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Choque. Pavor. O horror. O que era antes improvável, impensável, é agora real. Bem-vindos ao deserto do real, como Morpheus diz a Neo em Matrix. Slavoj Žižek tomaria de empréstimo esta frase para título de um seu livro, que por sua vez já vinha de Jean Baudrillard (Simulacros e Simulação). Tudo isto tem a ver com Trump, o Donald, claro, o candidato que, estranhamente, Žižek apoiou. Porque o mundo em que Trump reina é o mesmo pnde existem os Simpsons, que preveram a ascensão do presidente côr-de-laranja há mais de quinze anos. O mesmo mundo que nos oferece reality-shows como Jerry Springer Show. Ou The Aprentice. Vamos ser audazes: o mundo em que vivemos é um palco onde encenamos personagens, e Trump é personagem do seu próprio reality-show, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro. Vamos arriscar: não só vivemos na era pós-facto (a verdade deixou de ser um valor positivo e absoluto), como vivemos na era pós-real, simulacro do real, encenação grotesca, ampliada pelos media, na qual o fio que une a crença à descrença e à ilusão se vai tornando cada vez mais ténue. Uma era em que a política - desde sempre também ela pose, retórica e encenação - pouca ligação tem à realidade, mesmo quando as decisões tomadas pelos políticos interferem e incidem sobre a vida dos cidadãos.
Neo escolhe o comprimido vermelho; e mergulha na realidade suja, recusa a ilusão. O salto (de fé) de Neo é semelhante ao que milhões de americanos deram ao votar em Trump. Por (poucas) boas e (muitas) más razões, mas decidiram dar. O comprimido azul, Hillary Clinton, foi recusado. A repetição do mesmo, o establishment, o sistema, foi a luz fria que milhões não quiseram, optando antes por votar em Trump ou por ficar em casa (a abstenção é a arma dos alienados do sistema). O maior poder dos demagogos é o de conseguirem captar o ar dos tempos, capturarem os corações e as almas de quem, ou tem pouco a perder, ou perdeu muito, e quer recuperar. As tais más razões - o medo do outro, o ódio de classe - são os nutrientes de que o demagogo se alimenta. Trump e a sua equipa apanharam tudo o que pairava, e disseram o que tinham de dizer para ganhar. Hillary, por seu lado, foi a cara do sistema - e a mensagem de Trump foi eficaz ao martelar e martelar esta ideia, porque apenas o sistema se consegue iludir a si mesmo, achando que se pode perpetuar, intocável. Claro que o sensato dirá que Trump é uma encarnação do sistema que diz combater - o demagogo nada na era pós-facto como girino na água -, mas, como muitos estudos indiciam, o eleitor decide mais com o coração do que com a cabeça. E quando os simulacros (cópias que carecem de original, cópias desligadas do original que imitam) preenchem os dias, soturnamente, entram pelas casas e tomam conta das nossas almas, a razão vive ao largo, num barco, e quando tenta reentrar no porto, é rechaçada pelas balas de canhão disparadas pelos demagogos que vivem do medo, e do ódio ao outro.
O mapa desenhado pelos cartógrafos, tão perfeito que substituiu o mundo que imita, é agora a nossa casa. Vivemos no deserto do real, e o melhor que podemos esperar é que o demagogo Trump faça o que todos os demagogos fazem: volte ao seio do sistema, recusando a ruptura em que o ódio votou. É a aposta mais segura, mas eu arrisco que o caminho de Trump será uma feia mistura entre retrocessos de vária ordem, pedidos pela facção mais reaccionária do GOP - o fim do Obamacare, da lei Row vs Wade, etc. - e a redistribuição de privilégios na direcção dos mais abastados: a descida de impostos para os maiores rendimentos será certamente concretizada. Transformar-se-á numa perfeita peça do sistema, e por isso não surpreende que, depois da surpresa inicial, os mercados tenham disparado. Donald Trump é o homem de Wall Street - tanto quanto seria Hillary Clinton, é certo, mas a sua actuação não deixa de ser mais moralmente repugnante (vamos ser exactos aqui, sem cinismos), porque irá beneficiar exactamente o sistema contra o qual jurou lutar.
Poderá haver outro caminho, o mais perigoso para o mundo. Trump pode escolher a via extremista, a via do ódio, e tornar-se de facto o primeiro fascista eleito nos EUA, ecoando o romance de Philip Roth, A Conspiração Contra a América. Aí, o mundo dos simulacros que permitiu que ele chegasse à presidência irá estilhaçar-se, e a realidade mostrará a sua feia carantonha. O mapa do cartógrafo voltará a ser própria realidade, mas será talvez demasiado tarde - chegaremos a um ponto em que a violência será inevitável.
Chegados aqui, só podemos recordar com um sorriso nos lábios os optimistas da década de 90, os que sonhavam com o fim da História anunciado pelo fim do bloco comunista e o domínio conceptual (e real) de uma ideia liberal de democracia. Como estamos longe desse optimismo antropológico... O conforto da certeza de que pelo menos numa coisa - a História tem avanços e retrocessos, nada permanece, tudo o que é sólido se dissolve no ar - Marx estaria certo não dissipa a angústia que rói cá dentro, a angústia do tempo que aí vem. Deveríamos todos ter a oportunidade de tomar o comprimido azul, continuando a viver no doce enlevo da floresta da ilusão. Demasiado tarde.