Brasil pode retaliar Equador
Celso Amorim condenou decisão do Equador de não pagar dívida com BNDES
BRASÍLIA - Em um claro sinal de que as relações Brasil-Equador estão em franca deterioração, o Palácio do Planalto e o Itamaraty reagiram ontem com a convocação do embaixador brasileiro em Quito à iniciativa do governo Rafael Correa de submeter a uma arbitragem internacional a decisão de não pagar US$ 597 milhões ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O Ministério das Relações Exteriores chamou o embaixador brasileiro em Quito, Antonino Marques Porto e Santos, para "consultas" em Brasília e antecipou que uma retaliação pode ser aplicada, na forma de revisão dos projetos de cooperação do Brasil com o Equador. Essa reação surgiu 42 dias depois de o Palácio do Planalto ter autorizado uma sanção sobre o principal projeto viário equatoriano, em resposta à expulsão da construtora Norberto Odebrecht e de ameaças aos investimentos da Petrobras no país.
"O governo brasileiro recebeu com séria preocupação a notícia da decisão do governo equatoriano de impetrar juízo arbitral junto à Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI), com vistas a suspender o pagamento da dívida junto ao BNDES relativa ao financiamento da construção da hidrelétrica San Francisco", resume a nota oficial divulgada pelo Itamaraty.
Os principais trechos foram lidos para a imprensa pelo próprio chanceler Celso Amorim, ontem, em São Paulo. Primeiro passo em um processo que pode levar ao rompimento de relações diplomáticas, a atitude de chamar o embaixador à capital foi uma medida evitada pelo governo brasileiro até mesmo quando as refinarias da Petrobras na Bolívia foram ocupadas por tropas, em maio de 2006, enquanto o presidente Evo Morales anunciava a uma multidão a edição do decreto de nacionalização do setor de petróleo e gás.
Naquela ocasião, Morales cometera um erro adicional - não informara antecipadamente o governo brasileiro sobre a edição do decreto. O mesmo erro foi repetido pela equipe de Correa, que anunciou a medida em um evento público, na quinta-feira, sem o cuidado de fazer consultas com o governo brasileiro ou de informá-lo previamente sobre a apresentação do caso à CCI, em Paris, conforme registrou a nota do Itamaraty.
"O governo brasileiro considera que a natureza e a forma de adoção das medidas tomadas pelo governo equatoriano não se coadunam com o espírito de diálogo, de amizade e de cooperação que caracteriza as relações entre o Brasil e o Equador", enfatizou o texto. A diferença entre a atitude de La Paz e de Quito está no fato de que, do ponto de vista do Brasil, o Equador não tem nenhuma importância estratégica. Nos últimos anos, o país foi alvo de acordos de cooperação, negociados segundo a lógica da generosidade da política exterior do governo Lula.
Também se abriu como mercado potencial para as empreiteiras brasileiras, que obtiveram o financiamento do BNDES para as obras no Equador com amplo aval do governo brasileiro, e de investimentos produtivos.
Ontem, Amorim avisou que uma segunda retaliação de Brasília a Quito poderá vir na forma de revisão dos acordos de cooperação. O presidente Lula preferiu não comentar o impasse, mas afirmou que eram suas as declarações do chanceler.
Histórico
A crise Brasil-Equador estourou em 9 de outubro passado, quando Correa baixou um decreto de emergência nacional que determinava a expulsão da construtora Odebrecht do país. Cinco obras da empresa no Equador sofreram intervenção, e os direitos constitucionais de quatro diretores foram suspensos - dois dos quais tiveram de se socorrer na residência do embaixador Porto e Santos.
A razão foi uma avaria na hidrelétrica San Francisco, que acabou sanada pela construtora brasileira enquanto os atritos corriam soltos. A usina voltou a funcionar no último dia 15 de outubro. A expulsão da Odebrecht e de Furnas, que prestava assessoria no país, foi acompanhada por ameaças aos investimentos da Petrobras no Equador e atingiu diretamente os ânimos do presidente Lula, um ardente defensor da política de generosidade do Brasil para com a vizinhança sul-americana.
Nove dias antes, Lula havia conversado com Correa, em Manaus, sobre os atritos de seu governo com as companhias brasileiras. O equatoriano prometera buscar uma solução tranqüila. O brasileiro, por sua vez, deixara claro que seu governo não entraria no mérito das queixas do Equador sobre a atuação das duas empresas. Mas ressaltara que essas insatisfações deveriam ser tratadas dentro do marco legal - e não alçadas para a relação bilateral.
O principal alvo da retaliação brasileira foi a obra da interligação multimodal entre de Manta, no Equador, a Manaus (AM), que tenderia a ser financiada sobretudo pelo BNDES. Trata-se do maior projeto de infra-estrutura do governo Correa e de uma aposta na transformação de seu país em um corredor do comércio entre a Ásia e o Brasil. O governo brasileiro, na ocasião, suspendeu o envio de uma missão capitaneada pelo Ministério dos Transportes para tratar desse projeto e, especialmente do financiamento do BNDES.
Moratória
Para o Itamaraty está claro que as decisões do Equador de rejeitar uma solução conciliadora com o BNDES e o governo brasileiro e de levar a questão para arbitragem internacional não tiveram motivação exclusivamente diplomática. Ou seja, não são investidas de uma economia menor da América do Sul contra o projeto brasileiro de hegemonia na região. Trata-se de uma equação de finanças públicas.
O governo equatoriano está preparando uma moratória de sua dívida externa de US$ 10,3 bilhões, como admitiu nesta semana o Ministério das Finanças, ao mesmo tempo em que se nega a pagar US$ 3,9 bilhões em empréstimos tomados no passado por supostas "irregularidades". Submeter o caso do BNDES a arbitragem internacional trará pelo menos um alívio em curto prazo - o Equador não pagará a parcela de US$ 14 milhões que vence em dezembro. O financiamento da construção da hidrelétrica San Francisco envolveu uma arquitetura financeira intrincada.
Originalmente, custou US$ 243 milhões. Mas, com os dez adendos ao contrato, alcança atualmente US$ 597 milhões. Como o BNDES não está autorizado a emprestar recursos diretamente a empresas ou governos de outros países, a Odebrecht valeu-se de um mecanismo criado pelo governo que permite o financiamento do banco às exportações de serviços de engenharia e de bens necessários à construção, desde que realizadas pela empresa brasileira que conduz a obra.
Para que houvesse uma garantia formal de pagamento do valor financiado (acrescido de juros e eventuais moras), a operação cursou pelo CCR (Convênio de Pagamentos e de Créditos Recíprocos). Trata-se de um mecanismo adotado pelos países da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) para facilitar o comércio, que prevê que os bancos centrais cubram eventuais inadimplências.
Ou seja, se o governo Correa negar-se a pagar as parcelas devidas de sua dívida com o BNDES, o Banco Central do Equador será obrigado a fazê-lo. Para desacreditar essa operação, o Equador acusa a Odebrecht de não ter exportado nem um bem (máquinas e materiais de construção) para a obra de San Francisco. Essa é uma das questões que a Câmara de Comércio Internacional deverá arbitrar.
Fonte: http://www.tribunadaimprensa.com.br/not ... cia=pais01