Mas parece que não ensinou.
Vemos o Vietnã, mas nos recusamos a entender corretamente como é que a guerra acabou. Vários da minha geração acham que acabou por causa de que os comunistas venceram. Mas não foi assim. Ela acabou por causa do povo americano, principalmente dos jovens. A guerra do Vietnã foi perdida “em casa”.
Ou melhor, foi ganha, pois poderia ter sido ainda pior. Nunca conseguimos entender os EUA, pois tomamos Coca Cola, vamos no McDonalds mas nos recusamos a olhar os EUA por dentro, nos recusamos a olhar para a cultura americana enquanto a cultura mais auto-crítica do mundo.
E aí, ao invés de assistirmos com olhos críticos o que o cinema americano fez sobre o Vietnã, como o “Franco Atirador” (The Hunter) por exemplo, preferimos achar que o filme é ... francês! Que se trata de uma crítica européia aos EUA. E com tudo o mais é assim: não lemos a filosofia deles, a literatura, etc. Achamos que sabemos tudo.
E, não raro, terminamos uma graduação, fazemos mestrado e doutorado, e continuamos desinformados, achando que a nação mais poderosa do planeta é formada por uma sociedade inculta.
Mesmo que essa sociedade tenha as maiores e mais livres Universidades do mundo, os maiores jornais, o maior número de livrarias, o maior número de lançamento de romances de boa qualidade do mundo; bem, tudo isso não faz os cabeças duras mudar de idéia.
Mesmo que na avaliação da Unesco os EUA, hoje, com mais de 50% da sua população – que não é pequena – na Universidade, consiga ultrapassar os europeus em vários quesitos de performance intelectual (a interpretação de textos é uma delas!), ainda assim achamos que eles estão montados sobre a ignorância.
“Não são críticos” – nos ensinam os professores afrancesados e, infelizmente, carcomidos das áreas de ciências humanas e filosofia de nossas Universidades estatais e, também, em muitas particulares.
Não conseguimos engolir filmes autocríticos americanos, pois eles mostram o que não suportamos: a alta capacidade da cultura americana de rever seus valores e, no entanto, não subverter a democracia. Isso agride o senso comum nosso, dogmatizado.
Uma parcela grande de nossa esquerda, pensa assim, de modo dogmático. Os que não pensam, tem medo de dizer que não pensam assim e serem tomados como “de direita”, e então perderem “seu público”.
Até mesmo intelectuais que passam por sofisticados, escorregam em algum momento, e se revelam antiamericanos, ou no mínimo desinformados sobre o que é viver nos EUA e o que é o trabalho lá, o povo de lá etc. É incrível como isso existe até mesmo no meio jornalístico!
Precisamos reverter isso. Deveríamos começar a nos perguntar coisas do tipo: como que Monteiro Lobato, mesmo tendo simpatias pelo comunismo, era um “amante da América”.
Ou então: “como que americanistas como Anísio Teixeira foram os que ergueram nossas principais instituições de pesquisa em educação?” E ainda: como que Paulo Freire é lido nos EUA, tendo seu Pedagogia do Oprimido alcançado lá sua vigésima edição, e aqui no Brasil vivemos inventando “novos teóricos” (agora vigostikianos, não é?) para nos ensinar a alfabetizar?
Quando pudermos olhar para os brasileiros que não foram anti-americanos e vermos o quanto contribuíram para nossa pátria, iremos entender o que há de profundamente errado com a ideologia um pouco imbecil que andamos espalhando entre os nossos jovens, contribuindo para o que temos visto por aí de analfabetismo político.