A isto eu chamo uma clara ameaça à separação Igreja-Estado, algo essencial para garantir a liberdade religiosa da população portuguesa.
A influência dos pastores evangélicos nos votos: "Não vamos parar até que a Bíblia entre no Parlamento"
O uso de desinformação, provocando medo nos fiéis – naquilo que um investigador designa de conspiritualidade”, a associação de teorias de conspiração e espiritualidade – e a aliança com políticos bolsonaristas marcou campanha política do Chega e do ADN.
Na inauguração da ADVEC no Porto, um dos convidados foi Marcus Santos, brasileiro eleito pelo Chega. Reprodução / Facebook Silas Malafaia
Uma multidão aglomerou-se em frente a uma porta em Vila Nova de Gaia no dia 16 de março. Um “empurra-empurra”, como em concertos de grandes astros da música, todos à procura do melhor ângulo para ver o ídolo, telemóvel na mão para filmar. Adultos, crianças e muitos jovens, Bíblia debaixo do braço, queriam ver de perto quem estava naquela sala, com capacidade para mais de mil pessoas e já repleta de gente, em pé e sentada: era o pastor brasileiro Silas Malafaia, líder da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), que ali estava para inaugurar a sua segunda igreja em Portugal.
Três domingos antes, outra multidão vestida de verde e amarelo - alguns com Bíblias - ouvia atentamente os gritos do mesmo pastor. O líder da ADVEC estava em cima de um palco no meio da Avenida Paulista, no coração de São Paulo. “Eu vou levantar uma oração e nós vamos ouvir o presidente Bolsonaro. Por favor, se você concordar com a minha oração, quando eu disser ‘amén’, dê um ‘amén’ retumbante. E ore”, disse, ao lado do ex--presidente brasileiro, do qual é publicamente um fervoroso apoiante e defensor.
Este foi mais um capítulo da história que comprova a interpenetração entre a política e o culto evangélico no Brasil. No entanto, esse movimento já vai além fronteiras, não só pelo uso profissional das redes sociais, mas também pela expansão das igrejas pelo mundo, sendo o território português um dos alvos. “Portugal é um laboratório, nós vamos abrir igrejas em todo o país e aqui na Europa”,afirmou Silas Malafaia na cerimónia de inauguração em Vila Nova de Gaia. Na sequência, ouviram-se gritos de “amén”, “glória a Deus” e aplausos. O pastor havia prometido o mesmo aos fiéis um domingo antes, em celebração na manhã de 10 de março - dia das eleições - na igreja em Santa Iria de Azoia, perto de Lisboa, onde também a casa estava cheia e o pastor visto como uma pop star.
“Sem dúvida, o voto evangélico chegou a Portugal. O Chega já o fazia de forma discreta, desde o início recebeu apoio de evangélicos e o ADN (Alternativa Democrática Nacional, nova designação, aceite em 2021 pelo Tribunal Constitucional, do Partido Democrático Republicano, que fora criado em 2014 por Marinho e Pinto. Em 2023, num relatório da ONG norte-americana Global Project Against Hate and Extremism, o ADN, que tem como líder Bruno Fialho, surge classificado como “grupo de ódio e de extrema- direita”) foi o primeiro a falar disso abertamente”, afirma Donizete Rodrigues, professor de Sociologia da Religião na Universidade da Beira Interior (UBI). O docente investiga há 10 anos a influência dos evangélicos na política. Segundo este especialista, a estratégia é chamada de “teologia do domínio”, já aplicada com sucesso nos Estados Unidos e no Brasil, com Donald Trump e Bolsonaro.
“É uma ideologia que assenta na ideia de tomar o poder para transformar a sociedade. Isso começa com um grupo, é uma ideologia extremamente ultraconservadora, que navega facilmente nos partidos ou nos movimentos de direita, direita radical ou extrema-direita, como é o caso do Trump, Bolsonaro e agora André Ventura em Portugal, além do ADN”, argumenta Donizete. De acordo com o investigador, tanto o Chega quanto o ADN “claramente, têm por trás o apoio dessa elite evangélica que defende a teologia do domínio”.
Conservadorismo como bandeira
As igrejas evangélicas e algumas baptistas já instaladas em Portugal possuem diferenças entre si em termos de estrutura, mas seguem doutrinas semelhantes. Os chamados valores conservadores estão presentes em todas, sendo a principal ligação com movimentos da direita radical. Pastores de diferentes instituições religiosas reúnem-se, mesmo que sejam líderes de congregações diferentes. Inclusive, existe uma associação, a Aliança Evangélica Portuguesa (AEP), que une mais de 700 congregações espalhadas por todo o país.
A AEP organizou um pequeno--almoço com os pastores associados vindos de todo o país, no qual o orador principal foi Silas Malafaia. O evento ocorreu a 15 de março, na ADVEC em Santa Iria, e fez parte da ampla agenda do líder brasileiro em Portugal. Na plateia, estava, por exemplo, Paulo Nunes, que concorreu pelo ADN no círculo de fora da Europa e o brasileiro Marcus Santos, eleito deputado pelo Chega no Porto. “Fui convidado para estar hoje em Lisboa, para uma grande reunião com um dos grandes líderes e lutadores da direita conservadora no Brasil, Silas Malafaia”, lê-se em um post feito na rede social por Santos no Instagram. Na publicação, menciona ainda André Ventura, líder do partido.
Paulo Nunes também publicou vídeos, fotos e textos em homenagem ao pastor brasileiro, sem poupar elogios. Além de na plateia do evento estarem pessoas ligadas diretamente a partidos, um dos pastores começou o encontro com uma mensagem política, congratulando-se por Portugal “ter um novo governo”, altura em que se ouviram gritos e aplausos. O evangélico afirmou que o país foi “abençoado” e “preparado para um novo tempo, de prosperidade, em que o mundo verá uma nação portuguesa próspera” e agradeceu a Deus “pelo novo tempo”.
Em outro momento, os pastores ressaltaram a importância de os líderes religiosos protegerem as crianças da “ideologia ou engano das trevas” e que a sociedade portuguesa “precisa de Deus”. De acordo com o investigador Donizete Rodrigues, faz parte da estratégia dividir a sociedade entre “bem” e “mal”, através da agenda conservadora: “É o que chamam de ‘nossa agenda’. Trata-se da ideia que têm de família, de moral, de sexualidade de uma sociedade assente nos princípios bíblicos e cristãos”.
Foram estes valores que levaram o ADN a formalizar um pacto com “quase todas as igrejas evangélicas de Portugal, com exceção de uma”. A explicação é de Nuno Pereira, coordenador distrital do partido, que falava no dia 16 de março em um space (grupo áudio) coordenado por Mário Machado (um neonazi que liderou os hammerskins, a fação mais violenta dos skinheads, e que passou, desde 1990, 11 anos e oito meses preso por diversos crimes, incluindo roubo, extorsão, ofensas à integridade física, sequetro, detenção e tráfico de armas proibidas, discriminação racial e incitamento ao ódio e à violência, coação, dano e difamação e que atualmente integra o grupo ultranacionalista 1143), na rede social X. “Nós apresentámos o programa eleitoral aos evangélicos. Os evangélicos são extremamente conservadores, e reveem-se no nosso conservadorismo. Não tanto o extremo conservadorismo, mas vou vos dar um exemplo. Vocês sabem que os evangélicos são contra o aborto”, relatou Pereira, que foi cabeça de lista pelo Porto, distrito onde o ADN teve 19.585 votos.
“Eles defendem as mesmas causas. Não na totalidade, mas muitas das suas causas estão refletidas no nosso programa. E foi isso que nós negociámos”, afiançou o militante do ADN. “Foi tudo na base de confiança, na base da negociação.” Dizendo que não poderia dar pormenores, Nuno Pereira confirmou que o acordo previa “defender, dentro da comunidade deles, que havia um partido que defendia grande parte das suas causas”. O ADN teve acima de 100 mil votos, pelo menos 90 mil mais que em 2022.
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