Re: Mundo Árabe em Ebulição
Enviado: Ter Set 26, 2017 10:40 am
Um povo esquecido.
Daniel Aarão Reis - O Globo, 26.09.17.
‘Não queremos que o mundo ouça falar de nossas armas, mas de nossas ideias”, disse Sozda, comandante curda das unidades militares femininas de proteção do povo (YPJ) no norte da Síria. Ali, no contexto de uma implacável luta armada contra o Estado islâmico (EI), surgiu a Rojava, uma entidade política comprometida com a luta dos curdos pela liberdade.
No meio do inferno da guerra, a manifestação de esperança na vida.
A Rojava nasceu por iniciativa do Partido de União Democrática (PYD). Em novembro de 2013, proclamou sua autonomia, baseada na proposta do “confederalismo democrático”, que defende como princípios a democracia, o feminismo, a ecologia e o socialismo.
Experiências práticas de uma alternativa de vida e de poder observando estes princípios realizam-se em alguns distritos libertados da ditadura de Bashar al-Assad e da opressão do fundamentalismo islâmico do EI.
De modo autônomo, organizam-se unidades de defesa e cooperativas informadas por princípios igualitários e ecológicos. Na administração pública, conselhos populares organizam a vida social e política, mas podem ter suas decisões revogadas pelas organizações de mulheres sempre que se refiram a matérias de seu interesse. Além disso, cada conselho tem dois presidentes, mas um deles é eleito apenas pelas mulheres. Os homens que cometem violências sexistas não podem fazer parte da administração pública, tendo sido proscritas as discriminações de gênero, os casamentos forçados, a violência doméstica, a poligamia e o casamento de crianças. Assim, é o grau de liberdade das mulheres que define o regime democrático.
Um antigo revolucionário disse, certa vez, que uma nação que oprime uma outra não pode ser livre. Em Rojava, mulheres e homens asseveram que uma sociedade que oprime as mulheres não pode ser livre. Uma bandeira erguida num dos seus distritos tem como inscrição: “Nós derrotaremos o Estado Islâmico, garantindo a liberdade das mulheres”.
Os curdos habitam uma vasta extensão de terra, do norte da Síria ao noroeste do Irã, passando pelo sul e sudeste da Turquia e pelo norte do Iraque. São muçulmanos sunitas, mas cultivam a tolerância religiosa e convivem com pequenas populações de judeus e cristãos, entre outros credos religiosos. Não é possível saber com exatidão a população curda, mas estima-se que existam não menos de 30 milhões de pessoas que se identificam como tal, um povo cujas origens remontam à noite dos tempos.
Desde o início do século XX, os curdos lutam para ter o direito a um Estado nacional. Depois da Primeira Grande Guerra, em 1920, cogitou-se conferir a autonomia ao povo curdo. Prevaleceram, contudo, os interesses das potências europeias. Em nome do chamado “realismo político”, aliaram-se aos Estados que foram se formando na região — Turquia, Irã, Iraque e Síria — e negaram os legítimos direitos dos curdos à construção de um Estado nacional próprio.
A partir de então, multiplicaram-se campanhas de repressão e, às vezes, de extermínio dos curdos. Na Síria, eles nunca tiveram reconhecida identidade específica. Na Turquia as violências datam dos anos 1920, intercaladas por períodos de “paz armada”. No Irã, logo depois da Segunda Guerra Mundial, a tentativa de estabelecer uma república autônoma foi massacrada. No Iraque, o governo de Saddam Husseim bombardeou com armas químicas a cidade curda de Halabja em março de 1988.
Nas brechas dos conflitos internacionais e das lutas democráticas que se alastram pela região, os curdos tentam afirmar a própria identidade. A favor da invasão do Iraque, em 2003, conquistaram um grau de autonomia inédito, mas, segundo suas lideranças, permanecem como “cidadãos de segunda classe” no país. Na Turquia, aproveitando-se de recente liberalização, disputaram eleições com resultados animadores. Cedo, porém, depois do golpe de Recyp Erdogan, em julho de 2016, voltaram a ser caracterizados como “movimento terrorista”. Na Síria, finalmente, para combater o Estado Islâmico, são as guerrilheiras e os guerrilheiros curdos os melhores combatentes. Foi nesta luta, aliás, que apareceu a Rojava.
As lutas dos curdos pela independência enfrentam obstáculos que parecem intransponíveis. Os Estados da região dissimulam ou negam a existência deste povo esquecido. Quanto às grandes potências, como disse Patrice Franceschi, usam e abusam dos curdos para alcançar os próprios objetivos, mas não hesitam em abandoná-los à própria sorte, quando isso lhes parece conveniente. Por outro lado, há muitas divisões entre eles. Enquanto uns parecem conformados em ser apenas sócios menores de interesses estrangeiros, os partidários da Rojava almejam fazer da independência política um passo para a construção de uma sociedade alternativa.
Os mais céticos dirão que é improvável que isto possa acontecer. Entretanto, como gosta de recordar E. Morin, “esquecemos frequentemente que o improvável acontece”.
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Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF.
Daniel Aarão Reis - O Globo, 26.09.17.
‘Não queremos que o mundo ouça falar de nossas armas, mas de nossas ideias”, disse Sozda, comandante curda das unidades militares femininas de proteção do povo (YPJ) no norte da Síria. Ali, no contexto de uma implacável luta armada contra o Estado islâmico (EI), surgiu a Rojava, uma entidade política comprometida com a luta dos curdos pela liberdade.
No meio do inferno da guerra, a manifestação de esperança na vida.
A Rojava nasceu por iniciativa do Partido de União Democrática (PYD). Em novembro de 2013, proclamou sua autonomia, baseada na proposta do “confederalismo democrático”, que defende como princípios a democracia, o feminismo, a ecologia e o socialismo.
Experiências práticas de uma alternativa de vida e de poder observando estes princípios realizam-se em alguns distritos libertados da ditadura de Bashar al-Assad e da opressão do fundamentalismo islâmico do EI.
De modo autônomo, organizam-se unidades de defesa e cooperativas informadas por princípios igualitários e ecológicos. Na administração pública, conselhos populares organizam a vida social e política, mas podem ter suas decisões revogadas pelas organizações de mulheres sempre que se refiram a matérias de seu interesse. Além disso, cada conselho tem dois presidentes, mas um deles é eleito apenas pelas mulheres. Os homens que cometem violências sexistas não podem fazer parte da administração pública, tendo sido proscritas as discriminações de gênero, os casamentos forçados, a violência doméstica, a poligamia e o casamento de crianças. Assim, é o grau de liberdade das mulheres que define o regime democrático.
Um antigo revolucionário disse, certa vez, que uma nação que oprime uma outra não pode ser livre. Em Rojava, mulheres e homens asseveram que uma sociedade que oprime as mulheres não pode ser livre. Uma bandeira erguida num dos seus distritos tem como inscrição: “Nós derrotaremos o Estado Islâmico, garantindo a liberdade das mulheres”.
Os curdos habitam uma vasta extensão de terra, do norte da Síria ao noroeste do Irã, passando pelo sul e sudeste da Turquia e pelo norte do Iraque. São muçulmanos sunitas, mas cultivam a tolerância religiosa e convivem com pequenas populações de judeus e cristãos, entre outros credos religiosos. Não é possível saber com exatidão a população curda, mas estima-se que existam não menos de 30 milhões de pessoas que se identificam como tal, um povo cujas origens remontam à noite dos tempos.
Desde o início do século XX, os curdos lutam para ter o direito a um Estado nacional. Depois da Primeira Grande Guerra, em 1920, cogitou-se conferir a autonomia ao povo curdo. Prevaleceram, contudo, os interesses das potências europeias. Em nome do chamado “realismo político”, aliaram-se aos Estados que foram se formando na região — Turquia, Irã, Iraque e Síria — e negaram os legítimos direitos dos curdos à construção de um Estado nacional próprio.
A partir de então, multiplicaram-se campanhas de repressão e, às vezes, de extermínio dos curdos. Na Síria, eles nunca tiveram reconhecida identidade específica. Na Turquia as violências datam dos anos 1920, intercaladas por períodos de “paz armada”. No Irã, logo depois da Segunda Guerra Mundial, a tentativa de estabelecer uma república autônoma foi massacrada. No Iraque, o governo de Saddam Husseim bombardeou com armas químicas a cidade curda de Halabja em março de 1988.
Nas brechas dos conflitos internacionais e das lutas democráticas que se alastram pela região, os curdos tentam afirmar a própria identidade. A favor da invasão do Iraque, em 2003, conquistaram um grau de autonomia inédito, mas, segundo suas lideranças, permanecem como “cidadãos de segunda classe” no país. Na Turquia, aproveitando-se de recente liberalização, disputaram eleições com resultados animadores. Cedo, porém, depois do golpe de Recyp Erdogan, em julho de 2016, voltaram a ser caracterizados como “movimento terrorista”. Na Síria, finalmente, para combater o Estado Islâmico, são as guerrilheiras e os guerrilheiros curdos os melhores combatentes. Foi nesta luta, aliás, que apareceu a Rojava.
As lutas dos curdos pela independência enfrentam obstáculos que parecem intransponíveis. Os Estados da região dissimulam ou negam a existência deste povo esquecido. Quanto às grandes potências, como disse Patrice Franceschi, usam e abusam dos curdos para alcançar os próprios objetivos, mas não hesitam em abandoná-los à própria sorte, quando isso lhes parece conveniente. Por outro lado, há muitas divisões entre eles. Enquanto uns parecem conformados em ser apenas sócios menores de interesses estrangeiros, os partidários da Rojava almejam fazer da independência política um passo para a construção de uma sociedade alternativa.
Os mais céticos dirão que é improvável que isto possa acontecer. Entretanto, como gosta de recordar E. Morin, “esquecemos frequentemente que o improvável acontece”.
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Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF.