Fui assaltado e aprendi uma lição
07.03.2007 | Aconteceu comigo algo banalíssimo, que, conforme o caso, já chateou, aterrorizou ou desgraçou milhões – sim, é esta a cifra – de brasileiros: fui assaltado, com algum grau de violência. As conseqüências, para mim, foram irrisórias, um pingo d'água, uma molécula perto da barbárie disseminada e impune que se tornou a triste rotina do país. Mesmo assim, quero compartilhar o episódio com os leitores, porque, sendo estreante nesse terreno e, portanto, uma raridade entre os urbanóides brasileiros destes tempos, extraí dele uma pequena lição.
Foi um assalto em plena luz do comecinho de uma tarde recente, diante de várias pessoas, numa praia do Guarujá, no litoral de São Paulo. Descalço, trajando apenas shorts, eu caminhava distraído na areia, perto da água, contemplando ora o mar azul-turquesa daquele dia ensolarado, ora a vegetação exuberante que a especulação imobiliária até agora não conseguiu erradicar da antiga “Pérola do Atlântico’. Percebi algo de estranho quando um rapaz forte, moreno e mal-encarado que vinha de bicicleta em sentido contrário passou rente a mim e bateu de propósito na mão em que eu levava a chave do carro. Irritado com o que parecia uma provocação gratuita, parei e me voltei para ele, que desceu da bicicleta e se aproximou de mim.
Ficou claro tratar-se de um assalto no momento em que o sujeito gritou “vem! vem!” para um comparsa. Enquanto isso, avançava em minha direção, mantendo uma mão às costas, como se portasse uma faca ou estilete, enquanto me dizia, ríspido e insistente, uma frase incompreensível. Soava algo como “me passa o Hatch!”. Em frações de segundo, enquanto com o rabo do olho eu divisava o outro assaltante a uma certa distância, veio-me ao cérebro que ninguém mais usa essa palavra, hatch, para designar modelos de veículos tipo cupê, com duas portas e a capota acompanhando em queda a curvatura posterior do design; que meu carro, cuja chave eu portava, não tinha nada que lembrasse o velho estilo hatch; finalmente, que ele estava estacionado a pelo menos 2 quilômetros dali. Os neurônios ainda conseguiram cogitar: “Estou sem nada, sem dinheiro, só com uma chave de carro na mão. Que diabo esse cara quer, afinal?”
Foi aí que o sujeito pulou em cima de mim. Sou uma pessoa pacífica, com dificuldade para recordar até qual teria sido a última briga em que me meti, nos verdíssimos anos da juventude. Além do mais, embora de altura acima da média e em razoável forma física – há muitos anos me exercito regularmente porque o médico obriga, manu militari –, sou um senhor de 60 anos bem vividos. Mas milênios civilizadores não conseguiram extirpar das pessoas determinados instintos, como o de auto-defesa. Quando o camarada deu o bote, me vi contrariando todas as recomendações dos manuais sobre assaltos elaborados pela polícia e reagi, empurrando e esmurrando, um tanto a esmo, o agressor. Acabei me desequilibrando e caindo para trás, na água, enquanto algumas pessoas se aproximaram para uma tardia ajuda e o camarada fugia com sua presa, algo que eu vinha usando havia tanto tempo que já nem me dava conta: uma correntinha de ouro.
Compreendi então que o intraduzível “me passa o hatch” era, na verdade e na pronúncia do sujeito, “me passa a corrente”. Como não entendi, ele pulou sobre mim com a mão espalmada para arrancá-la. No percurso, as unhas me feriram o queixo, o pescoço e o peito, enquanto o rapaz fugia correndo de bicicleta, trocava de camiseta com o cúmplice para confundir eventuais testemunhas e sumia no meio da praia repleta de banhistas. Além dos arranhões e um pequeno sangramento, o choque entre um bandido jovem e um jornalista sessentão provocou, neste, uma forte pancada no rosto que acabaria resultando em perturbações visuais, vários exames e três visitas a uma oftalmologista antes de um diagnóstico tranqüilizador.
Com a correntinha, o assaltante de praia levou consigo também três pequenas peças de ouro: dois pequenos agnus dei – mini-relicários católicos contendo cera de velas bentas – que ganhei criança de meu falecido pai, e uma estrela-de-davi presenteada por minha mulher, que ecumenicamente costumava trazer no peito em homenagem à religião e à cultura de minha mãe. Até hoje não resolvi essas transcendentais questões de fé, religião, existência ou não de Deus. Não sei em que acredito, e se acredito. Com certeza, porém, acreditava em alguma aura protetora e benfazeja dos agnus dei e da estrelinha. O camarada deve ter trocado tudo por uma ou duas pedras de crack, e olhe lá.
Diziam, nos EUA dos anos 60 – embora o ditado brincalhão continue em vigor –, que um liberal era um conservador que ainda não fora assaltado. No meu caso, não. O assalto, coisa pífia diante da violência criminosa que massacra e humilha tantos compatriotas, evidentemente não alterou minhas convicções liberais em política, em economia e em políticas sociais, nem tampouco mudou minhas posições conservadoras em matéria criminal: continuo achando que somos frouxos com a bandidagem, que o Estado brasileiro é corrupto e mal equipado, que nossa legislação criminal é tolerante ao ponto do deboche, cheia de buracos e protege mais os fora-da-lei do que a sociedade, e que nossos políticos são omissos, incompetentes, molengas ou medrosos – muitas vezes, tudo isso junto – diante de um problema que, sim, pode ser resolvido, mas que requer mão de ferro para ser enfrentado.
A pequena lição que extraí desse episódio não tem nada de grandiloqüente. Mas me dei conta, desta vez comigo mesmo, de que, a despeito do vasto, avassalador e interminável noticiário sobre a violência criminosa a que somos submetidos todo santo dia, apesar de tudo que vejo, ouço e leio, como cidadão e como profissional, e não obstante saber perfeitamente o quanto estamos mergulhados no crime e na impunidade – no fundo, no fundo, quando apareceu um bandido na minha frente querendo tomar à força algo que era meu, não me ocorreu, durante boa parte do transcurso do episódio, que o rapaz ultrapassaria sem hesitação a velha barreira moral segundo a qual a vida e a incolumidade física de um ser humano são (eram?) sagradas e invioláveis.
Que grande trouxa, eu.
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