Por que cloroquina?
A CQ e a HCQ são medicamentos usados para tratamento de malária e algumas doenças autoimunes. Sabe-se que atuam aumentando o pH das vesículas, “bolhas” formadas durante a entrada do parasita causador da malária, o plasmódio, na célula, e que devem apresentar também alguma ação imunomoduladora e anti-inflamatória, já que também são úteis no controle dos sintomas de algumas doenças autoimunes.
Como muitos vírus usam a mesma porta de entrada que o plasmódio para atacar a célula – a tal vesícula, também chamada de endossomo – faria sentido, teoricamente, imaginar que o que fecha a porta para o plasmódio também fecharia para os vírus.
O problema é que o SARS-Cov2 não usa somente esse caminho para invadir a célula. A principal via de acesso do coronavírus não é o endossomo, é uma proteína chamada TMPRSS2, presente na membrana de certos tipos de célula. Utilizando essa proteína, o vírus entra sem precisar do endossomo, e aí a CQ e a HCQ, que só afetam endossomos, não poderiam ajudar em nada. E sabe quais células apresentam essa proteína? Justamente as do trato respiratório, que o vírus mais ataca.
Um grupo de cientistas na Alemanha testou as diversas vias de entrada do vírus, e mostrou que ele tem esses dois caminhos à disposição, mas prefere o da proteína. Um outro grupo no Japão, que estudou o vírus SARS-CoV1, que é muito parecido com o CoV2, demonstrou isso em camundongos, descrevendo como a proteína é a chave para que o animal desenvolva forma grave da doença.
Em outros vírus
A CQ e HCQ já foram testadas para diversos tipos de infecção por outros vírus e nunca funcionaram. Há um certo paradoxo aí: costumam dar sinais promissores quando testadas em cultura de células em laboratório, mas quando tentamos reproduzir isso em animais, não. O medicamento foi testado para HIV, dengue, zika, chikungunya, H1N1 e para o SARS-CoV1. Nunca funcionou na fase de testes em animais ou humanos, e foi abandonado todas as vezes.
A CQ não funcionou em testes com humanos em dengue, nem com influenza. Em animais, não funcionou para ebola, influenza, nem chikungunya.
Para chikungunya, pareceu inclusive agravar a doença. Apesar de ter funcionado em células de laboratório – assim como foi observado para o SARS-CoV2 –, em animais, contribuiu para aumentar a replicação do vírus. Outro trabalho com modelo animal, agora em primatas, mostrou que a cloroquina agravou a febre da chikungunya e atrasou a resposta imune.
Uma possível explicação para isso é justamente a ação imunomoduladora do remédio, que ajuda os pacientes de lúpus e artrite reumatoide, as doenças autoimunes.
O aparente paradoxo – funciona no tubo de ensaio, falha ou piora as coisas no organismo completo – resolve-se quando notamos que as células cultivadas em laboratório não têm a tal proteína TMPRSS2 na membrana, a porta de entrada preferida do vírus. No laboratório, a única via de acesso é o endossomo, que pode ser bloqueada com alteração do pH.
De fato, o grupo alemão que testou a proteína de membrana usou cloreto de amônio, que como a cloroquina, aumenta o pH do endossomo, e bloqueou esse acesso. Mas a entrada pela proteína de membrana só foi bloqueada com uma protease, uma enzima que destrói a proteína e impede o vírus de usar esse caminho.
Sem plausibilidade
O suposto mecanismo de ação que justificaria o uso da CQ ou HCQ não existe de fato: ele fecha uma porta que o coronavírus já não gostava muito de usar, e deixa outra, a favorita, escancarada. Propõem-se outros mecanismos, como ação antiinflamatoria e imunomoduladora, mas temos indícios de que modular o sistema imune, nessas condições, pode fazer mais mal do que bem. Para ação antiinflamatória, não precisamos da cloroquina, temos outros produtos, alguns já sendo testados.
Recentemente, mostrou-se que a Covid19 pode afetar o coração, além dos pulmões, causando miocardite. Um dos efeitos colaterais mais perigosos da CQ é justamente causar cardiopatia, tanto que o próprio Ministério da Saúde sugere a realização de eletrocardiograma antes do início do tratamento.
Tempos de pandemia trazem urgência. Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) está testando a CQ e a HCQ de forma rápida, com menos controles do que seria ideal. Mas a OMS está testando de verdade: vai comparar o uso do remédio com o tratamento padrão de suporte. Assim, saberemos o mínimo necessário. E o órgão da ONU também não está apostando todas as fichas nessas moléculas: há outros três candidatos em teste.
Antes de termos algum resultado do esforço internacional, conduzir testes menos rigorosos, que produzirão resultados menos confiáveis e baseados em premissas duvidosas, parece mais uma operação de relações públicas, para aparecer na TV, do que curiosidade científica legítima.
Ninguém está torcendo contra os testes. Esperamos que, em breve, tenhamos um medicamento para ajudar. Talvez a CQ ou a HCQ realmente atuem contra o SARS-CoV2, por meio de algum mecanismo de ação ainda desconhecido. Mas é importante reconhecer que essa é uma esperança mais do que tênue: se houvesse algum efeito claro e definitivo de uma dessas moléculas contra o vírus em pacientes infectados, ele já teria sido notado. Se houver benefício, provavelmente será, no máximo, marginal. Dado o que a ciência sabe até agora, apostar todas as fichas na cloroquina é irresponsável.
O mais sensato seria esperar. Esperar não quer dizer não fazer nada, e sim abster-se de adotar condutas que têm baixa probabilidade de sucesso e oferecem riscos palpáveis. Sugerir que cautela equivale a “fazer nada” é até um desrespeito pelo esforço dos profissionais que estão, neste exato momento, salvando vidas.
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