AN-94
Os russos estiveram envolvidos na guerra do Afeganistão de 1979 a 1989, período este em que muita experiência foi ganha, e muitas lições foram aprendidas. As táticas e técnicas de combate foram refinadas para adaptarem-se ao combate moderno, e o armamento foi melhorado. O resultado destas melhorias, no campo do armamento individual para o Infante, foi a criação do Avtomat Nikonova-94, o AN-94, no calibre 5,45x39mm. Enquanto o fuzil AK-74M continua sendo o fuzil padrão da maioria das unidades do exército Russo, a realidade é que o AN-94 já começou a substituí-lo, estando em uso nas unidades de Forças Especiais (Spetsnaz) e junto às tropas do Ministério do Interior, desde o ano de 1994, ano este em que foi inicialmente adotado, sendo que sua versão atual entrou em produção seriada no ano de 1998, na fábrica Izhevsk, que produz as versões modernizadas da conhecida família AK.
Fuzil AN-94 com coronha estendida, vista do lado direito. Note a construção toda em polímero.
A busca pelo AN-94 começou nos idos de 1960, com a insatisfação dos soviéticos com o AKM que, apesar de ser extremamente robusto e confiável, era difícil de ser controlado pelos conscritos, principalmente quando disparado em fogo automático semi-visado, método de tiro base da doutrina de emprego daquele exército, em oposição ao tiro intermitente visado da doutrina ocidental. Eles passaram então a buscar um fuzil mais leve, mais controlável e que disparasse uma munição de pequeno calibre, alta velocidade e baixo recuo.
A história da evolução que levou a esta arma é extremamente longa e cheia de reveses, interesses políticos e vaidades (algo como nosso programa FX) mas, como resumo, temos que no final dos anos 70 o exército russo abriu uma competição denominada Abakan, que levaria ao substituto do AK-74, fuzil que estava acabando de entrar em serviço naquele país, sendo que os principais requisitos que a nova arma deveria atingir eram: melhora na eficiência de 150 a 200% em relação ao AK-74, com menos recuo e maior confiabilidade. Qualquer pessoa que já teve a oportunidade de disparar com um AK-74 e é conhecedora da controlabilidade e rusticidade desta arma sabe o quão difícil é atingir tal meta, mas assim o foi.
Fuzil AN-94 com coronha estendida, vista ao lado esquerdo. Note o seletor de tiro sobre a empunhadura e logo atrás do gatilho, na posição em que é encontrado no fuzil israelense Galil.
O arma resultante foi um fuzil de mecanismo completamente inovador e sem similar no ocidente, que produz um resultado semelhante ao Heckler & Koch G11: fogo intermitente, fogo automático com uma cadência teórica de 600 disparos por minuto e fogo automático controlado de dois tiros (burst) com uma cadência teórica de 1800 tiros por minuto!
Vista do lado direito do fuzil AN-94, com coronha rebatida. Apesar da aparência, ela não interfere com o gatilho.
É justamente neste sistema de funcionamento, chamado de “blow back shifted pulse (BBSP)” ou, tentando traduzir, funcionamento “por recuo com pulso invertido”, que está a mágica do sistema: no modo intermitente e no automático a arma funciona de forma tradicional, como a maioria dos fuzis de assalto, ou seja, a munição é disparada, os gases são desviados por um evento no final do cano, que direciona-os para um pistão, que faz recuar o mecanismo do ferrolho, destrancando-o e levando-o até o final de seu curso, quando então a cápsula é ejetada e, no movimento à frente, uma nova munição é coletada do carregador, entra na câmara e o ferrolho se fecha atrás dela, girando e trancando, ficando pronto para um novo disparo.
Fuzil AN-94 desmontado. Note a roldana e o cabo de aço que fazem a “mágica” do sistema. A pequena e achatada peça cinza a que o cabo se prende, próxima da câmara de disparo, é a bandeja que faz a alimentação intermediária. Com toda tecnologia e inovação, o número de peças ainda é extremamente reduzido, próximo ao número que compõe o nosso FAL.
Já no modo de “burst” de dois tiros, a coisa é diferente: ao disparar, todo o mecanismo (ferrolho, caixa de culatra e cano) começa a recuar dentro de uma segunda caixa de culatra, que é a externa. Quando o projétil passa pelo evento, os gases são direcionados para o pistão, que começa a recuar, destravando o ferrolho, que por sua vez extrai a cápsula da câmara. Só que, neste momento, uma bandeja acionada por um cabo de aço conectado ao ferrolho, segue em frente, passa sobre o carregador, coleta e coloca uma nova munição na entrada da câmara, ao mesmo tempo em que a anterior é ejetada. O ferrolho volta à frente e a bandeja para trás, trancando sobre a nova munição, e um novo disparo é feito. Só que, enquanto tudo isso ocorreu (em milésimos de segundo) o mecanismo todo ainda está recuando dentro da caixa de culatra! Após o segundo disparo, o mecanismo chega ao final de seu curso e, sob a força de uma mola recuperadora, volta à posição inicial, enquanto ejeta a cápsula deste segundo disparo e realimenta a câmara com uma nova munição. O resultado é bem simples: os dois projéteis resultantes dos disparos deixam o cano antes do recuo atingir o ombro do atirador, saindo praticamente um atrás do outro, sem desvio algum! É tão rápido que, para quem está olhando e ouvindo, parece que apenas um tiro foi dado. Cabe salientar que, com o seletor de tiro em fogo automático, os dois primeiros disparos são feitos à cadência de 1800 TPM e, do terceiro em diante, à 600 TPM.
Na prática, o agrupamento dos projéteis a uma distância de 100 m pode ser coberto pela palma de uma mão. A vantagem em distâncias maiores é óbvia e comprovada: a probabilidade de acerto em um alvo móvel a 300 m é 200% maior que aquela utilizando um fuzil convencional. Um efeito colateral e benéfico é a maior capacidade de incapacitação do alvo: se este está sem colete balístico o poder de parada é o dobro, pois dois projéteis atingem o alvo de forma quase simultânea.
Fuzil AN-94 com lançador de granadas de 40mm GP-25 acoplado sob o cano.
Se o alvo está usando uma veste com placa de cerâmica, capaz de deter munição de fuzis, ainda assim pode ser colocado fora de combate em distâncias de até aproximadamente 100m. Explico: ao impactar no colete balístico, o primeiro projétil fragmenta uma porção da placa cerâmica, sendo seus resíduos e os da placa detidos pela camada de Kevlar ou material similar que compõe a parte flexível do colete. Mas, na seqüência, quando o tecido balístico da veste ainda está sob o efeito de “cama elástica” detendo os fragmentos do primeiro impacto, o segundo projétil impacta numa porção já fragilizada da placa de cerâmica, por vir quase que imediatamente atrás do primeiro, passando praticamente ileso por esta, atingindo o tecido balístico em uma situação de estresse máximo do material que, por si só, não é capaz de detê-lo, resultando na fácil perfuração da veste e na incapacitação do combatente.
A parte de todas estas inovações em termos de sistema de funcionamento, o fuzil é relativamente convencional: é construído com toda sua estrutura principal e guarnições em polímero, ao passo que o mecanismo, cano e peças menores são feitos em aço. Utiliza um sistema de trancamento por ferrolho rotativo e configuração dita convencional, com carregador na frente do grupo do gatilho e coronha dobrável. Possui miras mecânicas, com alça de mira em formato de asterisco, com posições para 200-300, 400, 500, 600 e 700m, e massa de mira regulável na vertical e horizontal para “zerar” a arma. A posição de 200-300m da alça, bem como a massa de mira, possuem cápsulas de trítio para permitir o enquadramento de miras à noite ou em condições de baixa visibilidade.
Vista do fuzil AN-94 com um visor intensificador de luz residual dotado de trilho de adaptação integral, e mais uma série de acessórios.
Além dos tradicionais bandoleira, reforçador de tiro de festim e baioneta, esta última com a peculiaridade de ser afixada na lateral da peça que funciona como quebra-chamas e compensador de tiro, a fim de evitar a interferência com o uso do lançador de granadas acoplado sob o cano, outros acessórios que podem ser adaptados à arma são: visores noturnos, miras de ponto vermelho, lunetas e miras laser, todos acoplados ao trilho universal existente na lateral esquerda da arma, que permite por várias vezes a afixação e remoção dos equipamentos óticos, sem que seja necessário ajustá-los novamente à arma.
Vista da alça de mira em formato de asterisco. Os dois buracos na parte superior de uma das aletas são destinados à inserção das cápsulas de trítio para tiro noturno. É justamente esta aleta a da posição de 200-300m. Note que a arma esta ajustada para disparo a 400m, como denota o nº 4 que está gravado na aleta do asterisco que se encontra em posição de uso.
Vista do compensador e quebra-chamas do fuzil. Observe, logo atrás do mesmo, o trilho por onde corre o cano quando este recua juntamente com todo o mecanismo da arma. O resultado é a completa ausência de recuo, mesmo em fogo totalmente automático. De fato, a arma atira como uma carabina calibre .22 LR. Note também as duas elevações sobre a proteção da massa de mira, nas quais são inseridas as cápsulas de trítio. O botão arredondado, na lateral da estrutura, é para a regulagem horizontal da massa de mira, e o engate em forma de “T”, logo abaixo, é para a fixação da baioneta.
Um outro acessório interessante é o novo carregador para 60 cartuchos: ele é, à primeira vista, completamente convencional, com o mesmo formato, curvatura e comprimento que o carregador padrão de 30 cartuchos, mas sua espessura é 50% maior pois, ao invés de ser bifilar, ele é quadrifilar.
Fuzil AN-94 com lançador de granadas e baioneta acoplados. Note como a baioneta, afixada horizontalmente na lateral do cano, não interfere com o lançador de granadas.
O desenvolvimento desta arma continua: já está em testes uma versão em calibre 6mm, mais potente, para substituir a atual munição 5,45x39mm 5N7 atualmente em uso nas Forças Armadas Russas, bem como as versões encurtada, para uso por guarnições de viaturas e tropas especiais, e metralhadora leve, para apoio de fogo dos escalões do grupo de combate.
Outra engenhosidade da arma: o seletor de tiro é acionado pelo polegar, tendo as posições intermitente (1), burst (2) e automático (AB). Já a trava de segurança é um botão independente, sendo acionado pelo dedo indicador: é a peça prateada em formato de semi-círculo, à frente do gatilho. A vantagem tática é que o fuzil pode ser mantido em regime de fogo automático e ser rapidamente destravado por um leve toque do indicador, sem a necessidade de fazer aquela enorme volta de 180º no seletor de tiro, característica de nossos FAL e MD-97. O resultado é a maior rapidez numa eventual reação à emboscada em meio à selva, onde o único remédio imediato é retornar o maior volume de fogo possível.
Esta foto, de uma submetralhadora italiana SPECTRE M4, foi inserida apenas para ilustrar como é o design de um carregador quadrifilar. Note que inicialmente ele é bifilar, tornando-se quadrifilar após alguns centímetros. Este espaço inicial em que ele é mais estreito que é inserido na arma, como pode ser observado. O carregador do fuzil AN-94 segue exatamente o mesmo princípio. (Foto: http://www.world.guns.ru)
Texto retirado de
http://sistemadearmas.sites.uol.com.br/sof/sofber2.html