UMA CERTA CAPITÃO CARLA
Fernando M. Lopes
Há anos mantenho contato com oficiais do Exército, tanto por trabalho quanto por amizade, e eles me relatam as aventuras, alegrias e tristezas dos soldados e fuzileiros que compõem a missão de paz da ONU no Haiti. Bom, até os mais desavisados hão de lembrar do excelente trabalho das forças armadas brasileiras naquele miserável país caribenho, destroçado pela guerra civil. Quando as Nações Unidas se cansaram daquela zorra, enviaram as forças de paz em 2003. A população comemorou.
E continua comemorando. O Haiti ainda não saiu da miséria, mas ao menos escapou da guerra, dos assassinatos em massa, das torturas, das gangues armadas. Hoje, graças às forças de paz comandadas pelo Brasil desde 2004, aquele é um lugar melhor de se viver.
Nosso Exército pacificou as facções e reduziu a criminalidade; de quebra criou hospitais, escolas, fornecimento de água, infraestrutura, comunicações. Deu àquele povo sofrido um rumo, um norte, uma esperança. Trabalho de primeira; parabéns aos militares.
Infelizmente, isso é pouco divulgado. Ou simplesmente não o é. Coisa de nosso complexo de vira-latas, como diria Nélson Rodrigues.
Pior: Num País onde faltam heróis e sobram cafajestes, teimamos em ignorar os bons exemplos. Como sou mais teimoso ainda, vamos falar um pouco de dois desconhecidos: a capitão médica Carla Maria Clausi e o cabo Ricardo. Já ouviram falar deles? Certamente não, mas devem ter visto algo sobre o desabamento de uma escola na capital haitiana, Porto Príncipe, no dia 7 de novembro, no qual mais de 90 pessoas perderam a vida. Foi um horror; vários sobreviventes estavam sob toneladas de escombros, sem muita chance de salvamento, num lugar praticamente sem estrutura para atendimento de emergências. Que fazer pelos soterrados?
Em desespero, os haitianos se lembraram dos brasileiros; chamados, os militares enviaram imediatamente uma equipe médica completa, composta de soldados e fuzileiros navais. Foi a literal salvação de 4 crianças, de 6 a 7 anos de idade.
A capitão médica Carla e o soldado enfermeiro Ricardo se esgueiraram pelos escombros, ignorando o perigo de morte por esmagamento e, a muito custo, conseguiram salvar as crianças. As fotos, enviadas do Haiti por um amigo militar, são impressionantes. Mostram o grau de coragem dos dois heróis, que arriscaram suas vidas pelas das pobres crianças. Desafiaram a morte não por glória, dinheiro, fama ou medalhas. O agradecimento das famílias levou os bravos soldados às lágrimas.
Uns dirão que eles apenas cumpriram seu dever. Eu digo que foram além disso; demonstraram coragem, bondade, desprendimento, heroísmo. Mais do que reconhecimento, merecem todas as homenagens possíveis. Merecem ser lembrados.
Quando vejo tais exemplos de caráter, logo vêm à mente todas aquelas medalhas que os políticos se auto-concedem (ou trocam) sem o menor motivo. Penso na Medalha Santos-Dumont que Marisa, mulher de Lullla, recebeu em 11 de janeiro deste ano por “relevantes serviços” (gargalhadas) prestados à Força Aérea. Que vergonha. E dizer o quê de todas aquelas comendas que deputistas e senateiros recebem todos os anos, quando seus atos de “bravura extrema” se resumem a tomar uísque em seus enormes gabinetes acarpetados e refrigerados, rodeados de serviçais e puxa-sacos? O Brasil não tem jeito, mas alguns brasileiros têm. Principalmente a capitão médica Carla e o cabo Ricardo.
Acredito que Carla e Ricardo não vão receber nenhuma medalha, nenhuma homenagem de nosso governo. Ele está ocupado demais, pendurando faixas e adornos brilhantes em políticos gordos que se reúnem em Brasília para reclamar do calor; então, fica aqui nossa pequena homenagem a esses dois heróis que, se não forem mesmo reconhecidos como tal, ao menos servem para denunciar essa medonha inversão de valores (mais uma!) num País que trocou os fatos pela versão, a verdade pela ficção, o exemplo real pelo inventado.
Enquanto a capitão e o soldado arriscam a vida por quatro crianças pobres sem o menor reconhecimento das autoridades, a excelentíssima primeira-dama dá polimento em sua comenda, refletindo sobre seus relevantes serviços prestados, refestelada nos pufes do Palácio da Alvorada, aplaudida por um séquito de empregados. Alberto Santos-Dumont deve estar virando no túmulo.