Considero ser o livro "Elite da Tropa", imprescindível para quem pretende ter um mínimo de compreensão das questões policiais e de segurança pública que afligem o Brasil. Talvez não seja um livro perfeito, talvez haja uma ou outra afirmativa equivocada, mas não pode deixar de ser lido, juntamente com várias outras obras sobre o tema de segurança pública.
Apesar das críticas duras desagradarem muita gente, seria a prova da mais absoluta inconseqüência desconsiderá-las e tentar botar pra debaixo do tapete, as práticas nocivas que campeiam em parte das instituições policiais. Chegamos a um ponto que já não se trata mais de “o pior cego é aquele que não quer enxergar” mas sim de assumir cumplicidade com o crime caso não a sociedade não tome medidas dramáticas para refazer as instituições policiais de cabo a rabo. A estupidez das leis penais mantidas pelas pressões espúrias de certas entidades; o discurso oco e oportunista de hipócritas e mal-intencionados que se afirmam defensores dos direitos humanos não podem servir de desculpa para o outro tipo de insanidade que é rebater quaisquer críticas as forças policiais, sob o argumento de que se trata de discursos de “amigos de bandidos”.
Eu li uma boa parte do livro e não vi nada que qualquer leitor minimamente atento às realidades das ações policiais no Rio de Janeiro, nos últimos vinte anos, possa descartar à priori, como invencionices e fantasias. Tudo, até as mais escabrosas histórias tem sim, todo o ar de credibilidade. E tampouco o livro faz críticas, somente, ao comportamento das polícias, mas em várias passagens há algumas reflexões muito duras sobre essa eterna dicotomia: pobre que mora na favela, e que vende droga, é bandido e tem de ser morto; o “mauricinho” que mora na Barra da Tijuca, e que compra droga, é “doentinho” e tem de ser amado e compreendido.
Cada um que leia o livro e tire suas conclusões: quanto a mim, só posso dizer que acredito na diferença entre um bandido que, justamente por ser um bandido fora da lei, não hesita em entrar numa delegacia e matar um policial; e um policial, que justamente por ser um policial mantenedor da lei, não pode entrar num presídio para matar um bandido à sangue-frio.
Se tal distinção for perdida, então é melhor desistirmos de ser um país civilizado e nos preparar para a fragmentação política e para a guerra de tribos e para o fim de qualquer esperança de um Brasil Grande.
PREFÁCIO - Soares, Luiz Eduardo. A Elite da Tropa / Luiz Eduardo Soares, Rodrigo Pimentel, André Batista - Rio de Janeiro - Editora Objetiva, 2006
Há quem pense que as pessoas se corrompem porque ganham pouco. Raciocínio estranho. Afinal, há milhões de pobres, no Brasil: gente séria e honesta. Por outro lado, os crimes de colarinho branco mulitplicam-se feito epidemia. E há o próprio caso do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o BOPE, da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que até recentemente era um grupo pequeno e fechado, composto por 150 homens treinados para ser a melhor tropa de guerra urbana do mundo. Eles recebiam o mesmo salário de seus colegas da polícia convencional, mas eram incorruptíveis. Foram acusados de brutalidade desmedida, mas sua honestidade foi amplamente reconhecida.
Qual o antídoto para a corrupção? Na história do BOPE, a resposta foi uma só: orgulho pessoal e profissional. Respeito ao uniforme negro. Antes a morte que a desonra. O processo de seleção era tão difícil e doloroso, o ritual de passagem era tão dramático, que o pertencimento passou a ser o bem mais precioso. Ser membro do BOPE, partilhar dessa identidade, converteu-se no patrimônio mais valioso. A auto-estima não tem preço. Portanto, não se negocia.
Quem escala o Himalaia não se agarra ao dinheiro. O maratonista não corre atrás do lucro. O guerreiro, que estende o risco ao limite extremo, não mira o pagamento. O alvo é a glória, recompensa muito maior que os bens materiais. O monge que fustiga o corpo não quer levar vantagem. A ambição é mais elevada: o contato com o sagrado.
As emoções são labirintos complicados. Pode ocorrer, na contramão do bom senso, o encontro inusitado entre honra e desonra, numa dobra improvável da alma humana, ou numa esquina obscura da cidade. Sob a forma, por exemplo, da mistura de violência com fidelidade, desrespeito e lealdade. Era aí que morava o maior perigo para o BOPE, em sua época áurea, isto é, antes de se tornar o Batalhão que é hoje, formado por quatrocentos homens e mais parecido – em todos os sentidos – com os demais batalhões da polícia convencional do que jamais se permitira ser no passado.
O embrião do BOPE – o Núcleo da Companhia de Operações Especiais da PMERJ – foi criado em 19 de janeiro de 1978, sob inspiração do então capitão PM Paulo César Amêndola de Souza, mas apenas em 1991 foi batizado com o nome atual. O BOPE não foi preparado para enfrentar os desafios da segurança pública. Foi concebido e adestrado para ser máquina de guerra. Não foi treinado para lidar com cidadãos e controlar infratores, mas para invadir territórios inimigos. Tropas similares servem-se de profissionais maduros. O BOPE acelerava meninos de 20 e poucos anos até a velocidade de cruzeiro do combate bélico. Vamos cobrar a loucura da guerra a quem foi treinado para matar?
Nos exercícios diários, os soldados do BOPE aprendem a entoar seus cantos de guerra:
“Homem de preto,
qual sua missão:
É invadir favela
E deixar corpo no chão.”
“Você sabe quem eu sou?
Sou o maldito cão de guerra.
Sou treinado para matar.
Mesmo que custe minha vida,
A missão será cumprida,
seja onde for
espalhando a violência, a morte e o terror.”
“Sou aquele combatente,
que tem o rosto mascarado;
uma tarja negra e amarela,
que ostento em meus braços
me faz ser incomum:
um mensageiro da morte.
Posso provar que sou um forte,
Isso se você viver.
Eu sou... herói da nação.”
“Alegria, alegria,
sinto no meu coração,
pois já raiou um novo dia,
já vou cumprir minha missão.
Vou me infiltrar numa favela
com meu fuzil na mão,
vou combater o inimigo,
provocar destruição.”
“Se perguntas de onde venho
e qual é minha missão:
trago a morte e o desespero,
e a total destruição.”
“Sangue frio em minhas veias,
congelou meu coração,
nós não temos sentimentos,
nem tampouco compaixão,
nós amamos os cursados
e odiamos pés-de-cão.”
O BOPE é a principal referência deste livro – diretamente, na primeira parte, e indiretamente, na segunda. Mas a polícia não se resume ao Batalhão de Operações Policiais Especiais. E os dramas cotidianos da violência não envolvem apenas a elite da tropa. Todos os dias, no estado do Rio de Janeiro, um grande número de policiais arrisca a vida no cumprimento de seu dever constitucional, com dignidade e coragem. Eles recebem salários desproporcionais às ameaças que enfrentam e à importância de sua função. Muitos sofrem danos físicos e mentais. As baixas fatais contam-se às centenas. Trabalham freqüentemente, em condições precárias e incompatíveis com a complexidade de sua missão, tanto preventiva, quanto investigativa e repressiva. Além disso, têm visto sua imagem pública degradar-se. Casos sucessivos de corrupção e brutalidade feriram de morte, no Rio, a confiança da sociedade em suas polícias, as quais, por sua vez, nem sempre souberam compreender a natureza de seu papel, numa república como a brasileira, regida pelo Estado Democrático de Direito.
Este livro foi escrito com o propósito de enriquecer o processo de reflexão dos policiais e da opinião pública. Seu objetivo não é depreciar os profissionais da segurança, mas valorizá-los; não é atingir as instituições, mas promover seu aperfeiçoamento. Não há democracia sem polícia. Se desejamos construir uma sociedade justa e democrática, não podemos deixar as polícias à margem e à deriva – quando falamos de polícias, estamos nos referindo a um universo de cerca de 45 mil profissionais, no Rio, e 550 mil, no Brasil.
Os três autores sonhamos com o dia em que poderemos celebrar, no Rio de Janeiro, a reconciliação entre a sociedade e as instituições policiais, entre os membros de cada comunidade e os policiais. Para que esse momento se realize, é preciso, no entanto, como ensinou Nelson Mandela, olhar nos olhos a verdade e reconhecê-la, sem meias palavras e subterfúgios, sem hipocrisia e retórica política. Nua e crua. Mesmo que ela seja dolorosa e disforme. Mesmo que a encontremos apenas pelas mediações da ficção. “Verdade e reconciliação”, ele dizia, quando derrotou o apartheid. Só se alcança a reconciliação, atravessando-se o duro momento da verdade. A psicanálise também demonstra que o luto é uma etapa necessária à superação do sofrimento. O luto supõe o reconhecimento das perdas.
Elite da Tropa é dedicado aos que trabalham, nas polícias e fora delas, para que a reconciliação seja um dia possível. Os relatos que compõem este livros são ficcionais, no sentido de que todos os cenários, fatos e personagens foram alterados, recombinados e tiveram seus nomes trocados. Se, por acaso, nossa imaginação se equipara ao que efetivamente acontece, talvez isso decorra do fato de termos escrito este livro a partir das nossas experiências, e de termos vivivo, cada um à sua maneira, a realidade da segurança pública do Rio de Janeiro.
Luiz Eduardo Soares (antropólogo e cientista político)
André Batista (capitão da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro. Ex-membro do BOPE)
Rodrigo Pimentel (ex-capitão da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro. Ex-membro do BOPE)