Estás sendo modesto: quem
viveu a época (nasci em 1963) sabe muito bem que não era o mar de rosas que alguns apregoam:
Era difícil passar uma semana sem que algo estivesse racionado. Se escolha estava entre (1) importar ou ficar sem ou (2) exportar mais e ficar sem e (3) ter mas exportar menos ou mesmo importar, bueno, simplesmente se ficava sem ou, mais comumente, se podia comprar racionado (era de ouro do mercado negro);
Claro, o acima valia apenas para os "comuns", quem tinha "bala na agulha" importava o que quisesse, de alimentos a veículos (lembro de uma entrevista de um cantor ultrabrega mas de grande sucesso chamado Wando que, nas próprias palavras - e no auge da Redentora! - disse "aqui em casa só a minha mulher e a minha filha são Brasileiras, o resto é tudo importado"). Ou alguém acha que não tinha Ferrari, Rolls, Mercedes, Suzuki e Kawasaki rodando nas ruas? Do mesmo modo que ontem, hoje e sempre, a lei valia de um jeito para uns e de outro para os demais: bastava ter grana, não se meter com política "de esquerda" e de preferência ter "padrinho" que tudo se resolvia a contento. Sempre!
O dinheiro público era (mal) usado como em qualquer outra época de nossa História: os mesmos politiqueiros que eram e são chamados de "vivandeiras de quartel" e que ficaram enchendo o saco até o golpe ser dado, logo tomaram posse e
aparelharam o Estado com seus apaniguados. Os militares não eram burros e sabiam que não se governa um País como se fosse uma base militar, botaram na mão da cambada e ficaram de
enforcers. Fortunas (ilegítimas) até maiores do que as criadas com a construção de Brasília nasceram naquela época, incluindo aí o império da família Marinho. E nada podia sair no jornal ou tevê - isso para quem tinha, pois uma porcaria valvulada P&B custava uma nota preta, a cores falo mais adiante - porque entrava a Censura Federal e invocava a LSN, era considerado
Risco de Segurança Nacional que a choldra ficasse sabendo que um (
UM??? ) politiqueiro
da ARENA roubava, de jeito nenhum, começa a guerra civil
comunista & quetales;
Ser classe média era ter casa própria com tevê "a cores" (a Colorado RQ era sonho de consumo) e telefone (caríssimo - quase o preço de um carro, quando o Estado, de tão exaurido, simplesmente parou de investir - e com anos de espera, tanto que tinha gente que, graças aos "padrinhos", comprava e recebia logo dúzias e dúzias de linhas e vivia do aluguel delas, uma das mais curiosas formas de rentismo que conheci; linha telefônica era item de disputa acirradíssima em heranças) dentro, além de pelo menos um carro - Fusca não, que era carro de pobre - tipo GM Opala (verdadeiro distintivo de classe média), Ford Maverick e, com alguma boa vontade, VW Passat. Conheci esses três carros na primeira metade dos 70 e distinguiam claramente quem era quem. O que hoje chamamos de classe média-alta e mesmo alta andava de Galaxie e mesmo Maverick V8, grandes beberrões num tempo em que a gasolina era ainda mais cara do que hoje. Rico mesmo era carro importado - e ganhar o suficiente para sustentar esses "luxos";
A Educação era excelente - falo da rede pública - e não perdia muito para as particulares - estudei numa também - mas isso não foi inventado pela Redentora: os Professores eram quase tão mal pagos quanto hoje mas tinham grande respeito e protagonismo na Sociedade, assim, por um lado se esforçavam para
aprender e ensinar, sendo PROs; como tale, lhes era muito fácil arrumar "padrinho", porque sempre tinham (os mais velhos) lecionado para o dotô fulano, que deles entesourava boas lembranças) ou (os mais novos) lecionavam para os filhos e netos do índio, o que lhes abria portas por todo lado. É passado hoje, mas casar com Professora era sinônimo de duas coisas: ser "bem casado", porque era supostamente uma mulher direita, e ser "bem mandado", porque elas tinham a fama de mandar nos maridos.
O que a Redentora introduziu de modificação foi POLITIZAR o ensino: eu sabia de cor todos os hinos do Brasil e RS mais o da ARENA, que era cantado todos os dias desde a metade de um ano eleitoral, até 15/11, que era a data das eleições. Começava com "este é um país que vai pra frente/ ho ho ho ho ho" e terminava com "é um país que canta/trabalha e se agiganta/é o Brasil do nosso amô". Assim, sugiro pensar duas vezes antes de culpar a "esquerda" pelo
crime, isso vem lá de trás;
Os caras eram fanáticos por estatais¹ (quase
comunistas!), a ponto de a burocracia para se abrir um negócio aqui era tão desgraçada quanto hoje, senão pior. Claro,
na indústria, pois comércio e serviços era mais brabo de fazer estatal, daí meio que levavam livre (mas em troca enfiavam a faca nos impostos e taxas de alvarás e tudo aquilo que os burocratas - civis, claro - tanto
amam). Pensem: tiveram a capacidade de fazer a EMBRAER mas nenhuma coisa sequer remotamente parecida com uma indústria automobilística e, convenhamos, brabo de acreditar que é mais fácil desenvolver um avião do que um carro ou caminhão. Herança do JK, pois já havia montadoras estrangeiras bem enraizadas aqui e elas
jamais aceitariam um empresa Brasileira na competição (deviam lembrar do exemplo da Itália, que tornou definitivamente a Fiat numa potência mundial ao taxar pesadamente os carros pequenos estrangeiros importados ou mesmo montados lá em prol dos Italianos, o que deixou muita gente buena de perna bamba);
SegPub era uma das coisas mais incríveis (e comecei no
fim da Redentora²), Polícia podia parar quem quisesse (desde que não fosse militar ou da classe média pra cima, claro) mas, ao invés de exigir RG, era Carteira de Trabalho. Ai de quem fosse não-branco e/ou estivesse mal vestido ou simplesmente mal encarado, se não mostrasse (por não ter ou ter esquecido) ou ela não estivesse assinada, era pelo menos uma ou duas bolachas na cara e um coice na bunda. E ficava pior: uma das maiores jostas que se podia fazer era arrumar antagonismo com alguém da SegPub pois, conforme o grau de irritação que fosse causado, o índio era acusado (sem saber), investigado (ainda sem saber) e, conforme achassem a menor beiradinha (e sempre tem), preso. Conforme a ofensa, não escapava de uma bela sarabanda de laço. Ou mais de uma. Depois - exceto se o cara fosse
mesmo criminoso - simplesmente mandavam embora, e não tinha para quem se queixar. Eu mesmo cheguei a ter este "poder" mas nunca usei, e não por ser
santinho mas apenas por não ser do tipo que cultiva rixas e rancores e preferir ser amigo de todo mundo, hábito que trouxe da infância. Mas conheci pessoalmente quem usava
porque gostava, a ponto de se gabar disso.
Tem muito mais mas o post ficou muito comprido...
¹ - Todo mundo sabe que estatal e loteria - que no Brasil é estatal também - é o que de melhor há para desviar e mesmo lavar dinheiro.
² - Esqueçam a Wikipédia, não acabou de jeito nenhum em 85: a "eleição presidencial" foi igual à que escolheu todos os generais-presidentes, lembro bem; o Tancredo - baita
pilantra, aliás - ganhou mas não levou - deu a caradura de bater as botas antes - e sim um "traidor", um então cacique da ARENA (já então chamada PDS, no casuísmo que acabou com o bipartidarismo criado no fim dos 70 pelos próprios vencedores de 64, ao verem que iriam perder para os descendentes do antigo MDB) chamado Zé Ribamar, vulgo Sarney que, ao ver para que lado o vento soprava, se bandeou pro então PMDB e "herdou" o Brasil; a coisa foi tão DOIDA que o PMDB, supostamente vencedor, imediatamente voltou a ser oposição. A Constituição era a mesma e a "cidadã", votada em 88, só começou a valer mesmo nos 90, quando inclusive derrubamos o Collor (ou, em "esquerdês" moderno, lhe demos "o Golpe") com a grôbo direcionando e canalizando a opinião pública e o PT organizando tudo.