Os ‘neoliberais’ infiltrados no primeiro governo Lula
Por Bernardo Guimarães
“Quase tive um ataque quando li aquilo”, bradava Maria da Conceição Tavares, economista desenvolvimentista do PT, em entrevista à Folha de São Paulo publicada no dia 21 de abril de 2003. De acordo com suas próprias palavras, ela estava histérica. O alvo de sua fúria era o documento “Política Econômica e Reformas Estruturais” divulgado pelo Ministério da Fazenda – e, mais especificamente, Marcos Lisboa, apontado por ela como o principal responsável por sua publicação.
“Esse Marcos Lisboa é um garoto semi-analfabeto”, ela esbravejava. Em outro momento da entrevista, disse que “há gente infiltrada [no governo] que escreveu uma porcaria chamada Agenda Perdida”. Nas palavras dela, os autores da Agenda Perdida eram “um grupo de débeis mentais do Rio de Janeiro“. Já Marcos Lisboa era acusado de promover “aquela babaquice que o consenso de Washington quer que a gente aplique”.
Naquelas mesmas semanas, Marcos Lisboa e Ricardo Henriques, os principais expoentes dos chamados neoliberais da política social do governo Lula, seriam também alvo da fúria de vários ministros de estado, incluindo José Graziano Silva (segurança alimentar), Carlos Alberto Christo, o Frei Betto (assessor especial do presidente), Miguel Rossetto (desenvolvimento “agrário) e Jacques Wagner (trabalho).
Maria da Conceição Tavares, chorando nos anos 80 enquanto elogiava o controle de preços implantado por Sarney no Plano Cruzado. Os resultados do Plano foram catastróficos, mas Maria o considerava 'uma iniciativa única na política econômica brasileira".
Na foto, a economista portuguesa Maria da Conceição Tavares, ícone do PT, se emociona com o controle de preços implantado por Sarney no Plano Cruzado, nos anos 80. Os resultados do Plano foram catastróficos.
As críticas não se limitavam ao conteúdo das propostas. Marcos Lisboa era acusado de ser algo como um agente financiado pelo Banco Mundial infiltrado no governo. A acusação, insana e bizarra, ocuparia bastante espaço na Folha de São Paulo naqueles dias e levaria os então deputados do PT Ivan Valente e Lindbergh Farias a protocolar um pedido formal de esclarecimentos.
Qual o motivo de uma reação tão forte?
O principal alvo da fúria era a forte defesa da focalização das políticas sociais. O documento lançado pelo governo traçava uma agenda de reformas que provocava forte oposição dentro do governo, mas era a proposta de focalização o ponto que mais incomodava a críticos como Maria da Conceição Tavares. Ela afirmava que o Banco Mundial queria “empurrar a focalização goela abaixo” do Brasil. A imprensa noticiava que os ministros José Graziano Silva e Miguel Rossetto estavam dentre os que “não suporta[vam] ouvir falar em focalização”.
A equipe econômica do primeiro governo Lula: o atual ministro Joaquim Levy, o 'neoliberal petista' Antonio Palocci e Marcos Lisboa, um dos 'débeis mentais do Rio de Janeiro';
De fato, o diagnóstico e as propostas no documento “Política Econômica e Reformas Estruturais” eram completamente diferentes do principal plano de Lula para a área social no início de seu governo, o programa Fome Zero. “Coordenado por José Graziano Silva e pelo Frei Betto, esse programa ocupava todas as manchetes no momento da transição. Em seu discurso de posse, Lula realçava sua importância: “defini entre as prioridades de meu governo um programa de segurança alimentar que leva o nome de Fome Zero”.
Nas palavras de Eduardo Suplicy, o Fome Zero era um “programa transversal, que pretend[ia] estabelecer uma nova articulação com a esfera produtiva, estimulando a agricultura e a economia locais”. Seriam “tomadas ações para promover produção e distribuição de alimentos de qualidade em base sustentável, além de promover a inclusão social, educação alimentar e nutricional”. O principal coordenador do programa, José Graziano da Silva, professor de Economia da Unicamp, “chegou a ”“anunciar que a burocracia federal elaboraria listas de alimentos que poderiam ser comprados pelos beneficiários, a serem distribuídas a supermercados do país”.
Rapidamente, o programa Fome Zero se mostraria um fracasso. Não demorou para o presidente Lula se convencer que era preciso mudar. Em uma reunião em setembro de 2003 com a presença de vários ministros e secretários, Ricardo Henriques apresentaria e receberia o aval de Lula para sua proposta de um programa de transferência direta de renda visando à focalização dos gastos sociais. O programa Fome Zero seria logo colocado em escanteio. A política social do governo Lula passaria a partir de então a dar mais e mais ênfase a um programa focalizado nos mais pobres, que unificaria e expandiria programas existentes.
O programa se chamaria Bolsa Família.
A focalização dos gastos sociais
A política social dos 'neoliberais infiltrados' foi bem sucedida'; o 'Fome Zero', não. O futuro encarregou-se de substituir uma pela outra nas propagandas políticas.
Programas como Bolsa Família ou Bolsa Escola não eram novidade alguma. Haviam sido implementados em cidades como Campinas e Brasília em meados dos anos 1990, e em 2001 em nível nacional pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Havia um programa similar cobrindo todo o México desde 1997 (na época, chamado Progresa) e desde então vários outros países haviam aplicado programas com ideias e objetivos semelhantes.
Esses programas são focalizados: visam distribuir recursos diretamente aos mais pobres. Em geral, estipulam contrapartidas como a exigência de que as crianças frequentem a escola e tomem vacinas. Contudo, a existência de programas focalizados não significa que a política social como um todo seja focalizada.
A Agenda Perdida, o documento elaborado em setembro de 2002, colocava em números o baixíssimo impacto na distribuição de renda das nossas políticas sociais e mostrava que “a falta de efetividade da política social brasileira não adv[inha] da ausência de recursos.” O diagnóstico era claro. Dois fatores eram apontados como os principais culpados por esse fracasso: a má focalização dos gastos sociais e a falta de avaliação dos resultados dos programas.
De fato, havia (e ainda há) uma miríade de programas sociais destinados aos mais variados grupos, inclusive os mais necessitados. Contudo, observava-se que vistos como um todo, esses programas não melhoravam a distribuição de renda no país. As várias políticas que efetivamente transferiam renda não compunham um conjunto focalizado nos mais pobres. Milton Friedman havia dito, 40 anos antes, que “se o objetivo é mitigar a pobreza, deveríamos ter um programa destinado a ajudar o pobre.” A Agenda Perdida mostrava que não é isso que de fato tínhamos no Brasil, e defendia a focalização da política social.
A Agenda Perdida também explicava que “é sempre melhor combater a pobreza de forma estrutural que a partir de políticas compensatórias”, mas que considerando “o altíssimo grau de desigualdade” no caso brasileiro, “programas compensatórios abrangentes têm de ser parte importante da política social”. E completava que essas políticas deveriam “se basear mais em transferências diretas que em intervenções no sistema de preços”. A ideia aqui é que devemos, sempre que possível, deixar o mensageiro da economia, o sistema de preços, fazer seu trabalho.
Trecho da Agenda Perdida, que tinha Marcos Lisboa como um dos autores e propunha, ainda em 2001, a focalização do gasto social;
Trecho da Agenda Perdida, que tinha o ‘neoliberal’ Marcos Lisboa como um dos autores e propunha, ainda em 2001, a focalização do gasto social;
Políticas públicas focalizadas tributam as pessoas para transferir recursos aos mais pobres. Políticas sociais universais tributam as pessoas para transferir recursos a toda a população, ou a vários grupos, normalmente em forma de serviços públicos. Quando as políticas são focalizadas, precisamos tributar muito menos. Essa é uma vantagem importante da focalização.
Para entender melhor esse ponto, considere uma política de transferências que tribute as pessoas e deposite R$ 50 na conta de cada um de nós, todo mês. Quais seriam os custos dessa política? Há, decerto, os custos operacionais e a possibilidade de desvios de dinheiro público. Mas além disso, tributar gera as distorções discutidas no capítulo sobre as contas do governo. Ao tributar, tornamos a produção e as trocas mais custosas, e assim desestimulamos o que gera riqueza para a economia como um todo.
As transferências precisam ser financiadas com impostos. Quando aumenta o imposto sobre a circulação de mercadorias, por exemplo, os bens ficam mais caros e algumas transações que ocorreriam sem o imposto deixam de acontecer. Isso é uma perda para a sociedade como um todo. Assim, o custo efetivamente imposto pela tributação é maior do que a quantia arrecadada.
Por conta das distorções impostas pela tributação, e também dos custos operacionais das ações do governo e dos eventuais desvios de recursos, um gasto do governo de R$ 50 custa muito mais que R$ 50 para a sociedade. Assim, quando se tributa para retirar R$ 50 de cada um e distribuir os recursos de volta a todos em partes iguais, todos perdem.
Políticas de transferência focalizadas nos mais pobres têm, portanto, dois méritos muito importantes: não interferem no sistema de preços e minimizam os custos impostos pela tributação.
"Se o objetivo é mitigar a pobreza, deveríamos ter um programa destinado a ajudar o pobre" - Milton Friedman, um dos economistas mais influentes do século XX;
Por outro lado, a existência de um grande número de programas sociais que transferem renda das mais variadas maneiras aos mais variados grupos sem melhorar a distribuição de renda impõe custos à sociedade como um todo sem gerar benefícios. Cada programa beneficia diretamente um grupo à custa dos outros, mas no final das contas, estamos simplesmente tributando a população para transferir de volta às pessoas, como no exemplo da política que transfere R$ 50 para cada um. Cada um “parece se beneficiar de um programa, mas os custos para a sociedade superam os benefícios que chegam a cada um.
Implementar um programa de transferências focalizados nos que mais necessitam não é simples. É preciso conseguir identificar os que de fato devem receber o auxílio e fazer o dinheiro chegar até eles. Como quase metade da população está no mercado informal de trabalho, é muito difícil saber quem realmente é pobre. Inevitavelmente, haverá gente no cadastro de beneficiários que não deveria estar lá. Mas em comparação com os custos atrelados aos gastos públicos de modo geral, esse problema é relativamente menos importante.
O diagnóstico e a prescrição de políticas liberais da Agenda Perdida seriam reforçados no documento “Política Econômica e Reformas Estruturais” de abril de 2003. Mais completo e aprofundado que a Agenda Perdida, esse documento causaria um alvoroço dentro do governo. Meses depois, o Bolsa Família surgiria a partir da unificação de quatro programas sociais (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação do ministério da saúde, Auxílio Gás e o Cartão Alimentação do Fome Zero) e da criação de um cadastro único de beneficiários.
“O Programa Fome Zero seria logo esquecido. Entraria para a história oficial como um programa que “foi posteriormente incorporado ao Bolsa Família” e para a história real como um fracasso retumbante.
O Bolsa Família, por sua vez, foi muito bem sucedido. Custa hoje em dia cerca de 0,5% do produto brasileiro (menos que o subsídio implícito nas operações do BNDES), atinge quase um quarto da população do Brasil e de fato beneficia os mais pobres. Nos anos seguintes à implementação do programa, houve uma substancial redução na pobreza no país. O Bolsa Família não foi o fator mais importante, mas contribuiu para a redução da pobreza e da desigualdade.
As contradições e a redenção
O início do governo Lula surpreendeu em duas dimensões: foi muito mais liberal do que se esperava em muitos aspectos e teve muito mais sucesso do que muitos previam. A economia brasileira foi bem nesse período. Foi ajudada por fatores que nada tinham a ver com o novo governo (como o cenário internacional favorável, questões demográ“ficas e a melhoria no nível educacional da população por conta de políticas anteriores), mas as ações do governo contribuíram muito.
Lula assumiu em meio a uma crise de confiança, mas o pessimismo inicial foi logo dissipado. Em particular, as políticas monetária e fiscal ajudaram a evitar uma crise de confiança e geraram estabilidade na macroeconomia. Além disso, as reformas estruturais tiraram um pouquinho das amarras que emperram o trabalho do gato multicolorido capitalista. Além do benefício direto sobre a economia, essas políticas liberais afetavam positivamente a imagem do Brasil no exterior e o país passava a atrair mais atenção e investimentos.
Entretanto, no mundo das ideias, essa combinação de políticas teve um efeito perverso.
Antes de seu partido chegar ao poder, o senador Eduardo Suplicy escreveu um paper tentando convencer economistas de esquerda a abraçar a proposta de Milton Friedman
Até 2002, o discurso do PT bradava contra o liberalismo econômico. Porém, em 2003, as políticas defendidas e adotadas pelo Ministério da Fazenda combinavam muito mais com o governo anterior que com a bandeira do PT. A oposição do PT durante o governo de Fernando Henrique a medidas que o governo de Lula buscaria implementar logo de cara evidenciavam que as ações e votos “do partido haviam sido determinadas pelo objetivo de ganhar eleições. O fim necessário para justificar os meios seria a melhoria nas condições de vida dos mais pobres.
O Bolsa Família mostrava essa intenção e apresentava resultados. Esse grande programa social focalizado nas famílias de baixa renda acabaria sendo o elemento que daria respaldo à visão do PT como o partido que de fato se preocupa com os mais necessitados. A retórica do papel do PT na mitológica luta entre poderosos e oprimidos tinha como exemplo principal um programa que era, em um primeiro momento, não muito mais que a expansão de um programa iniciado no governo anterior.
Ironicamente, o caminho para a redenção do PT sairia da agenda dos chamados neoliberais. Classificados pelo candidato do PSDB como “o pessoal de direita”, eles defendiam uma ação do governo na área social focalizada nos mais pobres desde antes da eleição. Justamente pela defesa da focalização dos programas sociais, foram acusados de estarem infiltrados no governo defendendo os interesses do Banco Mundial e atacados por vários ministros e economistas petistas. Acabariam por criar o maior “símbolo das políticas sociais dos governos de Lula e Dilma, o Bolsa Família.
O ímpeto reformista do governo Lula na área econômica não duraria muito. Guido Mantega assumiria o Ministério da Fazenda no inicio de 2006 e o tal grupo neoliberal logo sairia desse ministério. A partir de então, as reformas estruturais apontadas na Agenda Perdida e no documento “Política Econômica e Reformas Estruturais” sairiam da pauta de objetivos do governo. Contudo, as contas do governo estavam em ordem, a inflação estava sob controle e o Brasil contava com a confiança dos investidores. Estava armado o cenário para o crescimento econômico nos próximos anos.
O texto acima foi retirado do livro “A Riqueza da Nação no Século XXI”, escrito por Bernardo Guimarães. Na obra, Bernardo tenta explicar em linguagem leiga a visão dele, um dos pesquisadores mais renomados do país, sobre os grandes dilemas futuros da economia brasileira, além de recontar – como faz nesse capítulo – diversos episódios recentes da política econômica nacional. Este Mercado recomenda efusivamente a compra do livro, editado de forma independente e vendido por apenas 8 reais na Amazon, com disponibilidade para leitura em qualquer computador, smartphone ou Kindle.
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