O julgamento de Sócrates
Se o PS se tornou esta promoção de nítidos nulos, então o PS vai ser assassinado por isto.
Clara Ferreira Alves (
www.expresso.pt)
16:30 Quinta-feira, 18 de Fev de 2010
Não acredito que este Sócrates tome o cálice de cicuta que lhe estendem. O ensurdecedor silêncio que rodeia (escrevo na terça) a revelação das escutas no "Sol" denuncia a cautela política e uma certeza: ninguém, a começar pelo PSD e a acabar nos outros partidos, quer tomar o poder para já. Preferem uma lenta erosão, acumulada em artigos e revelações que vão continuar a sair nos jornais, e ganhar tempo para preparar uma estratégia que garanta a derrota dos socialistas no futuro. A guerra vai ser a que sempre foi, entre jornalistas e Sócrates.
Portugal não está em estado de disputar eleições e afundar-se ainda mais nos mercados internacionais devido a uma crise política e não existe uma oposição capaz de ser Governo. A sobrevivência de Sócrates, no curto prazo, está assegurada. Ele acabará a plebiscitar-se, colocando o povo português e o interesse da pátria de um lado, e uma imprensa e televisão sedentas de sangue do outro. Sócrates dirá que um país onde isto acontece não é um país que sofra de privação de liberdade de expressão. E o povo não politizado ou arregimentado em partido é bem capaz de o escolher a ele em vez dos jornalistas. No geral, o povo português está cansado da permanente autojubilação da classe e tem mais do que fazer do que preocupar-se com a TVI, a PT, a Moura Guedes, o Moniz e quejandos.
O que significa isto? Significa que numa das mais graves crises do sistema democrático, a indiferença ou é brutalizada ou é manipulada. Porque, não nos confundamos, as revelações do "Sol" são escandalosas, são gravíssimas e, sendo verdadeiras, são indício de que o primeiro-ministro de Portugal ordenou uma operação, usando pessoas, empresas e fundos públicos, para 'limpar' uma personagem e um telejornal que, no ar, lhe eram incómodos. Um primeiro-ministro que se preocupa com gente desta e ordena o silenciamento de gente desta com meios destes não pode, não deve ser primeiro-ministro.
A questão da divulgação das escutas, a questão dos direitos civis da revelação de conversas privadas contra a questão da liberdade de imprensa, parece-me que deve ocupar o segundo plano. Num Estado de Direito, se estas escutas existem e existem assim, sem interpretações, competia ao procurador-geral ter ordenado um inquérito judicial. E ter dado seguimento ao que o juiz e o procurador de Aveiro consideraram poder constituir crime. Não restam muitas dúvidas de que se a conspiração existiu, ela é criminosa. E que as suspeitas que a magistratura de Aveiro tinha eram legítimas. E que a Procuradoria falhou a missão que lhe confiámos.
Suspendamos por um segundo o princípio de que toda a gente é inocente até prova em contrário. Verdadeiras ou interpretadas (ninguém as desmentiu e disse serem falsas) são as transcrições plausíveis? São. As conversas entre o apparatchik socrático Rui Pedro Soares (como é possível tal criatura ser alto quadro da PT, ganhar milhões e dispor de poder e orçamentos de milhões?) e Penedos Júnior, outra personagem sem currículo, seriam hilariantes se não fossem criminosas. E imorais. Eu, como todos os portugueses, quero saber mais, e tenho o direito a saber mais. Para já, sei que personagens como estas e como Armando Vara, personagens como a pandilha da 'Face Oculta', são caras de um Partido Socialista que nada tem a ver com a liberdade e que é uma ameaça à liberdade. Se o PS se tornou nisto, nesta promoção de nítidos nulos, neste nó de corrupção da inteligência e da vontade, então o PS vai ser assassinado por isto. Como está a acontecer. Se o PS não se demarcar disto, morre com isto.
O retrato daqueles dois que é feito pelos jornalistas do "Sol" é plausível? É. O spinning não os salvará. O "chefe máximo", como eles chamam a Sócrates num alvoroço babado, converteu-se no chefe máximo de pessoal mínimo e deixou de ser primeiro-ministro de Portugal. Um cidadão eleito com poderes especiais para, justamente, administrar o país e impedir o abuso de poderes.
O retrato de Sócrates que assim é traçado é o de um homem desavindo e vingativo, que desencadeia processos ilegítimos para obter fins inconfessáveis. É a de um homem sem escrúpulo nem remorso. É a de um homem perigoso rodeado de servos medíocres.
A queda de Sócrates será a queda de Ícaro derretido, e não a morte desejada do Sócrates ateniense. Será a queda de um homem que não se esqueceu de nada e não aprendeu nada e fez da missão da sua vida vingar-se dos seus pequeníssimos inimigos. Nenhum jornalista tem o poder de Sócrates nem quis ter. Com a diferença de que se um jornalista abusar do seu poder, autodenuncia-se. Se um primeiro-ministro abusar do seu poder, torna-se um tirano.
Texto publicado na edição da Única de 13 de Fevereiro de 2010