Vitória sobre a morte!
Fui escalado na última hora.
Mas não seria o comandante das operações naquele dia. Na mesma semana, havia estado por duas vezes na Ladeira dos Tabajaras, onde quase fora alvejado por “fogo amigo”. O Major Penteado me garantira que eu deveria apenas fiscalizar o serviço do Rocha, um jovem 2º Tenente que acabara de chegar voluntário para o BOPE, e ainda sem COESP (iria fazê-lo e concluí-lo ainda naquele ano).
Oficial é oficial, foi preparado para comandar, mas, sabe como é, recém-chegado ao Batalhão e “peito-liso” a tropa cria alguma resistência; comporta-se com desconfiança, coisas assim.
Eu era Capitão com três anos de posto, um “antigão” com direito de trincheira, mas naquela época o bicho já pegava. Fartavam fuzis nas mãos do tráfico e o BOPE estava com um reduzido número de Tenentes, o que mantinha os Capitães na luta; bem diferente de como fora no passado, até os idos de 1988, quando chegaram armas de guerra para os criminosos.
Hoje a realidade é essa para qualquer Batalhão: todo mundo no combate.
A chamada “Operação Rio”, com participação das Forças Armadas, havia pouco se encerrado com números tímidos.
Não digo isso para culpar os integrantes das três Forças pelos resultados escassos; do contrário, tanto nós, policiais, como os companheiros das FFAA, sabíamos que os resultados seriam aqueles e não deveríamos contabilizar prisões e apreensões como “a estatística do sucesso”.
Nossa expectativa era preventiva. Quem verdadeiramente apostara em acontecimentos de magnitude, preferencialmente tragédias e hecatombes com “milhares de meninos assassinados pelo Exército Brasileiro despreparado para agir com a população civil”, havia sido os intelectuais palpiteiros, aqueles que sempre aparecem nessas horas para vociferar ideologia, posando de humanistas e detentores exclusivos das formas do bem.
A Operação Rio, na verdade, servira exclusivamente para sepultar carreiras políticas.
Fora uma intervenção incolor. Uma forma de preceder sem ofender.
Mas havia terminado, e lá estávamos nós sozinhos outra vez: BOPE e BPCHOQUE, numa operação de busca e captura ao traficante Flávio Negão e seu bando.
Negão, na verdade um magricela pequeno e muito mais brancão do que negão, formara um pequeno exército e desafiava as polícias, promovendo emboscadas contra os agentes e buscando matá-los sempre que podia.
Sua fama se firmara após longa entrevista que concedera ao jornalista e escritor Zuenir Ventura para o livro Cidade Partida; seu depoimento era uma extensa galeria de “impressões”, de trinta páginas, na qual falava da infância, da família, da chacina que presenciara de uma basculante e outras questões que já não me recordo, passados treze anos da leitura da obra.
Ainda pela manhã eu havia despachado a tropa para uma missão menos arriscada a comando do Tenente - se não me falha a memória na Vila Cruzeiro - que, à época, possuía muito menos poder de fogo que nos dias de hoje.
Mais, ainda assim, houve combate, de pouco intensidade, como me relatou Brazuna, o Sargento comandante de uma das equipes.
Por volta das dezoito horas reuni os combatentes para a leitura do documento sigiloso que ainda estava fechado em minhas mãos. Eu só saberia sobre a missão no momento em que abrisse o envelope lacrado.
Meus olhos percorreram todas as folhas avidamente, antecedendo minha fala, e logo vi que não poderia enviar o Tenente comandando:
PATRULHA DE CONTATO: INCURSIONAR VIGÁRIO GERAL BUSCANDO LOCALIZAR FLÁVIO NEGÃO E SEU BANDO - indicava o documento.
Não, não tínhamos a menor idéia de como seria Flávio Negão.
No nosso imaginário deveria ser um homem negro, considerando o apelido, e seguramente de compleição física forte, dado extraído do aumentativo da alcunha.
Mas era isso; e só!
Bem, onde poderia ser encontrado Flávio Negão?
A inteligência da PM coletara informações de que haveria um baile funk na quadra da comunidade, em comemoração ao aniversário da cidade. Era dia 20 de Janeiro de 1995. Flávio Negão e seus comparsas provavelmente estariam por lá, pelos becos, nos acessos ao espaço de socialização tratando do seu lucrativo comércio.
A missão ficara assim: O BPCHOQUE cerca a favela. O BOPE entra, incursiona, e...seja o que Deus quiser.
Claro, seja o que Deus quiser mesmo!
Entendam:
Os traficantes eram algumas dezenas:
Nós também.
Eles tinham fuzis, pistolas, metralhadoras e granadas.
Nós também, com exceção das granadas.
Eles conheciam excepcionalmente bem o terreno, eram crias dali.
Nós conhecíamos bem o terreno. Eu já estivera operando em Lucas e Vigário duas vezes, em ação diurna.
Mas nós tínhamos uma vantagem insuperável: treinamento (incomparável), legitimidade, legalidade e mística.
Éramos quase trinta homens do BOPE e logo logo eles saberiam disso.
Incursionamos a favela por volta das 20:00h, com o BPCHOQUE ocupando seguidamente as posições altas, as passarelas de acesso à Vigário Geral.
A Força de Incursão e Contato estava dividida em três patrulhas de combate: ALFA, BRAVO E CHARLIE, formadas por oito combatentes portando armas automáticas, como metralhadoras de mão e fuzis. A vanguarda tinha uma ponta-dupla, ou seja, dois homens seguiam sempre um pouco à frente, fazendo papel de reconhecedores-esclarecedores, uma missão mortal.
Designei a patrulha Charlie como Ptr Comando, aquela na qual eu seguiria. Era composta pelo Sargento Nascimento, pelo Cabo Di Franco, e pelos Soldados: Carneiro, Tostes, Ronaldo, Freitas e Gilberto.
Ronaldo “Maluco” e Freitas se apresentaram voluntários para seguirem na ponta (ACREDITEM!).
A patrulha Bravo tinha os Sargentos Andrade e Israel, e os Soldados: Ramos, Pereira, Magalhães, Travassos, Alcir e Vinícius.
A patrulha Alfa era composta dos Sargentos Brazuna, Jair, Cabo Garcez (que levava um fuzil - metralhadora HK 21-A1 com bipé e carregador tipo cofre) e os Soldados: Warlen, Simões, Paulo, M. Rodrigues e Filho.
Tracei três zonas de estacionamento e vigilância para onde as patrulhas se deslocaram.
Minha patrulha seguiu buscando o lado direito da favela, no sentido da incursão, como se fossemos para Parada de Lucas. A Bravo seguiu pelo centro, com o sargento Andrade liderando, e a patrulha Alfa foi pela esquerda, tendo no comando o Sargento Jair.
Fomos ocupando lajes com boa coordenação.
Levei o Tenente Rocha comigo, e ficamos nós e mais o Soldado Gilberto, meu rádio-operador, acompanhando silenciosos a movimentação na favela mal-iluminada, buscando localizar marginais armados.
Não tardou para que os vagabundos fossem avisados de nossa presença e eles puseram-se a correr desesperadamente, julgando que fossemos cercar a quadra onde acontecia o baile.
Começaram uma disparada pelos becos como loucos, atirando para tudo quanto era lado.
Eles estavam errados, eu não faria isso, havia um precedente assim que dera errado no Complexo do Alemão, com inocentes feridos, e nós apostávamos na tentativa de evasão deles, ou seja, eles viriam até nós.
Não deu em outra.
O BPCHOQUE com seus homens abrigados em sacos de areia, fazia uma barreira de fogos que não permitia aos traficantes se movimentarem sem aço incandescente na direção deles.
Eu buscava contato pelo rádio com as patrulhas e ninguém respondia.
Mas, a notícia ruim chegou.
- Capitão, ta na escuta, Capitão! Ta na escuta! - gritou o Cabo Garcez no rádio transceptor, com a voz cortada por tiros de fuzil e as reticências da incerteza que assaltara seu espírito.
- Tô na escuta cara! Fala aí! O que houve? Que tá acontecendo?
Eu sabia que algo grave tinha havido.
- Brazuna tá baleado, meu Capitão...Brazuna tá morto.
Uma notícia de cinco segundos, uma terrível notícia dada em cinco indefiníveis segundos.
Brazuna estava morto.
Carlos Augusto Soares Brazuna, vocacionado Policial Militar, um jovem ainda de pouco mais de trinta anos, casado com dona Ângela e pai de Vitor e de Hugo.
Vitor e Hugo, como bem convinha àquele determinado policial inspirado em Javert batizar os filhos em homenagem ao inigualável escritor de Les Misérables, uma obra-resumo de todas as misérias e dores da existência humana.
Saí da favela com dois mortos.
Flávio Negão veio junto.
Tombou no duelo mortal com Brazuna e outros integrantes da patrulha, enquanto tentava romper o cerco.
Caiu com um fuzil AR-15 Bushmaster à mão e vestindo uma camisa do flamengo. Só soubemos que era ele quando um garotinho denunciou:
- Ih, acho que vocês pegaram Negão, ele tava com a camisa do flamengo!
Nunca mais soube do Vitor, do Hugo ou da dona Ângela, mas gostaria de saber.
Ficaria feliz em saber que os meninos honram o nome do pai.
Aquele foi um ano de muitas perdas. Dias depois eu choraria a morte de meu filho Estevão, em sua jornada tão curta na Terra, e dias depois a morte do valente Tenente Vega... e dias depois..e dias depois...
Não posso esquecer o que aconteceu naquele dia 20 de Janeiro.
Lembrei-me novamente anteontem.
Não é um dia de festa para mim, malgrado o feriado.
Um dia não vamos mais precisar usar fuzis e nem arriscar nossas preciosas vidas para fazer Segurança Pública com matizes de Conflito Armado.
O crime estará sob controle.
As facções perderão sua força, sua representação, seu status simbólico promovedor das hostes que celebram o ódio.
Não foi em vão, Vitor!
Não foi em vão, Hugo!
A morte do Sargento Brazuna, vosso pai, não foi em vão.
Essa é minha crença.
Esse é o meu valor de verdade.
Em memória do Sargento Brazuna, faço esta saudação.
Força e honra meu irmão de armas!
Que Deus te guarde!
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